“Depois, mesmo Goiás abaixo, a vago. A esses muito desertos, com gentinha pobrejando. Mas o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê: é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos... Rodeando por terras tão longes; mas eu tinha raiva surda das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva – porque eu não era delas, produzido.” página 471
Migrantes do Grande Sertão foram os pioneiros de Brasília. Mas a odisseia desses primeiros “candangos”, como ficaram conhecidos os trabalhadores que construíram a capital, é ignorada pelos livros.
“É um mito que os primeiros candangos vieram do Nordeste. Os nordestinos só chegaram a partir de 1958, na grande estiagem no semiárido”, afirma o historiador Gustavo Chauvet, autor de Brasília e Formosa: 4.500 anos de História, lembrando que os mineiros e os próprios goianos é que foram os primeiros a chegar para construir a capital.
No romance de Guimarães Rosa, o bando de Riobaldo e Diadorim tem dificuldades para chegar a Santa Luzia, atual Luziânia, um dos municípios goianos que cederam terras para a instalação de Brasília. “Nós dois em dianteira, par de homens; um diabo de calor; e os cavalos pisavam légua destinada de cristal e malacachetas. Céu e céu em azul, ao deusdar. O senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo”, narrou Riobaldo. Os jagunços passaram uma temporada no sertão que mais tarde abrigaria os três Poderes da República.
Não menos difícil foi a travessia de milhares de mineiros que deixaram seu Estado natal para produzir os tijolos usados nas obras da capital. Dezenas de olarias foram abertas nas margens dos Rios Santo Antônio da Papuda – uma referência ao bócio, muito comum na época – e Mata Grande. Ali se formou São Sebastião, hoje uma cidade de cem mil habitantes no Distrito Federal.
Um dos pioneiros, Antonio Soares Ferreira, de 70 anos, veio de Patos de Minas com os pais para trabalhar nas olarias. O ritmo nas pipas – locais de socar o barro – e nos fornos era frenético. Sua mãe, Rita, não resistiu à precariedade do lugar e voltou doente para Minas, onde logo morreu. Como a área era concessão do governo a empresários para produzir tijolos, funcionários que moravam nas terras das olarias só podiam construir casas improvisadas de madeira e madeirite.
Nas olarias, Antonio conheceu Leontina Caldeira, hoje com 62 anos, mineira de Unaí, que trabalhava de doméstica nas casas dos primeiros funcionários públicos de Brasília. Tiveram sete filhos. Foi uma época áspera. Tempos depois, o governo construiu na região o Presídio da Papuda. A área das olarias foi batizada de Agrovila São Sebastião. Lá viviam pouco mais de dez mil pessoas.
Foi nos anos 1980, quando moradores de outras cidades montaram barracos ao redor das olarias, que Antonio realizou o sonho de abrir o próprio negócio. Comprou um burro para amassar barro, construiu um forno e pôs os filhos para ajudar. A Olaria Veredas virou um lugar de resistência num cenário de invasões e destruição de fontes de águas e de parte do buritizal que deu nome ao pequeno empreendimento.
Ele tinha medo de fazer uma casa de tijolo e o governo lhe tomar a olaria. Há menos de dois anos, Antonio achou que era hora de fazer a construção. “Cheguei rapaz, quando Brasília estava em construção. Até hoje nunca deixou de crescer”, observa. “Vai mudando muito. Onde há crescimento, há benefício e malefício. Para uma cidade em construção, vem gente de todo jeito. Não tem como separar o joio do trigo.”
Em São Sebastião, hoje com cem mil habitantes, veredas que haviam sobrevivido à expansão urbana acabaram invadidas. Numa delas surgiu a Vila Green. Famílias sem renda vindas de várias regiões do País montaram barracos e casas de tijolo em aterros improvisados na área alagada. Buritis servem de apoio a caixas d’água. O pedreiro paraense Antônio Souza, 50 anos, e a diarista e babá maranhense Raimunda Nonato de Castro Magalhães, 46, moram com seis crianças numa casa sem reboco ao lado da vereda. “Tem duas semanas que não aparece um bico”, relata Antônio. “A crise complicou.” A família sobrevive com uma bolsa paga pelo governo a um dos filhos, que sofre problema de saúde. O casal teme ficar sem teto, pois o governo do Distrito Federal tem demolido casas em áreas de preservação.
