XI

Isolados

‘Caceteiros’ querem panelas e espingardas

Os ‘dslalas’, mais conhecidos por corubos, estão mais dependentes e cobram direitos garantidos a outros índios

Quando conheci a aldeia de Maya Korubo, uma índia altiva e enérgica, na expedição de 2002, o grupo dela andava nu, com o corpo pintado de urucum, nuca raspada e franja saliente na testa. Os homens usavam um fio de cipó na cintura para amarrar o prepúcio. Sem o costume de adornos sofisticados, eles exibem apenas um witsun, uma braçadeira, ou txuam, um colar, confeccionados de cipó. Agora, sabe-se que os “caceiteiros”, como são chamados pelo uso implacável de bordunas de até dois metros, se autorreferem “dslalas”.

Xixu, marido de Maya, pouco falava. Era a líder do grupo que mais se sobressaía na conversa traduzida por índios matises que serviam de guia na viagem. Maya tem fala fina e, ao mesmo tempo, incisiva. Ela ficava numa rede, com postura de líder. Os corubos do grupo viviam isolados das demais etnias, em processo bem mais avançado na relação com os brancos das cidades da região.

Nenhum povo do Alto Solimões viveu em clima de guerra intensa como os corubos. Eles morreram e mataram pela terra. Os primeiros registros da presença dos corubos são do começo do século 20, quando esses índios eram caça de seringueiros em busca de borracha.

A Funai iniciou a tentativa de contatá-los nos anos 1970, para garantir a construção da Perimetral Norte, estrada que nunca saiu do papel. Na década seguinte, sob pressão de madeireiros e caçadores, os corubos viveram uma diáspora. Fabrício Amorim, coordenador de Proteção e Localização de Índios Isolados da Funai, relata que a etnia se dividiu. Um grupo foi para o Quixito, outro para o Curuena, um terceiro para o Coari e um quarto para o Itaquaí. “Há relatos de índios da etnia tsohom-djapá, do Rio Jutaí, sobre um povo agressivo, que chegou matando”, diz. “Muito provavelmente ocorreu uma diáspora de corubos causada pela pressão sobre seu território”, completa. “O ano de 1987 foi muito duro para eles. Foi um tempo de muitos massacres.”

A pressão também vinha de empresas estatais. Em 1985, corubos mataram um funcionário da Petrobrás que fazia trabalho de localização de petróleo. Quatro anos depois, Maya teria influenciado um grupo de índios a fazer uma viagem até as proximidades da base da Funai, que começava a ser construída na beira do Ituí, onde poderiam obter machados. O deslocamento resultou em tragédia. Três corubos foram assassinados a tiros. Um deles era marido de Maya.

Tempos depois, Maya se desentendeu com parentes de sua aldeia e, com seu novo companheiro, Xixu, e outros índios, foi embora para formar uma nova comunidade. Ela não conseguiu levar a filha, Lalanvet, ainda pequena. No novo local onde formou sua aldeia, o grupo de Maya aceitou contato, em 15 de outubro de 1996, com o sertanista Sydney Possuelo, depois de quase dois meses de tentativas. O contato dos 18 índios foi necessário porque os corubos estavam tendo atritos com outras etnias do Javari.

Com a consolidação da base na confluência do Ituí e do Itaquaí, o Vale do Javari foi fechado para exploradores brancos. A medida aumentou o número de bichos e de pessoas nas aldeias isoladas. As comunidades em contato com a sociedade nacional, como as dos marubos, matises, maiorunas e canamaris, também aumentaram. Os grupos isolados dos “flecheiros” e dos tson-djapás, nas cabeceiras do Jutaí, dos cabeludos, nas nascentes do Jandiatuba, e dos corubos, no Rio Branco, tiveram aumento populacional. É comum chamar de “flecheiros” todos os povos do Javari que usam flechas.

O grupo de Maya tinha poucas mulheres. Há cerca de dois anos, os índios da aldeia dela partiram para a mata em busca de companheiras no grupo dos parentes com os quais tinham se desentendido anos antes. Os parentes os receberam com bordunadas. A expedição foi frustrada. Feridos, os índios correram.

