“Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo o seguinte, me entende. O Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbôlo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. (...) Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... o demônio na rua, no meio do redemoinho... O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.” Páginas 87 e 88
O sertão que serviu de cenário para o embate épico entre Diadorim e Hermógenes nunca esteve tão vazio de escolas, livros e gente. Nos últimos anos, a prefeitura de Buritizeiro (MG) fechou 38 das 50 escolinhas de primeira a quinta série do ensino fundamental que funcionavam na zona rural. No distrito de Paredão de Minas, a 85 km por estrada de terra da sede do município, local exato onde Diadorim morreu, a escola ainda está aberta, mas não há um único exemplar de Grande Sertão: Veredas ou outros livros de Guimarães Rosa na pequena biblioteca.
Nos anos 1950, quando o romance foi publicado, havia mais moradores no interior de Buritizeiro que nos dias atuais. Eram 6,5 mil pessoas nos sítios, fazendas e povoados. Hoje são 3,3 mil. O porcentual de moradores no meio rural despencou de 72% para 11% entre a década de 1960 e 2016. É um índice de concentração urbana elevado para um município que possui o quinto maior território de Minas Gerais.
A política de educação adotada pelo município não apenas foi impactada pelo decréscimo da população no interior como incentiva o êxodo rural. A centralização do ensino, com o fechamento de escolinhas no campo, tem levado famílias a se mudar para o centro de Buritizeiro para garantir o estudo dos filhos. No ano passado, a prefeitura fechou escolas do ensino básico nos lugarejos de Galhão, Felismone, Fazenda Chapahaus, Limeira, Marruás e Comunidade Sambaíba – esta última citada como lugar de passagem do bando de Riobaldo. A conta não inclui escolas fechadas por motivo de falta de alunos, como foi o caso da que funcionava em Cachoeira das Almas.
No cargo desde janeiro, a secretária de Educação de Buritizeiro, Kelen Bitencourt, avalia que, na cidade, as escolas estão mais preparadas para atender aos alunos. Ela diz que a centralização escolar trouxe economia para as contas do município e facilitou a vida de professores, que tinham de ficar até duas semanas fora para atender estudantes do interior. Hoje o município tem cinco escolas de primeira a quinta série, uma infantil e duas creches no perímetro urbano. Kelen, porém, reconhece que o fechamento das escolas no campo prejudica o desenvolvimento dos povoados rurais. “É um problema social que atrapalha as comunidades do interior”, afirma.
Há 24 anos na rede de ensino municipal, ela relata que nunca houve nesse período trabalho para divulgar o Grande Sertão: Veredas entre professores e alunos.
Paredão de Minas é um dos lugares que os moradores temem que desapareça. Nas três ruas do lugar, mais de 40 casas estão abandonadas. Com o predomínio dos eucaliptos, postos de trabalho nas fazendas diminuíram. O fim das carvoarias também representou desemprego. O posto dos Correios fechou há dois anos. Há ainda a preocupação de que a obra de uma usina hidrelétrica no Rio do Sono, um projeto antigo, possa acelerar o fim do distrito.
O Estado chegou no fim de uma tarde de novembro ao distrito de Buritizeiro descrito nas últimas páginas do romance de Guimarães Rosa. Uma chuva tinha passado por lá. Um filete de claridade do sol entre as nuvens carregadas se refletia nas pedras ovais e alaranjadas que formavam um caminho até as margens do Rio do Sono. O cerrado estava esverdeado, mas numa coloração pouco vistosa. Boa parte das casas do povoado estava abandonada. Não havia ninguém nas ruas.
Foi esse trecho do Rio do Sono que o bando de Riobaldo atravessou para o combate final com Hermógenes. Ali, no centro do povoado, Diadorim cravou a faca em Hermógenes, que sucumbiu. No embate, Diadorim foi ferida mortalmente.
O nome do lugar faz referência a um morro de argila vermelha na outra margem, já no município de João Pinheiro. Aqui, o Sono é encachoeirado, sujo, com uma cor vermelha, do barro arrancado das margens, dos pedaços de paus arrastados, dos afluentes tomados pela lama. “É tempo de entrada das águas”, explica Givaldo Barbosa, único comerciante do povoado.
A rede de energia elétrica chegou há alguns anos ao Paredão, mas o abastecimento é irregular. É comum o lugar ficar sem luz durante dias. Nas noites quentes e escuras do vilarejo, é possível ver um céu estrelado. Aves, insetos e répteis na folhagem da beira do rio tornam as noites barulhentas. Sapos maiores que codornas se confundem com as pedras arredondadas e amareladas da beira do curso.
Transporte escolar. A escola de ensino fundamental e médio de Paredão corre risco de ser fechada pelo governo estadual por falta de alunos. Em novembro, o governo deixou de pagar donos de vans de transporte escolar e pelo menos 30 crianças de sítios afastados do povoado deixaram de frequentar as aulas.