Desde o lançamento de Grande Sertão: Veredas, o interior mineiro mantém a sina de mandar seus filhos para as periferias pobres de Brasília. Atualmente, a Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (RIDE), como é chamada a mancha urbana de Brasília e dos 19 municípios goianos e três mineiros, abriga 4,2 milhões de pessoas. A previsão é de que, em poucos anos, chegue a 5 milhões.
O crescimento desordenado da mancha da capital se revela com o aumento das cidades ao redor do Plano Piloto. Ceilândia, cidade administrativa do Distrito Federal, tem 489 mil moradores, número superior ao das maiores cidades do Grande Sertão, como Montes Claros (394 mil), Paracatu (84 mil), Unaí (77 mil), Janaúba (70 mil), Januária (68 mil), São Francisco (56 mil), Pirapora (56 mil) e João Pinheiro (45 mil). A relação de Brasília e do Grande Sertão se dá não apenas pelo êxodo, mas pela aproximação de cidades. As mineiras Buritis (23 mil moradores), Cabeceira Grande (6,7 mil) e Unaí integram tanto o noroeste de Minas quanto a RIDE.
Do total de habitantes da mancha urbana formada a partir da construção da nova capital, 69% estão no Distrito Federal. Boa parte dos municípios do Entorno é de cidades-dormitório. O IDH do Distrito Federal chega a 0,824, um dos mais altos do País. O índice, porém, inclui toda a área do Plano Piloto, de famílias de alta renda. Desde os anos 1990, quando o então governador Joaquim Roriz criou mais de 20 cidades para abrigar migrantes, o Distrito Federal passa por um processo de favelização, com a população cada vez mais longe do Plano Piloto e da qualidade dos serviços públicos.
Nos anos finais de vida, Guimarães Rosa confidenciou a amigos que pensava em escrever um livro do estilo e da monumentalidade do Grande Sertão: Veredas ambientado numa cidade. “Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?”, questiona Riobaldo. Em outra profecia, o jagunço diz: “Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente”.
Redutos de migrantes, porém, contradizem o protagonista do romance. São Sebastião, por exemplo, tem 34,3 mortes por cem mil moradores. Na vizinha cidade de Paranoá, o índice chega a 90 por 100 mil habitantes, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. A média brasileira em 2014 foi de 29,1, segundo o Mapa da Violência.
COLETIVO REESCREVE HISTÓRIA DE BRASÍLIA
A história de Brasília fala do funcionalismo público que veio do Rio de Janeiro, dos militares e dos nordestinos. Mas os oleiros que produziram os tijolos para os prédios e muros da capital ficaram sem espaço na história oficial. Coletivo de artistas e intelectuais, o Movimento Super Nova pretende contar a história dos primeiros migrantes que deixaram Minas Gerais para se instalar em São Sebastião. Memórias Oleiras, Tijolo por Tijolo tem apoio do Fundo de Cultura do Distrito Federal.
Integrante do grupo, Edvair Ribeiro dos Santos lembra que cada tijolo maciço levado para o canteiro de obras de Brasília tinha dez centímetros de largura, 22 de comprimento e seis de espessura. Com pressa para gravar depoimentos de pioneiros, ele estima que nos últimos sete anos morreram 50 dos 356 antigos moradores catalogados para contar suas histórias. “Tudo girava em torno do tijolo”, lembra. “O dono do mercado vendia com base no tijolo, 800 tijolos para determinada quantidade de mercadoria.”
O coordenador do grupo, Paulo Dagomé, poeta e artista plástico, diz que os pioneiros foram sumindo da história de Brasília. Os oleiros, em especial, começaram a se diluir em meio à chegada em massa de novos moradores nos anos 1990, quando as olarias entraram em decadência e suas terras viraram lotes para moradores de cidades como Ceilândia, Taguatinga e Gama. Filhos dos pioneiros não tinham mais espaço nos quintais de seus pais e se instalaram em São Sebastião para fugir do aluguel. “A gente não sabia que os oleiros eram tão importantes para a história de Brasília”, afirma.
