O crack é, na verdade, a cocaína – droga estimulante do sistema nervoso central, conhecida da medicina desde o século 19, mas usada desde o tempo dos incas. O princípio ativo da folha de coca é a eritroxilina. Isolada pela primeira vez em 1859 pelo químico alemão Albert Nieman, chegou a ser indicada para o tratamento de várias doenças por suas propriedades estimulantes e anestésicas até ser proibida por causar dependência.
A versão fumada da cocaína com o nome crack surgiu nos Estados Unidos entre 1984 e 1985, em bairros pobres de Nova York, Los Angeles e Miami. Seu precursor, no início daquela década, foi o freebasing (cocaína na forma de base livre), obtido da mistura de éter sulfúrico ao pó em meio aquoso aquecido. O processo transformava a droga em cristais para serem fumados. Como a mistura usada para conversão do pó em pedra – quase sempre feita em laboratórios caseiros – oferecia risco de explosão, caiu em desuso.
Para conseguir continuar fumando a cocaína, usuários descobriram que o mesmo resultado poderia ser obtido trocando éter sulfúrico por bicarbonato de sódio com amônia, na alquimia do pó para a pedra. A partir daí, ele se proliferou como epidemia nos Estados Unidos, virou a "droga dos excluídos", a "criptonita dos pobres" – pelo poder energizante e eufórico – e ganhou nome: crack, por causa dos estalos (cracking) produzidos pelos cristais queimando. No Brasil, os primeiros relatos de consumo da droga são de 1989, nos bairros de São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, na periferia da zona leste paulistana. Seis anos depois, ela já era considerada uma epidemia.
O que faz do crack uma droga mais potente e perigosa para o usuário é sua forma de absorção pelo organismo. Por ser fumado, a rapidez e a intensidade com que age no cérebro são muito maiores. "O crack é a própria cocaína, mas em forma fumada. Qual é o problema disso? Ao fumar, você consegue atingir níveis sanguíneos muito altos em curto período de tempo. O potencial de dependência é maior e o potencial de agressividade ao organismo, muito maior. Nesse sentido, é mais perigoso", explica o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, especialista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad).
No organismo, o crack leva de 8 a 15 segundos para chegar ao cérebro, graças à eficiente absorção dos alvéolos pulmonares. São eles que jogam a droga em peso na corrente sanguínea – no caso da cocaína cheirada, o efeito pode demorar até 15 minutos. Além de mais rápido, o crack também é mais potente. Estudos apontam que, quando a droga é fumada, 90% da eritroxilina (princípio ativo da coca) chega até o cérebro – se inalada, só 30% atingem o destino.
A química do crack causa uma baderna no corpo, com efeitos desejados – como sensação de mais energia, hiperatividade, bem-estar, elevação do estado de alerta – e indesejados – como aumento dos batimentos cardíacos, da pressão sanguínea e até alucinações, depressão, pânico e paranoia. Foi desses efeitos adversos que surgiram dois termos informalmente utilizados para classificar os dependentes de crack: "noia" e "zumbi". Carregados de preconceito, ambos fazem referência ao comportamento-padrão da maioria dos usuários compulsivos da droga: paranoico e insone – virando noites e noites acordado, por causa da exacerbação do estado de atenção. No submundo dos "mocós" e das cracolândias, esses apelidos acabaram absorvidos e é comum até os próprios dependentes se tratarem assim.
"A gente não pode dar o primeiro trago. Se der, pode ter certeza: fica quatro a cinco dias invernado (usando a droga)", conta João (nome fictício), de 29 anos, que começou a usar crack aos 12. Depois de uma internação em Bebedouro, município com 75 mil habitantes na região norte do Estado, ele conta que foi direto para a “biqueira”. "Achei rápido. Um mototáxi me levou e deixou na porta do traficante. Fiquei uma noite e um dia fumando, R$ 600, no meio do mato, sozinho com uma garrafa de 51, dois maços de cigarro, um BIC (isqueiro) e 20 gramas de pedra", conta ele, em nova tentativa de tratamento, no 13.º dia sem fumar crack, depois de 13 anos de uso. "De repente, você começa a ver trem rastejando no chão, barulho de viatura, sai correndo, perde droga, perde as coisas. Nesse dia, eu perdi R$ 200 no meio do mato por causa do maldito do crack. Com vergonha da minha mãe, voltei direto para a rua."
Luciano, de 35 anos, começou a usar a droga há 19 e até já ajudou a produzir crack. Ele trabalhou em um laboratório do crime onde era feita a transformação da pasta-base da cocaína em pedra, em Atibaia, de onde a droga era distribuída para a capital e o restante do Estado. "O crack vicia tanto porque é muito, muito forte. A primeira vez que você fuma, você sempre vai querer a segunda, a terceira e daí em diante vai.... É doce. Se você nunca usou, não tem como descrever", explica, hoje em uma comunidade terapêutica de Ibitinga.
A sensação de gosto doce é relatada pela maioria dos usuários. Por isso, como técnica alternativa para ajudar a suprir a carência da droga, balas costumam ser distribuídas aos pacientes. "Agora o crack bom não precisa ser doce, não precisa ter sabor de nada. Só tem de bater forte na sua mente, fazer você ter aquele momento, paralisar você naquele momento. Esse é o crack bom", diz Luciano.
