Novas Veredas: O mapa do Grande Sertão nos 50 anos da morte de Guimarães Rosa

Grilagem

Terra e água fazem conflitos se perpetuarem
Leonencio Nossa (textos) & Dida Sampaio (fotos)

“Soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombaram para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.” página 43

Terras de posses rurais antigas, o norte e o noroeste mineiros vivem uma erupção de conflitos no campo ao estilo das áreas agrícolas em expansão. Cruzamento de dados públicos revela disputas agrárias em pelo menos 33 municípios dessa região. Boa parte envolve fraudes em processos de assentamento e ações para impedir o acesso de comunidades tradicionais de geraizeiros e veredeiros a serviços de energia elétrica e infraestrutura oferecidos pelo poder público.

Citada várias vezes no romance Grande Sertão: Veredas, a região de Grão Mogol vive há décadas disputa por terras que não dispensou o esquema de jagunçagem. Cerca de 1,9 mil famílias, nas contas do Movimento dos Geraizeiros do Norte de Minas Gerais, querem o reconhecimento de uma extensa área no Vale das Cancelas, que abrange os municípios de Grão Mogol, Josenópolis e Padre Carvalho. Um acampamento foi montado há 120 dias numa área disputada também pelo empresário Marcos Gonçalves Machado, o Ganso, preso em 2010 pela Polícia Federal por suposto envolvimento em grilagem. “As famílias vivem, há anos, pressionadas. A grilagem existe porque tem apoio de setores da política”, afirma Adair Pereira de Almeida, o Nenzão, um dos líderes dos geraizeiros. “O desrespeito aos direitos humanos na região é um problema cada vez mais atual.”

Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo relata que, nas andanças pelo norte de Minas, ele mesmo viu a violência contra adultos e crianças nas disputas rurais, nos processos de grilagem e na ocupação violenta do solo, que resultavam na destruição de vilarejos e na matança de rebanhos em sítios e fazendas. Ao narrar o drama da terra, o jagunço usa uma das expressões mais conhecidas do livro: “Viver é muito perigoso”. Comum no século 19 e nas primeiras décadas do século 20, o problema social contado pela ficção de Guimarães Rosa se repete com frequência na vida real até os dias atuais.

No município de Rio Pardo de Minas, a Justiça acatou ação civil pública e bloqueou bens de 42 empresários, advogados e outros profissionais liberais que estariam envolvidos em fraudes de registro de terras em São João do Paraíso, Novorizonte e Fruta de Leite. A ação argumenta que o grupo liderado pelo empresário José Edineo Meneghetti comprava glebas pequenas e registrava com tamanhos maiores, ocupando assim áreas devolutas onde vivem antigos posseiros.

Meneghetti critica a decisão da Justiça e afirma que a retificação de tamanho de propriedades está prevista pela legislação. Ele reclama que o questionamento da compra de terras em Fruta de Leite resultou no bloqueio de seus bens em São João do Paraíso, onde está estabelecido há 28 anos. A decisão, segundo ele, prejudica a empresa da família que gera cerca de 500 empregos diretos na produção de óleo, eucalipto e carvão. “O caso é de outro município, não está certo eles bloquearam meus bens em São João do Paraíso”, critica. “Sempre fui pessoa de respeito. Agora, fiquei com nome sujo. Disseram que a gente era grileiro, matador. Uma coisa é gerar 200 empregos numa grande cidade, outra é gerar 500 empregos numa região pobre como o norte de Minas.”

O empresário afirma que comprou em 2008 as terras que estão sendo alvo de ação judicial. Ele diz que o grupo que entrou com a ação fez um trabalho “bem montado” que convenceu o juiz de Rio Pardo de Minas. Meneghetti ressalta que está aberto a acordo com famílias que moram nas terras, desde que não cause mais prejuízos. “Acordo pode ter mais para frente.”

A expulsão de comunidades nativas das chapadas, as terras altas do cerrado propícias a grandes lavouras, provocou nas últimas décadas êxodo para as ilhas do São Francisco entre Pirapora e Manga. Alexandre Gonçalves, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do movimento Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, observa que novos conflitos têm surgido justamente nessas ilhas. “Hoje, com a seca, fazendeiros buscam as ilhas para dar refúgio aos rebanhos. Isso tem causado uma série de conflitos. A grilagem ocorre agora em todas as áreas das regiões do norte e do noroeste de Minas.”

