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Ações de educação, punições severas e apoio dos clubes são medidas necessárias

Governo quer parceria com a CBF para capacitar os árbitros

O Governo Federal, por meio da Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial, estuda uma parceria com a CBF para capacitar os árbitros na identificação de casos de injúria racial e racismo nos estádios. A ideia é que o tema faça parte do programa de formação dos árbitros a partir do ano que vem. “O árbitro é o principal responsável por identificar os casos e registrá-las na súmula”, diz o secretário Juvenal Araújo com exclusividade ao Estado.

Juvenal Araújo, secretário de Políticas da Promoção da Igualdade Racial, quer capacitar os árbitros para identificar casos de racismo. Foto: Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial.

O órgão pretende atuar também junto aos clubes e às torcidas organizadas, fazendo um trabalho de conscientização. O secretário reconhece que ainda precisam ser criados mecanismos para a ação e o formato ainda não está definido. “Temos de pensar na criação de mecanismos de conscientização”, afirma.

A introdução do tema na formação dos árbitros representa uma inovação. Em São Paulo, por exemplo, os árbitros estudam ao longo de um ano e meio. Eles estudam as 17 regras do futebol, fazem cursos práticos e um estágio supervisionado no qual trabalham nas categorias de base. Anualmente são submetidos a avaliações teóricas e orais, além de testes físicos, médicos, psicológicos”.

As dimensões psicológica e emocional recebem atenção especial. O objetivo é integrar os pilares físico, técnico, mental e social, além de um bom preparo físico. Tudo para ter maior confiança para tomar a decisão correta.

A Uefa (União Europeia de Associações de Futebol) promove anualmente cursos de inverno para árbitros e auxiliares, sejam experientes ou iniciantes, que trabalharão nas competições europeias de clubes e seleções. Durante o curso de uma semana, repassam, na teoria e na prática, todas as regras do futebol e suas interpretações, analisam vídeos com situações ocorridas em jogos, trocam experiências e opiniões e são submetidos a testes médicos e físicos. O tema “racismo” não é um tópicos do programa e vem sendo explorado esporadicamente.

No “caso Aranha”, episódio em que o goleiro do Santos foi xingado de “macaco” na Arena Grêmio, em 2014, o árbitro Wilton Pereira Sampaio acabou punido. Durante a partida, ele não interrompeu a partida após as reclamações do goleiro. Sampaio alterou a súmula da partida, incluindo as reclamações, após o jogo.

O árbitro Wilton Pereira Sampaio foi suspenso por 45 dias por não ter incluído na súmula as ofensas ao goleiro Aranha no jogo contra o Grêmio, em 2014. Foto: Fabio Motta/Estadão.

"Informo que, ao chegar ao hotel, advindo do estádio, por volta das 23h50, tive conhecimento através da imprensa que durante a partida existiram atos de racismo oriundos da torcida do Grêmio direcionados ao goleiro da equipe do Santos FC, Sr. Mario Lúcio Duarte Costa (Aranha), nº 1. Contudo, nenhum integrante da equipe de arbitragem ouviu ou presenciou tais atos", informou o árbitro.

Depois de ter sido duramente criticado por não incluir as ofensas raciais na súmula, Sampaio foi suspenso por 45 dias da atividade e teve de pagar R$ 800 de multa. Os demais membros do corpo de arbitragem foram suspensos por 30 dias e multa de R$ 500.

'O racismo sempre foi tão disfarçado que é difícil até lutar contra ele'

Professora Ana Lucia Araújo, da Howard University, em Washington, traça paralelos entre os protestos dos atletas da NFL e dificuldades de mobilização dos negros brasileiros

Recentemente, acompanhamos os protestos de jogadores da NFL contra a violência e o racismo se espalharem pelos Estados Unidos. No Brasil, temos um aumento considerável de casos de injúria racial no futebol brasileiro em 2017, mas não há mobilização. É possível imaginar que os esportistas negros brasileiros também protestem de forma semelhante? Por que?
Embora sejam espaços de luta política em geral, os esportes não têm sido um espaço de protesto individual e coletivo historicamente no Brasil. O câncer do mito da democracia racial está tão impregnado que leva muitos brasileiros, inclusive negros, a ignorar o racismo. O racismo à moda brasileira sempre foi tão disfarçado que até lutar contra ele é difícil porque se manifesta de um modo muitas vezes sutil. No Brasil, embora grande parte dos jogadores famosos e de clubes importantes seja formada por afrodescendentes, em função de sua posição social privilegiada muitas vezes não se vêem como negros e não se identificam com os homens e mulheres negros e negras que no dia a dia são vítimas da violência policial mortífera e que compõem a maior parte da população carcerária. A razão pela qual os jogadores da NFL protestam não é fruto de um problema de injúrias raciais em campo. É parte de uma reação à revitalização da supremacia branca e aos casos frequentes de violência contra jovens negros principalmente, muitos com idades próximas aos dos jogadores.

A professora Ana Lucia Araújo, que leciona em Washington, afirma que muitos negros brasileiros ignoram a existência do racismo.