Na avaliação do jornalista e cineasta Gustavo Serrate, Brasília costuma ser mostrada como um lugar sem raiz. O projeto cultural é uma forma de agregar os mais jovens e afastá-los da criminalidade. Ezequiel Farias de Sena, o Zeca, de 15 anos, é o mais novo integrante do grupo. Ele auxilia Serrate nas gravações dos depoimentos. Do coletivo também surgiu a Espaço Sideral, uma produtora de videoclipes voltada a artistas da cidade.
Planaltina mantém tradição dos carreiros de bois
Planaltina viu uma capital federal ser construída em seu território. Mas a cidade colonial resiste, com seus carros de boi. A Associação dos Carreiros de Planaltina e Entorno reúne mais de 200 integrantes. São produtores rurais que não abrem mão de exibir nos municípios ora rurais, ora urbanos, impactados pela explosão demográfica de Brasília, o meio de transporte de mercadorias e produtos que se transformou num símbolo dos sertões. Os carreiros chegam a ser formados por 20 animais. “Ao que, mais, no carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o senhor em seu jipe resolve”, diz Riobaldo, no romance de Guimarães Rosa.
JARDINEIROS E PEDREIROS VOLTAM PARA A FOLIA
“...Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do Pardo... Também onde forma calor de morte – mas em outras condições...” página 29
O jardineiro Rael Rodrigues Teixeira, de 25 anos, decidiu juntar o dinheiro que ganhou em oito anos de trabalho nos condomínios e prédios de Brasília para voltar, no ano passado, para sua cidade, Chapada Gaúcha, no norte mineiro, a 345 km do Distrito Federal. “Tinha saudade demais do pai e da mãe”, diz.
O setor da construção civil em Brasília vive um momento de estagnação. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego indicam que, nos últimos dois anos, houve redução de postos de trabalho com carteira assinada, após 13 anos de aumento da oferta. Ao longo de 2016, 2 mil vagas foram fechadas por mês, em média.
Rael e um primo alugaram um cômodo e estão montando um pequeno lava-jato no centro do município. Por enquanto, sobrevive com o salário de R$ 1,2 mil de um trabalho como guarda no Parque Grande Sertão Veredas. “Por ora, não volto pra Brasília”, diz, num misto de incerteza e vontade de ficar.
É ele quem sugere ao Estado visitar a comunidade de Buraquinhos, onde moram seus pais e irmãos. “Vocês vão encontrar uma folia. A gente brinca lá. Meu pai é o alferes, um dos comandantes. Sou filho de João Grilo.” O nome do povoado, um reduto de descendentes de escravos, faz referência a buracos cavados no bico por araras vermelhas, para fazer ninho nos paredões de arenito que cercam a comunidade.
Em Grande Sertão: Veredas, o jagunço Riobaldo registra que os “pretos” dos povoados do Vão-do-Buraco sabiam cantar “gabos” em sua língua da Costa. E que a região tinha o “calor da morte”. Em outros trechos do livro, descreve a região de cânion como o lugar em que recebeu apoio na luta contra o rival Hermógenes. “Viemos vindo atravessando o Pardo e o Acarí, em toda a parte a gente era recebida bem”, narrou. “Tardou foi para se ter sinal dos bandos de Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam ao nosso lado.”
Nos 40 km de estrada de terra até Buraquinhos, Rael relata que no início achou Brasília o “máximo”. “Na verdade, Brasília é uma cidade violenta”, conta. Ele morou em Ceilândia e São Sebastião, cidades da periferia do Distrito Federal. Trabalhou em reformas de quitinetes e, depois, nos jardins de um conjunto do Programa Minha Casa Minha Vida. E perdeu conhecidos para a criminalidade, a maioria por envolvimento em drogas. “Um primo, o Jivanildo, foi assassinado em São Sebastião. Ele reagiu a um assalto”, relata. “Antes de vir pra cá, dois homens levaram meu celular e minha carteira. Deu um trabalho danado tirar de novo os documentos.”
