“O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?”
página 484
“Os tiros, que eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... a bala: bá!... – desfechavam com metralhadora.”
página 504
“Em Bahia entramos e saímos, cinco vezes, sem render as armas.”
página 428
O banditismo retratado no romance Grande Sertão: Veredas se mantém com suas marcas históricas no norte mineiro e no oeste baiano: ostentação de poder de fogo, desafio à polícia e encenações espalhafatosas. Na madrugada do Dia de Reis, em 6 de janeiro, cinco homens fortemente armados explodiram o cofre de uma tonelada do Banco do Brasil que ficava dentro da agência dos Correios de Josenópolis, a 145 km de Montes Claros (MG). A notícia varou o sertão como prenúncio de mais um ano de supremacia de bandos armados.
No romance, Riobaldo descreve o jagunço como a “criatura paga para o crime, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando”. Por hora, bandos atuais deixaram de lado sequestros, saques em comércios e assassinatos de mando para priorizar roubos a banco.
Em 16 de dezembro, 15 homens com metralhadoras e fuzis chegaram em dois carros a São João do Paraíso do Norte (MG). Parte entrou com maçarico na agência da Caixa Econômica Federal para abrir o cofre. Outra parte foi para a frente do quartel da Polícia Militar, ali próximo, disparar, nas contas da própria guarnição, 130 tiros de fuzil. Depois, com o dinheiro já nos carros, eles jogaram pontas cortantes de aço num trecho de 15 quilômetros da estrada que liga a cidade a Taiobeiras, para furar pneus de quem ousasse persegui-los. No dia 3 do mesmo mês, cinco homens com metralhadoras, revólveres e bombas haviam explodido, em poucas horas, caixas eletrônicos de agências do Banco do Brasil em Francisco Sá e dos Correios em Caetité, também no norte de Minas.
A polícia ainda foi desafiada em Buritis, cidade mineira do Entorno do Distrito Federal, onde na ficção Riobaldo tinha fazenda. Na madrugada de 11 de outubro, dez homens dispararam rajadas de tiros contra o quartel da Polícia Militar e explodiram caixas eletrônicos do Banco do Brasil e da Caixa. A ação durou 40 minutos. O bando fugiu no rumo de Brasília. “O pessoal das agências trabalha apreensivo”, resume Nilton Silva Oliveira, dirigente do Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Montes Claros e Região.
Atuando em 72 cidades do norte mineiro, a entidade contabiliza 16 assaltos nos últimos seis meses. “As cidades são pequenas, têm quatro ou cinco policiais apenas, um efetivo pequeno para enfrentar grandes grupos armados que chegam e explodem tudo.”
Escudo humano. Foi uma ação ousada que deixou em pânico a cidade baiana de Cocos, na divisa com Minas Gerais. Por volta das 11h30 de 10 de março de 2014, dez homens com fuzis entraram nas agências do Banco do Brasil e do Bradesco na praça principal de Cocos e anunciaram o assalto. Para sair dos bancos, eles montaram um escudo com bancários e correntistas e, na fuga, levaram quatro funcionários do Banco do Brasil e quatro clientes do Bradesco. Como no tempo de Antônio Dó, jagunço real descrito por Guimarães Rosa, os bandidos desfilaram pelas ruas disparando para o alto.
Nos meses seguintes, houve um debate acalorado na cidade sobre como impedir novos assaltos. Pressionada, a prefeitura tomou uma decisão drástica: fechou com correntes de ferro as ruas que circundam a praça principal no horário bancário. A medida, segundo a administração, é para evitar aproximação nas agências de veículos de criminosos. O tráfego de carros fortes para abastecer os bancos foi suspenso à noite e de madrugada e foram proibidos saques no caixa eletrônico a partir das 16 horas.
Comerciantes reclamam que a decisão afugentou clientes. “As medidas diminuíram ações de bandidos, mas o comércio acabou”, afirma Edmar Miclos, dono de um pequeno hotel. “As pessoas chegam e não têm como tirar dinheiro. O sinal da máquina do cartão não costuma funcionar. Com isso, vai todo mundo fazer negócios e se hospedar em Guanambi, a 250 km daqui.”
Investigação. A Delegacia de Operações Especiais da Polícia Civil em Montes Claros é o principal centro de investigação dessas organizações criminosas. Pelo modo de agir, a polícia acredita que há mais de um grupo atuando no norte mineiro. “No ano passado, houve um incremento bem grande desse tipo de crime na região”, conta o delegado Herivelton Ruas Santana.
A expressão “novo cangaço”, usada na região para definir quadrilhas de assalto a banco, refere-se ao modo de agir dos bandidos, adeptos de grandes ações em pequenas cidades, onde há número reduzido de policiais. Não há estimativa de valores, pois os bancos não informam às polícias as quantias levadas. “Os bandidos aproveitam a fragilidade do aparato. Em cidades maiores e capitais, há batalhões da Polícia Militar, departamentos da Polícia Civil. Eles têm atacado cidades com 20 mil, 10 mil habitantes.”
Santana aponta como obstáculos ao combate do novo cangaço o baixo efetivo de policiais, a grande extensão do norte mineiro e as dificuldades de deslocamento. Como a região faz divisa com a Bahia, há ainda necessidade de intercâmbio com o Estado vizinho. “Apesar de haver uma interação, é sempre difícil fazer esse tipo de trabalho.”