Quais as principais diferenças históricas e culturais entre os negros brasileiros e os norte-americanos no enfrentamento do racismo no esporte? E na sociedade como um todo?
O futebol no Brasil era inicialmente um esporte de homens brancos, onde negros não podiam atuar. Quando homens negros foram aceitos em times de futebol e começaram a constituir a maioria das equipes importantes, esse espaço do futebol se tornou um dos poucos lugares onde alguns homens negros brasileiros tinham a possibilidade de se tornar reconhecidos. Uma das grandes diferenças em relação ao contexto americano é que no Brasil nunca existiu legislação estabelecendo oficialmente a segregação racial. Esse elemento combinado ao câncer da democracia racial levou a população negra brasileira a acreditar na mentira de que o Brasil é um país onde não existe racismo, tornando difícil lutar contra ele. Do ponto de vista histórico, o Brasil teve uma sucessão de ditaduras ao longo do século XX que culminou com a ditadura civil-militar de 1964-1985, situação que impediu o desenvolvimento de movimentos negros fortes. Ora, nos Estados Unidos, desde o período da escravidão já existia uma legislação estabelecendo uma separação clara entre negros e brancos. Embora brutais, o racismo e a supremacia branca nos Estados Unidos também provocaram uma reação igualmente forte da parte da população negra. O esporte embora tenha suas particularidades também é um espaço político e os esportistas afro-americanos sabem de longa data que precisam também ocupar esse espaço como lugar de protesto.

Jogadores do Dallas Cowboys protestam contra a violência racial durante execução do hino nacional dos Estados Unidos. Foto: Matt Kardozian/USA Today Sports.

Quais as estratégias de superação do racismo no Brasil e nos Estados Unidos? Qual é o papel do esporte neste contexto?
Nos dois países as organizações negras, principalmente de jovens negros e negras, são os grupos que devem pautar quais são as estratégias para lutar contra o racismo e a supremacia branca. A educação é uma delas. A legislação brasileira já prevê o ensino de história afro-brasileira por exemplo. A ampliação das ações afirmativas para ingresso nas universidades públicas, não só na graduação como na pós-graduação, cotas para negros e negras em concursos de docentes no ensino superior e para o acesso geral ao serviço público também são estratégias. O reconhecimento público que a violência policial tem como alvo privilegiado a população negra e a criação de medidas para remediar essa situação que no caso do Brasil beira a definição de genocídio é outra medida. A descriminalização do uso de drogas e a reforma do sistema penitenciário são outras duas áreas também são cruciais. O papel do esporte pode ser de se tornar um espaço de promoção da diversidade racial e da tolerância.

Na várzea, preto x branco termina em churrasco

Há 38 anos, um grupo de amigos que jogava no Flor de São João Clímaco, time da várzea da zona Sul, decidiu mudar a tradicional pelada de confraternização entre casados e solteiros. A divisão dos times causou estranhamento. De um lado, negros. Do outro, brancos. Essa foi a maneira que o grupo encontrou para protestar – estavam no início dos anos 70 – contra a discriminação racial no País.

Os jogos, que envolvem vários times, desde as categorias de base até o veteranos, sempre terminam em um grande churrasco com a participação da comunidade da zona sul de São Paulo. “Aqui jogam pessoas que se conhecem há muito tempo. É como uma família que cresce a cada ano”, diz Anderson Silva de Medeiros, o Xuxu, um dos organizadores. O goleiro Beto de Óculos, um dos fundadores da partida, define assim a partida: “Não importa se é preto ou branco, a cor do sangue é a mesma”.

Jogos de várzea da zona sul fazem clássicos entre negros e brancos. Tudo termina em churrasco. Foto: Felipe Rau

A prática se espalhou por outros cantos da cidade e hoje é quase impossível contabilizar quantos jogos “Preto x Branco” existem em São Paulo. Em Itaquera, por exemplo, na zona lesta da cidade, Jordão Correa, pai do lateral-esquerdo Kleber, organiza seu futebol há 28 anos.

O campo que já foi terra, hoje é de grama sintética, um diferencial nos campos de várzea. Por outro lado, conserva tudo o que a várzea tem de característico, como centroavantes com mais de 70 anos, ex-jogador que viaja centenas de quilômetros para jogar, outro que diz para a mulher que volta logo e se emenda no churrasco. O samba acompanha todas as partidas. O preferido é “Sorriso Negro”, da sambista Ivone Lara. Os jogos são, antes de tudo, uma festa que já atravessa pelo menos três gerações.

A primeira partida começa por volta das 8 horas da manhã. Os cabelos grisalhos começam a povoar os vestiários e movimentar os dois lados do campo. A partida que reúne os fundadores e a velha guarda do Flôr do São João Clímaco é a que recebe o maior número de boleiros. Ao longo do dia, a faixa dos jogadores vai diminuindo com uma sucessão de equipes, sub-50, sub-40, sub-30 até o final do dia. Cada jogador se declara negro ou branco e “escolhe seu time”. Ao mesmo tempo que ressalta as diferenças da cor da pele, o jogo também promove a integração e o fim das diferenças.

Não fique quieto!

O Estado criou um e-mail para que você possa fazer denúncias sobre casos de injúria racial ou racismo que tenha presenciado em seu dia a dia, seja nas quadras, campos de futebol ou arquibancadas em que você esteja presente. Não fique quieto! Denuncie. O e-mail é chega.racismo@estadao.com

Outros canais de denúncia

Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
Esplanada dos Ministérios, Bloco A. Brasília/DF.
Telefone: (61) 2025-7000 a 7005
ouvidoria@seppir.gov.br

Fundação Palmares
Quadra 02, Bloco C, nº 256 Edifício Toufic CEP 70.302-000 - Setor Comercial Sul Brasília/DF
Telefone: (61) 3424-0100
ascom@palmares.gov.br

SOS RACISMO
Telefone: 0800-77-33-886
sosracismo@al.sp.gov.br

Decradi - Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
R. Brigadeiro Tobias, 527, 3º andar – Luz – São Paulo
Telefone: (11) 3311-3555

Textos: Gonçalo Junior / Edição: Robson Morelli