A água está por trás também de uma disputa na área onde foi formado o lago da Usina Hidrelétrica de Irapé, em Grão Mogol. Famílias de geraizeiros reclamam que ficaram de fora do projeto desenvolvido pelo governo de uso das águas da represa. Casas de pelo menos 250 famílias não têm redes de água e energia. Brigas por água ocorrem ainda em outros dez municípios mineiros do Grande Sertão. Os conflitos mais acirrados acontecem em localidades de Arinos, Porteirinha, Cônego Marinho e Bonito de Minas. Os números são da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, da CPT, de processos judiciais e de operações da Polícia Federal.

Histórico. Nos anos 1960, grandes grupos conseguiram concessões de 20 a 30 anos do governo federal para explorar carvão. Pelo acordo da época, veredeiros e geraizeiros, que já ocupavam as mesmas terras concedidas, não precisariam sair das frações das veredas. Em 1988, a União repassou para o Estado de Minas Gerais as terras que estavam cedidas às grandes empresas. No começo dos anos 1990, o então governador Newton Cardoso deu direito de propriedade das terras aos empresários, mas com a condição de que os geraizeiros e veredeiros fossem indenizados, o que não ocorreu. A empresa e as famílias disputam a terra na Justiça.


BRIGA COM EMPRESA NÃO DEIXA POSTES DE LUZ CHEGAREM ATÉ FAMÍLIAS

Quando a última etapa do Programa Luz para Todos, do governo federal, chegou à região de Capão Celado, em 2014, as mulheres da comunidade localizada no município de Buritizeiro (MG) fizeram, no braço e na enxada, uma picada de suas casas até o último poste instalado. “Ter luz é uma coisa que ajuda demais”, diz Zelu da Silva Veloso, uma delas, hoje com 65 anos. Mas a energia elétrica ainda não chegou às oito famílias de veredeiros, como são chamados produtores que vivem de pequenas criações de gado e extração de coco dos buritis em Capão Celado. A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) deixou de fazer a ligação porque a Ligas de Alumínio S.A. (Liasa), uma fabricante de ligas de alumínio, conseguiu na Justiça barrar a continuidade do trabalho.

Quando a empresa chegou à localidade, nos anos 1960, com apoio do governo federal, as famílias já moravam ali. Nos anos 1980, a disputa pela terra se acirrou na região. Famílias de veredeiros reclamam que a companhia quer expandir sua posse. “Ela reconhece que a gente é dono disso aqui, mas não deixa de perseguir”, afirma Messias Afonso Veloso, marido de Zelu, um ex-tropeiro de 77 anos que acompanhou em viagens pelos gerais o lendário vaqueiro Manuel Nardi, o Manuelzão, personagem real retratado por Guimarães Rosa no livro Corpo de Baile. “Todo governo que entra diz que é para ter luz para todos, mas não vem a luz.”

A família de Zelu da Silva Veloso, 65 anos, e Messias Afonso Veloso, 77, no interior de Buritizeiro, Minas Gerais. Os veredeiros lutam há anos para ter o fornecimento de energia elétrica. O clã possui um gerador de energia para garantir a iluminação na pequena propriedade

O Estado procurou a direção da Liasa em Belo Horizonte e Pirapora, mas a empresa não quis se pronunciar. O escritório de advocacia que atende a empresa na capital mineira afirmou que o processo envolvendo a Liasa e as famílias é um caso de sigilo empresarial.

A Cemig informou que Messias Afonso Veloso fez três solicitações para sua comunidade. Nas duas primeiras, em 2009, faltaram informações. Em 2012, foi apurado que o atendimento era “irregular”, pois constava que ele e os demais solicitantes eram “posseiros”. A Liasa apresentou uma escritura da terra à Cemig e carta negando a “servidão de passagem” para levar energia até as casas. A condição de “posseiros” dos moradores não foi obstáculo para que a Codevasf instalasse caixas d’água nas casas nem para que a prefeitura de Buritizeiro construísse uma escolinha na comunidade – fechada anos depois sob argumento de que não havia mais criança no local. Os alunos foram transferidos para uma escola a 80 km de distância.

O Ministério de Minas e Energia informou que desde 2014 a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) estabeleceu que o norte mineiro é uma área em que a energia está “universalizada”. O problema é local.