Urutu-Branco. No romance, o jagunço Riobaldo conta que ele e os companheiros haviam desafiado a “soldadesca” do governo e entrado e saído da Bahia cinco vezes “sem render as armas”. Foi justamente no confronto com outros bandos e fugindo de tropas legais que ele foi ungido chefe do bando e rebatizado de Urutu-Branco pelo antigo chefe, Zé Bebelo, que deixou o comando após desgaste com jagunços. Urutu é o nome de uma das cobras mais venenosas do cerrado.
A ficha corrida de Riobaldo era longa. O jagunço que conquistou o mundo com seu linguajar poético e sua paixão por Diadorim esconde uma vida de crimes. Ele é autor confesso de alguns assassinatos e acusado de estar por trás de outros. A morte do inimigo Ricardão, que tinha sido rendido, ilustra seus momentos de frieza e violência.
Durante a elaboração da reportagem, o Estado testemunhou o medo de moradores do Grande Sertão por causa do banditismo. Em Pirapora e Três Marias, também Minas Gerais, a equipe chegou a ser abordada e passou por revistas da polícia após denúncias de moradores preocupados com a presença de um veículo de São Paulo.
No ano passado, Três Marias passou por dois grandes assaltos a banco. Em 4 de novembro, homens armados explodiram caixas eletrônicos da agência do Itaú e dispararam contra uma casa lotérica. Em setembro, outro bando havia assaltado a agência do Banco do Brasil. Não trafegar à noite em estradas asfaltadas e evitar caminhos de terra mesmo durante o dia foram dicas dadas por moradores à equipe de reportagem.
Sertaneja enfrenta vivos e mortos
Nas janelas verdes da casa branca de telhas coloniais, Vera Lúcia Dias da Silva cultiva flores e plantas do cerrado. Uma estampa do Divino Espírito Santo, da folia de setembro, ainda está colada na parede perto da porta. A voz dela parece sair com um sopro, mas para dentro. Os olhos são negros e brilhosos. Num primeiro momento, diz que prefere não falar. Com insistência, começa a conversar. É sertaneja desconfiada, arisca, que vive num mundo perigoso. Guimarães Rosa passou por essa casa na viagem que fez à região em 1952, com o vaqueiro Manuel Nardi, o Manuelzão. Os pais de Vera moravam ali.
Antes de uma despedida, Vera Lúcia diz que sabe tudo sobre “esse tempo” que passou. É uma dica de que pode convidar quem é de fora a entrar na sua casa, conhecer seus móveis forrados com tapetes bem trabalhados de retalhos, os alicerces de grossas aroeiras, os adobes do telhado, o piso encerado, os quartos pequenos e simples, a cozinha do grande fogão à lenha, no fundo, para a mata do cerrado.
Sempre de pé, ela observa que a antiga casa está localizada no final da estrada que começa no centro de Três Marias, cidade visitada duas vezes no ano passado por grupos fortemente armados especializados em roubos a banco. Por esse caminho, correm bandidos que matam e assaltam na região. Muitos vieram pedir água, sujos e maltrapilhos, correndo de polícia. Vera Lúcia abriu a porta e lhes deu água. Usou o estilo tranquilo e sereno para se livrar do perigo. Certa vez, saía de carro com o marido quando um homem com uma mochila e algo dentro que fazia volume de um facão os mandou parar e entrou no veículo. Sentou no banco do carona e ordenou que fossem para a cidade. À sabedoria sertaneja, ela uniu a fé. Evangélica há alguns anos, Vera Lúcia conta que, em meio à aflição do marido, dizia para o bandido que Jesus o amava, que ele seria libertado de alguma forma. O homem mostrou surpresa com a calma dela. Na cidade, Vera exigiu com a mesma voz serena que ele saísse do carro. O bandido não quis sair. Com voz firme, ela disse então: “Moço, Jesus vai te abençoar por toda a vida, mas agora o senhor vai me dar licença e sair do carro”. O homem deixou o veículo. Tinha contado até ali boa parte de suas histórias de crime.
A violência não apenas bateu na porta de Vera Lúcia, mas residiu bom tempo em cada cômodo de sua casa. Uma violência provocada por amores interrompidos, contrariados, proibidos. É após um bom tempo de conversa que ela se solta. Diz que não gosta de falar dos que moraram na casa antes de sua família. Dos casos de morte que ocorreram.
Diante de um pedido para detalhar as mortes, ela diz que prometeu a um filho não falar mais dos que se foram. Solta apenas que houve uma história de amor, um rapaz que foi proibido de ter relação com a empregada da família. Uma tragédia deu sequências a outras. “Antes, na noite, pessoas batiam na parede de cada quarto. Certa vez, uma visita foi acordada por alguém que dizia que aquele quarto era dela e aqui morava uma mulher chata”, conta. Essa mulher que a pessoa fazia referência era Vera Lúcia. “Eu soube lidar com todos eles. Foram embora. Trato a todos com respeito, mas peço licença para saírem”, diz a senhora, com o mesmo tom calmo de voz. No final, dá conselhos à equipe do Estado para não entrar em certos caminhos no sertão sem fim.