Ao longo do caminho, uma vasta área plana está coberta pela soja. Foi ocupada por empresários gaúchos nos anos 1970, com patrocínio do regime militar. O lugar pertencia ao município de São Francisco. Em 1994, a comunidade gaúcha conseguiu a emancipação. A soja ficou no plano do alto dos platôs, não desceu o Vão do Buraco, um vale de arenitos de argila nas cores amarela, laranja, branca e vermelha.
O desinteresse dos gaúchos pelas terras de baixo garantiu a preservação de veredas, matas e boa parte do Rio Pardo, um dos cursos citados no Grande Sertão: Veredas. As formações de argila dão um aspecto único ao lugar.
Em Buraquinhos, Rael muda de semblante. É entre veredas, rios e precipícios que o jardineiro diz se sentir realizado. “Tempo de folia é muito bom. A gente fica no grau e percorre a região, casa por casa, emenda dia e noite.”
Paramos no boteco do Pedrinho. Uma chuva começa a cair. Depois, chegam os primeiros homens a cavalo para participar da folia. Com um chapéu branco de aba, Deodato Ferreira da Silva, de 55 anos, o Dió, veio do povoado da Aldeia, a 10 km. Logo em seguida chega Jivaldo Pereira dos Santos, de 57, morador do Buraco, mais acima. Ele é o organizador da folia. “Quando era criança, meu pai me colocava em cima do cavalo para participar da folia”, lembra. “De noite, quando chovia, me amarrava com uma toalha na sela do burro para eu não cair.”
Jivaldo viveu 11 anos em Brasília, onde atuou como pedreiro e chacareiro. Mesmo não deixou de organizar a festa dos Santos Reis no Buraco e no Buraquinhos. Nos últimos anos, passou as “tabelas” – letras de músicas da folia – a Isaías Ferreira da Hora, de 39 anos. “Se eu for antes do seu Jivaldo, ele continua a tradição. Se ele for antes de mim, eu continuo.” Jivaldo se emociona e chora.
A folia começa na casa de um morador a uns 7 km do bar do Pedrinho. Até lá, é preciso atravessar de carro quatro vezes o Rio Pardo, que serpenteia as formações de arenito e o cerrado. O solo é seguro, não afunda o carro. Na primeira noite da folia, um senhor de corpo robusto, atarracado, se sobressai. É João Grilo, pai de Rael. João José Teixeira, de 65 anos, exibe a bandeira de pano com os desenhos dos reis magos. “Fui para Brasília garoto trabalhar na construção daqueles prédios. A cidade tinha só 7 anos”, lembra. “Quem trabalha movimentando massa de cimento convive com todo tipo de gente. Sei como é o rosto de homem de bem e o de ladrão.”
Responsável por levar a bandeira, Deodato passa o estandarte na cabeça dos homens que participam da festa e estão em roda, em frente à casa. Alguns se ajoelham. Depois, entram na residência e começam a tocar e cantar diante de uma lapinha, um pequeno altar feito de folhas de buriti e flores de gravatá. Dentro da casa de teto escurecido pela fumaça do fogão à lenha, uma estampa de São João, um desenho de Nossa Senhora Aparecida. As mulheres ficam na cozinha. Meninos e meninas disputam espaços nos cantos das portas para acompanhar a apresentação. Os homens estão com velhos violões, cavaquinhos, pandeiros e chocalhos. São 25 minutos ininterruptos de uma melodia sem alterações. Em seguida, dançam o lundu, em pares, um de costas para o outro.
Deodato retira de um bornal um litro de aguardente com diversas ervas do cerrado e dá um cálice da bebida a cada folião. O ritmo fica mais veloz. Fazem uma roda, depois organizam uma cenografia, que chamam de quadrilha, trocando de posições, como se estivessem trançando uma corda com os corpos. Outras garrafas de bebida passam de mão em mão.