ZÉ VEREDAS QUER ELETRICIDADE E SOSSEGO PARA TRABALHAR

“O José Vereda cachimbava, sentado perto de seus pertences.” página 390

Os veredeiros José Eugênio Martins, o Zé Veredas (d), 54 anos, e Wellington Martins da Silva (e), 33, percorrem as veredas de Buritizeiro, Minas Gerais

Ele seria um homônimo do jagunço José Vereda, personagem de Grande Sertão: Veredas, se não fizesse questão de ressaltar o “s” no final do apelido. “Fui batizado José Eugênio Martins, mas ninguém me conhecesse assim. Sou o José Veredas, assim sou chamado. Não é apelido, é nome”, afirma o pequeno produtor, de 54 anos. O plural no apelido se explica. Ele vive numa casa simples, próximo ao encontro de três veredas na localidade de Capão Celado, a 75 km da sede de Buritizeiro, no norte mineiro. “Essa que sobe é a Vereda Galho da Cangalha. Essa ali é a do Matão. Lá de cima vem a Vereda da Égua”, relata. “Aqui fui criado, virei rapazinho, fiz família. Sinto prazer em mostrar essas beiras de veredas.”

Zé Veredas está ilhado no mar de plantações mecanizadas em Buritizeiro. Ele mostra o “joão-doido”, uma lata onde põe um pedaço de pano e despeja sobras de óleo da cozinha para acender fogo. No dia a dia, usa lamparinas e velas. Sem energia elétrica nem escola na localidade, teve de mandar as crianças para o centro de Buritizeiro. Elas passam a semana numa pequena casa construída pelo pai num bairro violento da periferia. “Pelo menos lá tem energia e internet.”

Ele se retrai quando fala das disputas dos veredeiros com a jagunçada. Menino corria quando a polícia e os jagunços chegavam. Justamente no sertão de Pirapora, onde o sanitarista Carlos Chagas identificou o Tripanossoma cruzi, o hospedeiro do barbeiro, o pai de Zé Veredas, José Martins, morreu do mal de Chagas. Ele tinha 8 anos. Aos 12, perdeu a mãe, Umbelina, em acidente em Três Marias, mesmo lugar da morte da mãe de Riobaldo.

Video. Famílias ficam sem energia elétrica

Zé Veredas não é um assentado do Incra nem um grande empresário. O Estado não o define como produtor. Em outras palavras: não consegue financiamento do Plano Safra da Agricultura Familiar, destinado a pequenos produtores, nem do Plano Agrícola e Pecuário, voltado para os médios e grandes produtores. Há um ano, ele pôs sua melhor roupa e foi pedir financiamento no Banco do Brasil. Não conseguiu.

Ele mostra o sistema de captação de água que montou na vereda perto de casa. Embaixo do capinzal da vereda, passa uma tubulação de pequeno diâmetro que leva a água do córrego para a casa, mais afastada, para ser usada pela família nas hortaliças e nos bebedouros das criações.

É fim de tarde. Araras chegam às veredas para dormir. Pássaros disputam as copas dos buritis. A cavalo, o Estado acompanha Zé Veredas e o sobrinho Wellington Martins, de 33 anos, numa visita pelo alagado. Os vaqueiros contam que nesses campos aparecem a coral, a queixo de burro – que dizem ser o cruzamento de surucucu com cascavel –, a jararaca e a zunidor. São comuns campeiros, seriemas, tatu preto, tatu bola, tamanduá bandeira, anta, mixirra – um tamanduá pequeno – e soim – um mico pardo.

Zé Veredas diz que o lugar é o “sonho” dele. “Sabe como meu apelido virou nome?”, pergunta. “Eu conheci uma moça. Fiquei influente com ela e ela me tirando: ‘Você mora onde?’. Expliquei: ‘Nas veredas’. Ela perguntou: ‘O que é vereda?’ “É onde brita a água, onde tem pé de coco buriti. Tem muito verde. É um galho de rio, uma nascente, uma vida do São Francisco, esse rio grande que você conhece.’ Fui chamado de José Veredas para sempre.”


NO CERCO DA CACHOEIRINHA, 67 CRIANÇAS MORTAS

“Noite da Jaíba dá de uma asada, uma pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente se media em silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia” página 185

A região de Jaíba e do Rio Verde Grande é decisiva em Grande Sertão: Veredas. Ali, após a morte do chefe Joca Ramiro, o bando de Riobaldo, Diadorim e Zé Bebelo conseguiu adesão de novos jagunços. “E outros vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quem não se imaginou: como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta e cinco cacundeiros – o que carregava nome de fama por todo o Rio Verde-Grande”, narra Riobaldo.