Crianças da etnia corubo. Dida Sampaio/AE.

Urucum. Da expedição de 2002, lembro de Maya indo até uma roça atrás da maloca e voltar com sementes de urucum nas mãos. Sentou num tronco derrubado e, ali, espremeu entre as mãos os pequenos caroços. Depois, acenou para nos aproximar. Ela pintou nossos rostos. Parecia alegre na sua vida de simplicidade e relação intensa com a floresta.

Agora, numa manhã de sol de maio de 2015, entramos na voadeira para rever Maya e seu grupo. A comunidade, chamada Tapalaya, está mais perto da base, a três voltas do rio. Após uma hora e meia de viagem, chegamos a um pequeno ancoradouro da aldeia, onde crianças brincam nos galhos das árvores das margens do Ituí. Umas vestem roupas, outras não. Subimos em uma pequena elevação para chegar à aldeia. Há muita sujeira e cachorros magros cheios de feridas, coisas que não existiam. Tenho a impressão de que os índios ainda nus só não usam roupa por falta de condições. O pior é que aqueles que conseguiram vestidos e bermudas velhas e rasgadas não adquiriram o costume de lavá-las e, assim, evitar fungos e bactérias.

Muitos indígenas estão com as costas cheias de picadas de piuns e carapanãs. Em 2002, eles estavam numa aldeia um pouco mais afastada do rio, onde os insetos são mais comuns. A presença deles aqui talvez facilite o trabalho de gente do governo e de ONGs.

Maya, de chapéu e camisa branca, entre outros corubos. Dida Sampaio/AE.

Desta vez, Maya veste bermuda jeans, blusa folgada e chapéu de pano. Diferentemente da primeira visita, quando fomos recebidos em silêncio, agora os corubos prepararam uma dança. O ritual ocorre dentro da maior maloca da aldeia, uma casa retangular, com cobertura de duas-águas feita de folhas de palmeiras até o chão e portas nas duas extremidades. Em meio à fumaça e ao fogo dos pequenos fogareiros, dançam abraçados uns aos outros, com os olhos firmes nos olhos de quem está ao seu lado, sem piscar, sem desviar a atenção. Estão mais íntimos dos brancos. Também participamos da dança.

Reconheço Malevo, hoje com 34 anos, também altivo, que retratei nu e com uma borduna em foto publicada na capa do Estado em 2002. Desta vez, ele veste uma bermuda azul, mas mantém a arma. Em 2003, casou-se com Lalanvet, atualmente com 26 anos, e teve os filhos Tixixompi, um menino de 11 anos, e Kétsi, uma garota de 5.

No dia 16 de abril de 2013, morreu a terceira filha do casal, Nailó Maluxi, com apenas 20 dias. A Sesai não registrou a causa. A malária é outro tormento na vida dos corubos. No ano passado, 38 deles tiveram a doença. Agora, durante nossa visita à aldeia, são três casos – duas da malária falsípara, forma mais forte do doença, e uma da vivax. O tratamento é prejudicado pela falta de um dos medicamentos. A Sesai ainda não mandou o remédio.

Depois da dança, os corubos nos convidam para sentar em pequenos bancos em forma de tartaruga. Ali tem início uma conversa de quatro horas e meia, traduzida por Makê Matis, que trabalha na base da Funai, índio de uma etnia que fala língua do mesmo tronco dos corubos. “Para que fizeram contato com a gente?”, questiona Xixu, ao reclamar da falta de assistência do governo.

Na roda de conversa, Malevo diz que a comunidade precisa de motor e espingarda para caçar. Eles viram os matises e marubos com armas de fogo e acham que também têm direito de possuir esses objetos. A Funai ainda não decidiu se deve fornecer espingarda para o grupo. Malevo conta ainda que conseguiu fabricar farinha em quantidade suficiente para comprar um motor. O grupo pretende aumentar a produção, mas por enquanto enfrenta dificuldade para vendê-la. É fácil perceber na expressão de Malevo uma sensação de desânimo por não receber da Funai o mesmo tratamento que um matis. Imagino que o índio se sinta tratado como uma criança. O que eles querem não é uma arma mais potente para caçar, mas um instrumento que os compare às outras etnias do Javari.