A professora Géssika Guedes Barbosa, de 30 anos, também está preocupada com a reforma do ensino médio proposta pelo governo. Formada em Engenharia de Alimentos numa faculdade de Montes Claros, ela temia não ter o contrato prorrogado para lecionar Filosofia, Sociologia e Artes no colégio.
Ela relata que a falta de merenda escolar é o outro problema. As crianças da zona rural acordam por volta das 4h30 para pegar a van. Na escola, só têm uma refeição às 9 horas, geralmente macarrão com arroz, e conseguem retornar aos sítios apenas depois das 14 horas. Algumas moram a 58 km do colégio.
Géssika pretende ampliar a pequena biblioteca escolar e lamenta que a história que fala do Paredão, da luta de Riobaldo e Diadorim travada com Hermógenes na margem do Rio do Sono, não esteja disponível para os estudantes do povoado. Não há um único exemplar do Grande Sertão: Veredas na biblioteca.
É do alto, num sobrevoo, que o rio parece acordar, ganhar uma força que não está visível para quem o olha de sua margem. As imagens mostram que o Sono, em frente ao Paredão, se abre, deixando de ser um rio qualquer. O paredão de argila que dá nome ao lugar passa a ter também uma dimensão superior, torna-se ainda mais avermelhado, como se estufasse diante das corredeiras. A vegetação ganha um verde intenso.
As notícias não são boas mais à montante. O Sono passa com pouca água pela ponte de concreto de sete colunas da estrada MG-408, na altura da Cachoeira das Almas, uma queda de 50 metros. Em situação mais dramática está o Rio Santo Antônio, que ali, num cânion, encontra o Sono. O afluente se transformou num caminho seco de pedras.
O garimpeiro aposentado Nestor Alves de Souza, de 79 anos, lembra do tempo da extração de diamantes no Sono. Filho de tropeiros, ele nasceu e sempre viveu no Paredão. Viu guerras de jagunços, fazendeiros fazerem pacto com o “coisa ruim” e muito peixe nas redes dos pescadores. O rio era lugar de pirás, surubins e dourados. O forte, porém, era mesmo a mineração manual. “O garimpo era o movimento daqui. Tinha dono de garimpo com 47 trabalhadores”, conta. “Hoje o diamante está mais fundo. Os mais velhos não têm mais condições de trabalhar. Os mais novos não querem.”
Ali no Paredão, após o combate com Hermógenes, Riobaldo decidiu deixar a jagunçagem. Ele abandonou o povoado consciente de que não veria mais seu grande amor. “Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas-Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida?”
O problema da falta de emprego também atinge o lugar para onde Riobaldo migrou após deixar a jagunçagem. “O campo está envelhecendo”, afirma Valdacir Martins Melo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí, cidade do noroeste mineiro. Ele afirma que uma geração de filhos da agricultura familiar conseguiu terminar o segundo grau ou mesmo fez curso superior em Agronomia e outras áreas, mas não consegue emprego na cidade ou nas empresas de agronegócio. Eles também não voltam para trabalhar nas pequenas propriedades das famílias, tendo de sobreviver de subempregos nos centros urbanos. “Não há incentivo para esse jovem voltar para trabalhar juntamente com o pai.”
Desemprego e violência atingem lugar onde Riobaldo reconheceu o amor por Diadorim
“A Guararavacã do Guaicuí: o senhor tome nota deste nome. (...) e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia de minha vida. O senhor veja, o senhor escreva. As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o mundo quer ficar sem sertão. (...) Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade.”página 264
“Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade.”página 132
Barra do Guaicuí, um lugarejo do município de Várzea da Palma (MG), pouco antes do encontro dos Rio das Velhas e São Francisco, entrou para a história da literatura como o lugar onde o jagunço Riobaldo chegou à conclusão de que gostava mesmo de Diadorim. As narrativas do lugar hoje são mais duras. O desemprego, que assola a região, faz dispararem os índices de criminalidade. A taxa de assassinatos por arma de fogo no município chega a 36,4%, acima da média nacional de 29,1%, segundo o Mapa da Violência 2016.
O poder público não conseguiu manter nem mesmo a fábrica de blocos de calçamento que instalou no povoado. Como é época de piracema, a localidade não pode contar com a renda extra deixada por pescadores profissionais que costumam jogar a linha na confluência dos rios. O rio está cada vez mais assoreado e sujo.
Oclênio Siqueira, de 18 anos, e Mateus Santos, de 19, contam que depois de um ano trabalhando em plantios irrigados de frutas, foram dispensados pela empresa. “Está muito difícil agora arrumar vaga nesse serviço. Todo mundo tá mandando funcionário embora”, diz Mateus. Ele relata que muitos amigos migraram para Uberlândia, onde atuam em granjas e comércios. “Tomara que dê uma melhorada, mas por enquanto não tem saída.”