Nessas terras de sol alaranjado no entardecer, Riobaldo presencia mais tarde assassinatos em conflitos rurais. Após a publicação do livro, uma disputa de terra em Cachoeirinha, hoje Verdelândia, na margem do Rio Verde Grande, reviveu o período sangrento descrito no romance. O que não está nas páginas da ficção é que as vítimas da violência no sertão do Jaíba foram na maioria negros.

Fazendeiros incentivados pela ditadura militar expulsaram das terras banhadas pelo Verde Grande descendentes de escravos. Em meio a um prolongado cerco às casas das famílias por jagunços e policiais militares, em 1967, ano da morte do escritor, 67 crianças morreram. Era uma repetição do que Riobaldo tinha visto. “A lá chegamos num de-tardinha. Às primeiras horas, conferi que era o inferno. Aí, com três dias, me acostumei”, relata o personagem sobre sua chegada às matas de Jaíba.

Relatórios obtidos pelo Estado no Arquivo Público de Minas Gerais e testemunhos de moradores da época destacam que, durante um despejo forçado das famílias, as crianças foram levadas para uma área de mangueiras e, ali, a maioria contraiu uma febre mortal. Novos testemunhos recolhidos pela reportagem, no entanto, deixam claro que todas as crianças morreram mesmo por desnutrição, devido ao prolongamento do cerco. Ninguém podia entrar ou sair do lugar.

Moradores de Cachoeirinha não resistiram à primeira investida. Enquanto a polícia dava ordem de prisão a quem erguia espingarda e facão, segundo sobreviventes, agentes com tratores e correntes arrasavam casas, poços, roças, galinheiros e pocilgas. A partir das ruelas e casebres do povoado, os expulsos das terras montaram resistência. Eles não usavam armas de fogo, mas facões, foices, enxadas e pedaços de pau. À meia noite, mulheres colocavam caixas de fósforos nos bolsos de saias e vestidos e iam queimar pastos que os fazendeiros começavam a plantar. “Eles não deixavam nossos maridos trabalharem. Era só fome”, relata Maria Santa de Jesus, a Maria Parteira. “A gente saía em grupo para botar fogo. Eu, a Suína, a Mariquinha, a Miranda e a Iris.”

As margens do Rio São Francisco, no norte mineiro, foram desmatadas, restando pouco da cobertural natural. Município de Matias Cardoso, Minas GeraisDida Sampaio/Estadão
Uma casa do período do boi, nas primeiras décadas do Século 20, no centro de Matias Cardoso, município de Minas GeraisDida Sampaio/Estadão
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída no Século 17 por bandeirantes, negros e índios em Matias Cardoso, Minas Gerais. O templo é considerado o mais antigo em funcionamento do Estado e marcou a colonização das terras banhadas pelo Rio São Francisco no norte mineiroDida Sampaio/Estadão
Interior da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, templo erguido no Século 17 em Matias Cardoso, Minas GeraisDida Sampaio/Estadão
Igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída no Século 17, em Matias Cardoso, Minas GeraisDida Sampaio/Estadão
Fachada lateral da Igreja Nossa Senhora da Conceição em Matias Cardoso, Minas GeraisDida Sampaio/Estadão
Morador de Verdelândia, antiga Cachoeirinha, no norte mineiro, localidade que enfrentou jagunços e pistoleiros no tempo da ditadura militarDida Sampaio/Estadão
Homem descansa no centro de Verdelândia, a antiga Cachoeirinha, palco de um dos maiores massacres de civis por tropas de jagunços e policiais durante a ditadura militar, no norte mineiroDida Sampaio/Estadão
Maria Santa de Jesus, a Maria Parteira, mostra um quadro em que aparece ao lado do marido Ursulino Pereira Lima, o SulaDida Sampaio/Estadão
Florentino de Jesus, 82 anos, morador de Verdelândia, na Região Norte de Minas Gerais, antiga CachoeirinhaDida Sampaio/Estadão
Florentino de Jesus, 82 anos, um dos remanescentes da luta pela terra em Verdelândia, na Região Norte de Minas Gerais, antiga Cachoeirinha, local de massacre de adultos e crianças por jagunços e grileirosDida Sampaio/Estadão
Moradora de Verdelândia, antiga Cachoeirinha, no norte mineiroDida Sampaio/Estadão

O líder das famílias era Martinho Fagundes Lisboa, de cerca de 40 anos. O marido de Maria Parteira, Ursulino Pereira Lima, o Sula, lembra o dia em que ouviu, na espia, policiais dizerem que o levariam para assistir à morte de Martinho. Ligeiro, Sula correu para avisar o amigo. Martinho chorou. “O que vou fazer agora?”