A Possuelo, Xixu aumenta as queixas contra o governo. “Você ajudou nós, vinha sempre. Agora não vem mais. Foi embora”, reclama. Possuelo explica que não pertence mais à Funai. “Eu não fui embora da Funai porque quis. Foi porque chefe grande brigou comigo.” Malevo lembra que antes a aldeia recebia machados e terçados.

Panelas. Há poucas panelas de barro na aldeia. Os índios utilizam mais panelas de alumínio. Maya mostra conchas e panelas de alumínio de diferentes tamanhos. Agora quem faz a tradução é Tavan, um adolescente da própria comunidade que passou um tempo na base da Funai para aprender português. Ele explica que Maya precisa de mais utensílios naquelas medidas. Também necessita de lanternas e facões. Maya não aceita um pequeno faqueiro que Possuelo lhe oferece. É visível que o “presente” não lhe agradou.

‘É um momento de muitos embates de forças’

Os corubos estão numa transição entre a vida isolada, um conhecimento maior do mundo de fora da aldeia e a dependência do Estado. São controlados pela Funai, uma entidade com desafios orçamentários, que o Planalto evita equipar com uma estrutura mínima de trabalho para seus funcionários. Na beira do rio, os índios são forçados a viver no ritmo e na cultura dos brancos, sem condições materiais para que a nova vida seja digna.

Após a visita, Possuelo comenta a situação da aldeia de Maya. “É uma população diminuta, pequena. Os valores são de sobrevivência na selva. Mas quando você pega esse povo dentro desses valores e os contrapõe aos nossos valores não dá certo. Tanto que não há integração entre índios e cidades, só conflitos. É um momento de muitos embates de forças.”

O sertanista avalia que os valores que garantem a sobrevivência dos corubos na selva, de mitos, costumes, ritos, tradições e experiências milenares, não resistem na sociedade das cidades. “Todo esse conjunto de valores não funciona na nossa sociedade. Não adianta, não adianta querer. Eles e nós somos individualistas, mas nosso individualismo leva o homem a querer o que não lhe pertence, a meter a mão no que não é seu. De certa forma, esse individualismo também existe entre os índios, mas não é exacerbado. Na nossa sociedade, o outro não é considerado.”

A situação dos corubos perturba o sertanista, que se sente responsável pelo grupo. Afinal, foi ele quem fez contato, há quase 20 anos. A ânsia de Maya em querer mais e mais panelas deixou Possuelo triste. “Eles estão entre dois mundos. Quem oferece mais, eles seguem, pois a necessidade é grande. Nós empurramos um monte de parafernália para eles, que se acostumam e querem sempre mais”, observa. “Eles querem sobreviver.”

A atuação dos agentes públicos na aldeia ocorre num momento dramático da vida do grupo. “Os interesses são múltiplos dentro da aldeia. Os mais velhos têm uma visão, os mais novos, outra. É um momento de muita confusão. Mas eles sabem conviver de alguma forma”, diz Possuelo.

Criança. Um dia depois de nossa visita à aldeia, na noite de 22 de abril, nasceu uma criança, que morreria minutos depois. Era filha da índia Naylo, de 28 anos, casada com Pino Corubo, de 27. Não houve pré-natal nem exames de ultrassom. Os índios disseram que a criança era “grande”, não tinha deficiências. Aparentemente, nasceu com peso normal. Técnicos da Saúde desconfiam que a criança foi morta por algum castigo aos pais ou premonição. É costume, por exemplo, sacrificar o recém-nascido que põe primeiro os pés para fora do corpo da mãe. Se foi esse o caso, um ultrassom poderia colocar o pessoal da Saúde de prontidão para acompanhar o parto e evitar a morte do bebê.

O controle populacional de homens e bichos sempre foi feito por Maya. Com um cesto de filhotes de cachorro e um terçado, ela surpreendeu certa vez técnicos da Funai. “Pisamarapá!” (Não presta!), dizia a cada cabeça cortada. A presença de muitos animais na aldeia mostra que esse controle deixou de ser feito.