Não foram apenas as empresas de irrigação que demitiram. Nos últimos três anos, duas siderúrgicas fecharam em Várzea da Palma, deixando sem trabalho 2 mil funcionários. Na vizinha Pirapora, as fábricas de tecido reduziram as ofertas de emprego pela metade. Uma grande siderúrgica opera apenas dois de seis fornos. Uma boa parte dos plantios de eucaliptos está sem colheita, por falta de comprador.
Oclênio agora trabalha numa olaria, de manhã até a tarde. Fatura R$ 800 por mês, sem carteira. Ele faz planos. Pretende montar um estúdio para fazer tatuagens. É um negócio que requer investimento. Uma máquina de fazer os desenhos está na faixa dos R$ 900, mais que seu salário. Enquanto isso, ele “risca” carpas, palhaços e gueixas nas peles de amigos e conhecidos com uma máquina que ele mesmo construiu. O motorzinho foi tirado de um aparelho antigo de DVD. Usou ainda carregador de celular e arames. A tinta que usa é a xadrez usada em pisos. Cada desenho custa em média R$ 50. “Freguês tem demais, o pessoal quer ficar com uma marca no corpo.”
Há também quem busca fazer marcas no tempo. Ali, na margem direita do Rio das Velhas, a ruína da Igreja de Nosso Senhor do Matozinho, construída por jesuítas no século 17, há décadas é alvo de vândalos, que aparentemente tentam deixar seu nome eternizado em pedras e rebocos. As inscrições se sucedem: “Gerson Santos, 1958”, “João, 03-12-90”, “EMM, 1973”, “Daniel, 20-2-99”, “Bia e Tonho, 2—2-90”, “Luan, 20-09-15”. Mas o que desperta a atenção do visitante é a gameleira que cresceu rente à parede do fundo do templo, alcançou o telhado e desceu para o altar, uma imagem que lembra a fábula inglesa João e o Pé de Feijão ou o conto Buriti, do livro Corpo de Baile, de Guimarães Rosa.
A gameleira que vive nas ruínas é motivo de orgulho dos moradores de Guaicuí, um lugar esquecido, quase perdido no tempo.
Grande Sertão está mais urbano
Veja a taxa de urbanização de 10 dos municípios onde ocorrem episódios do romance:
A mulher que tentou ser feiticeira
Olhos verdes, a gari Lindalva Gonçalves Rocha, a Lili, de 61 anos, lembra que o pai, Antonio Rocha, pagou uma professora para ensinar os quatro filhos homens a ler e a escrever. Ela e a irmã, Sílvia, não puderam participar das aulas. “Ele achava que a gente ia escrever cartas para namorados”, conta. A professora, porém, combinou com as meninas que durante a noite as ensinaria também, sem o pai delas saber.
Para despistar, as meninas diziam que iam cantar numa casa do Ribeirão de Areia, povoado onde moravam. Cantar era algo permitido às mulheres. “A moça arrancava as folhas de cadernos dos meus irmãos e dava a lição para a gente.”
Diferentemente de Diadorim, Lili não vestiu roupa de homem para buscar uma vida melhor na comunidade de agricultores pobres. Mas procurou escutar atrás das portas o que os homens falavam, especialmente casos de feitiçaria, parte com o demo, de gente que virava bicho, encantamentos. Aprendeu especialmente a língua do Grande Sertão. “A língua nossa é tudo diferente”, observa.
Ela fala dos homens que “suvertem”, isto é, ficam encantados. Desaparecem, deixam de ser vivos sem virar mortos. Também há aqueles que morrem “enviados”, isto é, por feitiço enviado por alguém. Já teve quem a chamasse de feiticeira na cidade. “Eu até tentei aprender feitiço, mas ninguém quis me ensinar. Não queria fazer feitiçaria, era só curiosidade”, diz. “Ah, mas hoje, a pessoa na cidade mata o outro na cara mesmo, sem precisar recorrer a feitiço. Tudo ficou muito difícil.”
Lili se casou aos 19 anos e teve 21 filhos. Na maturidade, se mudou com o marido para uma casa simples numa rua de terra de Chapada Gaúcha. Foi na cidade, depois dos 50 anos, que conseguiu emprego de gari da prefeitura e começou a frequentar a escola. “Aqui, a nossa língua é errada. Vira piada quando digo que transei pelas ruas, mas pra mim transar é andar.”
Ela não guardou mágoas do pai e sua educação machista. “Ele me ensinou a viver, a crescer, a ser, a trabalhar, a fazer favor para os outros.” Lili diz, porém, que se tivesse ido além na leitura de livros, nos ensinamentos, poderia ter guardado histórias dos mais velhos. “Você sabe, toda história é realidade. Fica velha, mas é história.”
Riobaldo descreve que a relação dos jagunços com as mulheres, no tempo de ataques, era de violência e barbárie. Numa passagem pela Barra do Guaicuí, ele narrou: “O dono da venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia de explicar à gente, de dia e de noite, como elas eram, formosuramente. – ‘Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher...”