Os homens estão quase em transe quando começa a ser servido o jantar numa mesa improvisada do lado de fora da casa. Ali, moradores oferecem paçoca de carne de porco, arroz, macarrão, feijão e sucos. Durante a noite, foliões se revezam nos instrumentos musicais e na adoração à lapinha.
Já de manhã, a primeira parada é num cemitério. A cruz que marca a sepultura da sogra de João Grilo está tomada pelo cerrado. Ele conta que escreveu num pé de gonçalo, uma árvore frondosa, a data da morte dela. A árvore engrossou, o tempo apagou o registro. Em outro cemitério na mata, o folião Valmir de Moraes conta que ali está enterrada uma irmã que morreu em trabalho de parto. A filhinha também morreu. Sem caixões, os corpos foram levadas à sepultura sobre um estrado de buritis.
João Grilo retoma a caminhada, agora por uma trilha estreita na mata. Uns vão a cavalo, outros de motocicleta e a maioria a pé. Mulheres e crianças são as últimas. Cada palmo de cerrado tem uma história para essas pessoas. Num trecho da estrada, João Grilo mostra o primeiro buriti em que subiu na vida. Passou a infância ali.
O folião Milton Pereira de Moraes, de 29 anos, que recebeu o apelido de Cabelinho pelo corte estilo punk, quer saber a história do alferes. E também conta sua história. Trabalhou em eucalipto por alguns anos. Com a crise, voltou para a comunidade. “Conheço todo o processo do eucalipto, do plantio ao corte”, afirma.
Em meio a cantos que ecoam entre os paredões que cercam Buraquinhos, os foliões “giram” por cemitérios, casas e sítios em homenagem a vivos e a mortos, ao que passou e ao que passará. Abaixo das montanhas, a manhã é úmida, mesmo com sol intenso. A luminosidade realça as cores do cerrado. Ao longo do caminho, surge vermelha, intensa, a caliandra, também conhecida por flor do diabo e ciganinha. Formada por dezenas de cerdas finas, semelhante a uma vassourinha, nasce em terras secas, entre pedras e areia. À noite, se fecha. Arrancada do chão, resiste por poucos minutos.
Pelo caminho se encontra um pau-d’arco, árvore baixa, frondosa e retorcida, carregada de folhas amarelas. Um olhar mais atento permite ver centenas de flores e fungos minúsculos de formas e cores variadas. Pequenas orquídeas, lá chamadas de sumarés roxas, azuis, lilases e rosas, cordão-de-são-francisco – flores laranjas encravadas e um núcleo espinhoso –, amor-em-balança – uma flor branca, em calda. Longe dos mais velhos, os jovens seguem cantando versos. “Morena o seu bico caiu, deixa que eu apoio ele pra você”, diz um deles. “Não, não, não, não posso vender o colchão/ Minha mulher não pode dormir no chão”, destaca outro. “Em cima daquela serra, eu vou pilar café/ Abre a roda menininha, que papai não quer.”
Guarda do Banco do Brasil volta para seu Quilombo
“Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha ao meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o Governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí...” página 23
No fim dos anos 1950, o então presidente Juscelino Kubitschek levava à frente seu plano de construir uma nova capital no Planalto Central. A aventura desenvolvimentista contagiou parte dos políticos, empresários e intelectuais que, no ímpeto, viram o segundo maior bioma do País como algo ligado à melancolia e à solidão. “No princípio era o agreste: o céu azul, a terra vermelho-punjente/ E o verde triste do cerrado”, destaca a letra de Brasília, Sinfonia do Alvorada, de Vinicius de Moraes.
O entusiasmo de Juscelino alterou a vida de uma parcela significativa dos moradores do Grande Sertão. Aureliano Lopes dos Reis, de 104 anos, largou a agricultura e o garimpo em Paracatu para trabalhar na construção do trecho da BR-040 que ligava Belo Horizonte a Brasília. Ele chegou à nova capital com o asfalto. Na cidade em obras, morou no Morro do Urubu, na Invasão do IAPI e no Curral da Égua, núcleos de moradias improvisadas de trabalhadores dos prédios do Plano Piloto.