Dida Sampaio/AE.

Os últimos 13 anos foram tempo suficiente para conhecer mais sobre os costumes e as histórias do grupo de Maya. Esse período levou os índios a se arrepender especialmente de uma das mortes, a do indigenista Raimundo Batista Magalhães, o Sobral, que recebeu bordunadas na cabeça em 1997. Uma das versões é de que Sobral retirou uma lona da cobertura de uma maloca que pertencia à base da Funai. A lona era agora parte da casa dos índios, que não aceitaram o gesto do indigenista.

É necessária maior sensibilidade da equipe econômica, sugere Funai

É numa pequena sala da Funai, no Setor Bancário Norte, em Brasília, que trabalha o homem responsável por 3% do território brasileiro. O geógrafo paulista Carlos Travassos comanda a Coordenação de Índios Isolados e Recém-Contatados, um departamento que cuida de uma área de 30 milhões de hectares, quase 200 vezes o município de São Paulo. Nesse Brasil intocado, há 106 registros de grupos índios de costumes e línguas desconhecidos, sendo 24 confirmados, 26 referências que ainda dependem de provas e outros 56 dos quais existem apenas informações básicas. É um patrimônio de valor difícil de calcular.

Há oito anos no órgão indigenista, Travassos atuou no aumento do número de frentes de proteção de isolados. A coordenação monitora atualmente 12 áreas na Amazônia Legal. É um território cobiçado pelas potencialidades minerais e pela biodiversidade. As verbas destinadas pelo Ministério do Planejamento para o departamento, no entanto, não garantem o funcionamento das frentes. O Orçamento Geral da União previa R$ 10,6 milhões, ao longo deste ano, para cuidar das terras dos isolados. Desse total, R$ 7,3 milhões foram contingenciados pela equipe econômica. “É necessária maior sensibilidade (do governo) nessa questão dos isolados”, afirma. “Trata-se de um trabalho em regiões remotas e de difícil acesso, que precisa de recursos condizentes à sua aplicação.”

Ele ressalta que o trabalho da Funai de defesa dos isolados é a única forma de o Estado estar presente nessas áreas, onde atuam narcotraficantes e outros criminosos. Travassos cita três desafios enfrentados pela coordenação: a falta de recursos, as dificuldades de contratar pessoas da própria região de selva e a ausência de uma regulamentação do poder de polícia do órgão indigenista. “Temos feito esforços e não temos tido respostas de algumas áreas. O aumento do orçamento não possibilitou a essas unidades atuar em regiões que exigem grande custo de logística, infraestrutura física e estrutura de comunicação”, afirma. “Esses custos nas frentes são muito altos e não são bem compreendidos pelos setores competentes dentro do governo federal. É fundamental que se tenha um aumento e uma evolução de recursos para operacionalizar o trabalho.”

Travassos diz que é preciso avaliar a questão dos recursos humanos. A atual forma de concurso público para preencher cargos na área não atende à demanda por profissionais encontrados nas próprias regiões, mais aptos a encarar o desafio de trabalhar no setor que os aprovados nas cidades. “Há um conhecimento técnico que não se aprende dentro das universidades, mas numa cultura tradicional”, afirma. O indigenista ainda defende a institucionalização do poder de polícia dos funcionários da Funai, com direito a porte de arma, por se tratar de serviço em região de violência.

Metodologia. Num constante malabarismo no uso do pouco dinheiro repassado pela equipe econômica, a Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai tenta focar em áreas ameaçadas onde vivem os isolados e avançar nos trabalhos de reconhecimento da presença desses índios. É preciso rapidez. Carlos Travassos explica que há uma corrida de grupos econômicos pelas antigas terras devolutas da Amazônia, justamente espaços ocupados pelas tribos sem contato com a sociedade das cidades.

Parceiro de Travassos na Funai, Fabrício Amorim ressalta que, nos últimos anos, a equipe mudou a metodologia de classificação de povos isolados e ampliou o número de referências de tribos sem contatos permanentes. Eles desenvolveram uma metodologia de localização e classificação de registros dividida em quatro etapas: informação (o órgão indigenista coleta as notícias iniciais e não confirmadas da presença do isolado), referência (agrega mais dados ao registro inicial), confirmação do isolado (momento em que se considera a presença desse índio, com o encontro de vestígios) e referência refutada (desconsidera a existência do isolado).