Sula é um homem negro de 95 anos, magro, agitado, que não dispensa um chapéu e conversas longas. Partiu dele a ideia de Martinho se esconder na copa de um imbuzeiro, árvore que se fecha na parte superior com muitos galhos e folhas, nos fundos da casa. A polícia chegou. A casa foi revistada. Não viram Martinho. “Cadê o neguinho?”, perguntou o cabo José Guilherme. Os policiais foram embora sem encontrar Martinho. Sula foi até o imbuzeiro: “Desapeia, Martinho.” Os dois correram para o Rio Verde Grande, nos fundos da casa. “Você sabe nadar, Martinho?”, perguntou Sula. “Não.” “E mergulhar?” “Mergulhar até pedra sabe.” Martinho entrou no rio.

Sula e amigos voltavam de uma roça quando foram surpreendidos por uma patrulha na rodovia que corta a região. “O cabo José Guilherme mandou a gente deitar no chão. ‘Cadê os documentos, vagabundos? A gente mata vocês, safados, ladrões!’. O cabo era o valentão, queria me matar. Depois, ele xingou o Martinho Fagundes: ‘É, vocês foram na conversa daquele neguinho’.”

Fome. Diante do cerco, valia tudo para garantir a sobrevivência das crianças. As mulheres preparavam chás de lagartixa de parede e detritos de cachorro. Não se podia atravessar o cerco. Os remédios estavam na terra proibida. O óleo de pequi para as feridas, o vinho de jatobá para os velhos com problema de próstata, a resina petrificada do angico – pequenos cacos de vidros vermelhos jogados na água fervendo para o xarope da gripe, com seu perfume de queimada –, as sementes malhadas de umburana com gosto de feijão, para a dor de cabeça.

As 67 mortes de crianças, número registrado em documento militar do período, ocorreram ao longo de 1967, ano do cerco do povoado. Não houve uma mortandade de sarampo apenas num dia. Essa versão do sarampo foi apresentada pelo próprio comandante da operação policial, o coronel Georgino Jorge de Souza, e aceita depois, por orgulho, pelas famílias, que não queriam dizer que os filhos haviam morrido de fome. Muito se falou ainda que uma leva de crianças teria morrido porque os pais, desalojados, tiveram de colocá-las embaixo de um pé de árvore. Um inseto teria propagado a doença. “As crianças morriam mesmo era de fome e sarampo”, diz a moradora Gesuína Soares de Moura, sem esconder uma certa tensão.

Gesuína foi uma das protagonistas do levante. “A gente corria igual inhambu, desaparecia, se escondia. Você conhece o inhambu? É um pássaro muito veloz. A gente achava que era mesmo filho de inhambu”, conta. “Eu era encarregada de passar os recados do Martinho Fagundes para o pessoal. Avisava onde seria a reunião. O povo tinha confiança de conversar comigo.”

Ela perdeu uma filha naquele tempo. “Minha filha Ivani tinha 1 ano. Estava com sarampo, com fome. Eu fui até a farmácia do Vilson, que só vendia remédio para rico, pedir fiado. Ele disse que não vendia. Isso foi de manhã. Às seis da noite, ela morreu. Tem coisas que não gosto de lembrar.”

Encontramos uma moradora homônima de uma personagem do Grande Sertão: Veredas. “Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial”, narra o jagunço Riobaldo.

Na vida real, a história de Maria dos Reis, a Maria do Zé do Padre, de 76 anos, é de dramas. “Nessa época da guerra, eu tinha quatro meninos pequenos. Quase foram para a cidade dos pés juntos. Aqui dava maleita, febre, sarampo.” Com o povoado cercado, ela tratava as crianças com chá de caroço de algodão. Um moleque ousado passava pelas cercas para apanhar folhas de laranjeira e touceiras de cidreira dos antigos lotes. Tempo de fome. “Não gosto de lembrar.”