Aureliano trabalhava nas obras e, em momentos de folga, vendia milho assado. “Eu comprava milho no (Núcleo) Bandeirante e vendia no cinema, na feira do Cruzeiro. Assava espiga e vendia”, lembra. “Fiquei nove meses pregando taco no Banco do Brasil. Aí, fui trabalhar em condomínio na W3 Sul, quase dois anos ou mais. Fiquei ainda um tempo de guarda no Banco do Brasil.”
Antes mesmo de ser inaugurada oficialmente, Brasília já tinha 64 mil moradores em situação precária. Em 1970, Aureliano e outros moradores de invasões foram transferidos pela Campanha de Erradicação de Invasões, a CEI, para uma cidade-satélite recém-construída, a Ceilândia. Era o início da cidade que hoje é a mais populosa do Distrito Federal. “Ganhei lote na Ceilândia. Fiz um barraco lá. Mas a mulher não quis ir.”
A mulher, Luísa, e as três filhas continuaram no sítio do noroeste mineiro. Em 1977, Aureliano viveu um dos momentos de maior emoção em Brasília: o velório e enterro de Juscelino Kubitschek. Uma multidão acompanhou o carro com o corpo da Catedral de Brasília, na Esplanada dos Ministérios, até o Cemitério Campo da Esperança, no final da Asa Sul. Ele lembra que a imagem do ex-presidente foi projetada num telão para a multidão ver. “Pegaram ele, puseram num quadro no mode de um espelho e de longe a gente via, no retrato.”
Com a aposentadoria, Aureliano voltou a Paracatu, mais precisamente à comunidade quilombola de São Domingos, onde nasceu e foi criado em meio às festas religiosas e à caretada, dança em que homens usam máscaras na véspera de São João, em junho. Lá também tocava xique-xique, um instrumento musical. “Nasci aqui neste quintal no dia 16 de junho de 1912. Meu pai não conheci. Quando ele morreu, eu estava com três meses de nascido. Morreu de coração. Minha mãe morreu com 90 e poucos anos. Meu avô, Pedro Noronha, morreu com 110, morava ali”, conta. O avô foi escravo. “Hoje toda cidade aumentou muito.” Ele avalia que o segredo da longevidade está na alimentação. “Naquele tempo, a vaca tinha tempo para engordar. Hoje, em quatro dias estão matando a vaca.”
Na volta, o Córrego São Domingos, que garimpou na infância e na juventude, já não tinha mais ouro, muito menos o mesmo volume de água. O cerrado que conheceu estava destruído. “A gente pegava (ouro) na bateia. Quando chovia muito, dava enxurrada, a gente saía para pegar.” Antes de se empregar nas obras da BR-040, Aureliano ainda tentou a sorte no garimpo de cristal aberto na cidade vizinha de Cristalina, do lado de Goiás. Sem rodovia, a travessia do Rio São Marcos era por balsa. “A gente resolveu ir pra lá a pé. Comia rapadura com farinha e tinha medo era de onça, lobo.”
No estudo em que analisou imagens de satélite do Grande Sertão, o engenheiro florestal Guilherme Braga Neves ressalta a necessidade de aumentar o espaço das unidades de conservação para proteger não apenas a fauna e a flora, mas a biodiversidade cultural. “A redução de impactos ambientais no bioma Cerrado é de suma importância para garantir às futuras gerações a possibilidade de conhecerem os atrativos existentes.”
Foi esse mosaico de culturas que moldou uma das personalidades mais complexas e fascinantes da literatura. No romance ‘Grande Sertão: Veredas’, o jagunço Riobaldo avalia que sua narrativa tinha chegado ao final após descrever a morte de Diadorim. “Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”, afirma, velho, aposentado da jagunçagem. Ao olhar para trás, ele avalia, no entanto, que não deixou de fazer as travessias impostas pelo tempo e acordar cedo para acompanhar o amanhecer. “E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras”, diz. “O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”