ÁUDIO

Trecho de entrevista com o sertanista Sydney Possuelo, da Funai

Mãe e filha se reencontram

Foi um dia de extremo desespero. Um grupo de 19 corubos isolados apareceu na margem do Rio Itaquaí, nas roças dos canamaris, índios em contato com a sociedade nacional há 300 anos. Adultos e crianças estavam com diarreia e malária e passavam fome. Uma mulher tinha sido picada por cobra e corria risco de perder a perna. Eles choravam a morte de parentes.

Assustados, os canamaris da Aldeia Massapê chamaram Beto Marubo, chefe da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Vale do Javari. Afinal, tinham medo e temor dos “parentes do mato”.

Os isolados aceitaram o contato que começou a ser feito pela equipe de Beto. A marca da Funai nos uniformes do pessoal era certeza para os isolados de que aqueles homens não atiravam com armas de fogo. Foi o que disseram aos canamaris. No trabalho de aproximação, Beto levou Xixu, marido de Maya, e Malevo, já contatados. Os dois corubos ficaram com medo de se aproximar dos isolados quando perceberam que aqueles eram os parentes que tinham ficado para trás na última cisão do grupo, no começo dos anos 1990.

Por ser da mesma etnia do grupo de Maya, os isolados foram transferidos de barco para o Ituí. Beto relatou que foi questionado pelos próprios parentes marubos sobre o trabalho de contatar índios isolados. “Meu filho, por que você está nesse trabalho? Olha a situação dos índios amansados”, disse Arnaldo Marubo, cacique da Aldeia Boa Vista. “Como você entrou nessa história logo agora que acabou a Funai? Você está amansando parente para colocar na desgraça?” Em 1976, Arnaldo participou de uma expedição de Possuelo que fez contato com os maiás, no Rio Quexito, também no Javari.

No grupo dos isolados estava Lanlanvet, a filha que Maya deixara para trás. Lanlanvet tinha em sua companhia um filho, Pino. O contato com o novo grupo causou alegria e tristeza. Ao mesmo tempo que reencontrou a filha, Maya soube que seus pais, Manis e Vinã, tinham morrido.

No grupo dos isolados estava Lanlanvet, a filha que Maya deixara para trás. Lanlanvet tinha em sua companhia um filho, Pino. O contato com o novo grupo causou alegria e tristeza. Ao mesmo tempo que reencontrou a filha, Maya soube que seus pais, Manis e Vinã, tinham morrido. Malevo, o índio que saiu na capa do Estado em 2002, recebeu notícia parecida: sua mãe, Malu, e seu pai, Txumã, faleceram pouco antes de o grupo aparecer na aldeia dos canamaris. Um “espírito” do mato que dava frio nas pessoas atingiu os “parentes”. Era a malária.

Árvore genealógica. Com a união dos dois grupos, os homens corubos do Ituí puderam arranjar novas relações. Lanlanvet, de 35 anos, filha mais velha de Maya, é mãe também de uma menina que tem o mesmo nome da avó: Maya. A Maya filha de Lanlanvet é casada com o irmão Pinova. Maya e Pinova têm dois filhos – Kontxo, de 2 anos, e Malu, a Maluzinha, de 3. Agora Maya, neta de Maya do Ituí, está grávida de Malevo, do contato de 1996. Malevo é marido de Lanlanvet, outra filha da líder Maya, homônima da irmã que apareceu na aldeia dos canamaris. Pino, filho mais velho de Lanlanvet, mora com Naylon, que perdeu a criança recém-nascida.