Verdelândia hoje é um município de 8,3 mil moradores e um IDHM de 0,583, um dos mais baixos de Minas Gerais. O Rio Verde Grande foi represado, suas águas subiram quase um metro, encobrindo o trecho encachoeirado que dava nome ao lugar onde ocorreram os conflitos de terras. Não se houve mais o barulho das águas batendo nas pedras. O verde também desapareceu das margens do rio, assoreado pelos canais e bombas de irrigação dos fazendeiros que permaneceram em parte das terras. O movimento popular foi a última grande luta dos negros no meio rural brasileiro. “Homem nasceu para ser homem, tem que ser homem até o dia de morrer”, afirma Sula. “Homem que diz que Deus deixou terra escrita não é gente deste mundo. É o bicho ruim”, completa. “A terra não se carrega. O fogo destrói a terra, mas a terra não deixa de existir. Nós é a terra. Nós não é nada. Nós é a terra.”

Em 26 de junho de 2016, semanas após dar essa entrevista, Sula morreu. Teve câncer. Foi tudo rápido, conta uma neta. Ele deixou expresso que não queria ter o corpo colocado em urna no cemitério. Queria ser enterrado no chão de Cachoeirinha.

Dois temas são omitidos nos estudos da obra de Guimarães Rosa. O desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, amigo do escritor, que teve seu auge na construção de Brasília, e o regime militar, que levou à frente os grandes projetos bancados pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) para o sertão. No pouco que escreveu sobre a nova capital, Rosa fala com empolgação e depois com certa preocupação sobre a “grande cidade”. Quanto à ditadura, ele se limitou a atuar como um diplomata reservado e um intelectual focado apenas em seus livros.

O governador mineiro Magalhães Pinto apresentou em 1962 um plano para distribuir as terras do Rio Verde Grande para grandes grupos econômicos. O Projeto Agropecuário Jaíba começou a sair do papel com o golpe contra o presidente João Goulart. Era o fim dos empecilhos que podiam impedir a ocupação à força de terras ocupadas secularmente pelos negros. Fazendeiros fizeram parceria com o coronel da Polícia Militar Georgino Jorge de Souza para retirar as famílias das terras. Georgino serviu também de advogado do grupo e recebeu em troca uma propriedade.

Baiano de Guanambi, Georgino desfrutava de glória. Em abril de 1964, ele invadiu Brasília, no comando do 10.º Batalhão da Polícia Militar. Foi a única tropa a ocupar a capital no golpe contra João Goulart. Depois, Georgino entrou de forma triunfal em Belo Horizonte e retornou como herói a Montes Claros. Ele é acusado por posseiros de ter assassinado o líder Martinho.

A violência recrudesceu em abril de 1981, quase 20 anos após a primeira expulsão. Jagunços e policiais mataram quatro moradores de Cachoeirinha. Em 1984, o então governador de Minas, Tancredo Neves, assentou parte das famílias numa área em volta da Cachoeirinha. Ele fez acordo com alguns fazendeiros que aceitaram outras terras.

A capela onde Manuelzão fez uma festa

Manuelzão mandou construir a capela e o cemitério nas terras da Fazenda Sirga, em Três Marias, Minas Gerais

Em Três Marias (MG), fica a igrejinha construída pelo lendário vaqueiro Manuel Nardi, o Manuelzão (1907-1997). Em 1952, o então capataz da fazenda conduziu uma boiada até Araçaí, num percurso de cerca de 240 km, acompanhado por Guimarães Rosa.

Manuelzão levantou a capela branca de barra azul e um cemitério em homenagem à mãe, Rosa Amélia Nardi, a Dona Quilina, em março de 1948. A sepultura dela está assinalada pela mesma cruz de madeira de um metro e meio posta pelo filho. Bandeirolas de seda de uma festa recente estão no teto da capela. O cemitério e o templo estão dentro de um cercado de aroeiras. Outro cercado de arame farpado foi instalado em volta e uma segunda capela foi construída recentemente em frente à da mãe do vaqueiro.

Manuelzão foi fonte do João Rosa, como ele chamava o escritor, para o Grande Sertão: Veredas e ainda virou personagem de Corpo de Baile, também lançado em 1956. Dividido anos depois em três partes, o livro fala de histórias do vaqueiro e do menino Miguilim, possivelmente um alter ego do autor. Os dois passaram quase três semanas na travessia.