Vissa estava com Malu, que tinha sido picada pela cobra. Quando o casal entrou no grupo do Ituí, Malu acabou ficando com Tavanzão, filho mais velho de Maya e Xixu. Vissa ficou para escanteio. Tavanzão já era casado e pai de duas filhas. Uma delas, Tuxi, de 9 anos, foi prometida a Vissa para compensar a perda de Malu. Tsamavô, de 39, é casado com outra filha de Tavanzão, Tossé. Com a chegada dos novos índios, Tsamavô acabou ficando também com Lonlon, que tem filha com Vissa. A união dos dois grupos mudou a vida de Xixu, que acabou tendo uma segunda mulher, Laiontê, com quem teve Tumin Meshavo. Com ciúmes, Maya, a mulher dele, quis levantar a criança pelo pescoço. Os demais índios impediram uma tragédia.

Maya ‘quebra’ espinha

A fama dos índios “caceteiros” garantiu a preservação do Vale do Javari. Com porretes e reação violenta à entrada de madeireiros e pescadores em seu território, os corubos marcam o imaginário de ribeirinhos e da população branca do Alto Solimões. Fora o pequeno grupo de Maya, contatado em 1996, a maioria desses índios continua isolada no interior da floresta, sem contato com a sociedade nacional, numa espécie de proteção contra os inimigos que começaram a afugentá-los e caçá-los ainda no tempo da borracha, há mais de cem anos.

Há pouco tempo, um helicóptero da Marinha desceu numa área próxima à aldeia de Maya para apanhar sua filha, Manis, com problema no parto. Quando o helicóptero sobrevoava Atalaia do Norte, cidade de 5 mil habitantes, Maya, que acompanhava a filha, assustou-se com o número de casas. Ao índio Beto Marubo, que lhe servia de tradutor, ela perguntou: “Tudo isso aí embaixo é o quê?”. “São casas de nauas”, respondeu Beto, referindo-se a brancos. “É parente dos que a gente matou?” Diante da resposta afirmativa, ela se calou por um tempo. “Pensei que nauas eram poucos. Eu via apenas alguns entrando pelo rio. A gente vai ter de mudar. Vou falar para os parentes não matar mais. Nauas são muitos.”

Na definição de indigenistas, a “espinha” de Maya se quebrava. É o termo usado para definir o momento em que um índio tem consciência da força e do grande número de brancos e passa a se retrair, perder a virulência e a altivez diante do inimigo. Possivelmente, Maya antes pensava que seu grupo tinha condições de enfrentar os brancos sem temer vingança. É uma história que sensibiliza mesmo quando você está acostumado a ouvir clichês sobre a destruição do mundo natural.

A Polícia Federal teve de montar uma operação de guerra para proteger o local onde as duas corubos estavam em Atalaia do Norte. Uma multidão cercou o lugar ao saber da presença delas. Muitos gritavam por vingança pelas mortes de brancos. Em meio ao sucateamento das bases de fiscalização do governo no território homologado em 2001, grupos isolados de “caceteiros” continuam de sentinela ao longo dos Rios Branco e Ituí, cursos que adentram o território indígena. Ninguém se arrisca a dizer quantos são. É certo que a Amazônia não é apenas uma. Há 13 anos, a invisibilidade era uma opção desses índios. Agora, parece que nosso mundo externo não os aceita como sujeitos.

No momento de nossa visita, em abril, Malevo e outros jovens guerreiros corubos, rindo, nos surpreenderam com a brincadeira de encenar bordunadas em nossas cabeças. O terror se tornava uma descontração e um modo de confraternização. Os índios pareciam ter aberto mão do pânico, um instrumento que utilizaram para afugentar quem cobiçava suas terras.

Uma cena dessa última visita à aldeia de Maya repete o que vi durante a expedição de 2002. As crianças da tribo sobem pelos troncos de ingás que fazem sombra no pequeno ancoradouro do Ituí para se despedir. Permanecem nos galhos até a voadeira ganhar distância e desaparecer no estirão do rio. É como se os pequenos índios sentissem necessidade de aproveitar cada instante ao lado dos forasteiros de um mundo que os assusta e os atrai. Os visitantes que estiveram na aldeia deles pertencem a um lugar onde os termos corrupção e civilização, em certos momentos, parecem sinônimos e os homens ainda são incapazes de dar valor à floresta intocada e aceitar a existência de seus habitantes.

Dida Sampaio/AE.
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