"Não tenho mais sensação de loucura. Remorso. Passa rápido. Para mim, é como acabei de falar, dá remorso. Pelo fato de passar o tempo, você usou, né... Acabou que ... acabou sendo usado né...", diz Sid (nome fictício), viciado há seis anos, ao tentar descrever a sensação provocada pela droga logo após fumá-la em plena luz do dia, sentado na calçada de uma avenida movimentada de São José do Rio Preto. "Só eloquência... aquela sensação de euforia, só desespero... mais nada." Não passa das 15 horas e é a quinta pedra do dia que ele usa.
O prazer que o crack causa – narrado por quase todos os usuários – e seu potencial de vício estão diretamente ligados aos efeitos provocados por ele no sistema de recompensa do cérebro. Artificialmente, eles geram uma sensação de prazer, bem-estar e euforia em grau muito mais elevado, por exemplo, que os gerados naturalmente pelo sexo ou por uma situação que causa felicidade.
"É o prazer de um orgasmo, irmão. Uma vez minha vizinha perguntou isso: 'o crack é bom?' Eu disse: 'Vixe, a droga é a coisa mais gostosa que tem, é melhor que sexo'", conta Jimi (nome fictício), de 39 anos, em uma das minicracolândias de São José do Rio Preto. "Crack dá grande prazer. Um jovem falou comigo outro dia que é 22 vezes mais forte que o sexo", confirma o padre Haroldo Rham, referência no tratamento de dependentes no interior.
A principal substância envolvida nessa rápida e potente sensação de prazer criada artificialmente é a dopamina – neurotransmissor que age entre neurônios conduzindo mensagens do cérebro ao resto do corpo. Quando realizamos algo prazeroso, a dopamina é liberada, cai no espaço entre os neurônios (chamado sinapse) e, como uma chave entrando na fechadura, conecta-se a outro neurônio, passando mensagem de prazer. A dopamina que sobra volta ao neurônio que emitiu o sinal e o prazer acaba. Quando o crack chega ao cérebro, ele fecha no neurônio que emitiu o sinal os canais de recaptura da dopamina, fazendo com que ela fique mais tempo emitindo a mensagem. É a alta dosagem da dopamina e de outros dois neurotransmissores (serotonina e noradrenalina) no sistema de recompensa que superestimula os músculos do corpo, causando sensações de aumento de energia, bem-estar e euforia.
A coordenadora de Saúde Mental da Prefeitura de São José do Rio Preto, Daniela Terada, avalia que o crack é hoje o maior risco entre as drogas em circulação no País. "É a mais forte e de adição mais violenta no Brasil. O indivíduo deixa de ser produtivo, de ter vínculo com outras pessoas – mais do que um usuário de álcool – e perde as referências e as condições gerais de saúde."
Alexandre (nome fictício), de 33 anos, que descobriu o crack há oito, confirma. "Foi tudo muito rápido. Quando começou o crack, já me internei rapidamente, foi avassalador. Comecei a emagrecer muito e a virar dois dias seguidos sem aparecer em casa. Com a cocaína eu voltava, mas com o crack não conseguia mais. Estamos falando de uma epidemia. Tirando a heroína, que não se usa no Brasil, é a droga mais violenta." Em tratamento em Vera Cruz, no Centro-Oeste paulista, ele conta como descobriu a droga. "Acabou a cocaína, eu falei (para um amigo): ‘Posso experimentar o crack’. Ele me deixou usar. Depois daí, nunca mais cheirei cocaína."
A rapidez e a potência com que a droga age no cérebro estão relacionadas ao maior risco de o usuário virar dependente. No livro O Tratamento do Usuário de Crack (Editora Artmed), os psiquiatras Ronaldo Laranjeira e Marcelo Ribeiro afirmam que, quanto mais instantâneo, intenso e efêmero o efeito da droga, maior a possibilidade de ela ser consumida novamente, o que leva ao uso compulsivo. Enquanto o efeito da cocaína inalada pode durar até uma hora, no crack ele passa em média em 15 minutos.
"Você sente o prazer no primeiro trago. O primeiro é o melhor. Depois, nos outros você vai indo atrás do primeiro, vai buscando. Um só não vai satisfazer não. Você quer um, outro, outro, outro. Aí, R$ 200, R$ 300, o que tiver no bolso você leva", explica Carlos, em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Garça.
No começo do mês, o neurocientista americano Carl Hart, um dos especialistas mundiais em dependência, defendeu a ideia de que é essa minoria que faz da droga um monstro aos olhos da sociedade e das autoridades. Segundo ele, os usuários viraram o bode expiatório do problema. "Antes de o crack chegar ao Brasil, a população das favelas não tinha problemas? Estudavam em universidades? Ocupavam cargos públicos? Eu visitei uma cracolândia. O crack não é o problema deles. A pobreza é o problema."
Em sua opinião, "é mentira que se fumar crack uma vez você pode se viciar pelo resto da vida". E citou o ex-prefeito de Toronto, Rob Ford, que renunciou ao cargo após assumir publicamente neste ano ter consumido a droga.
Estudo conduzido por Hart sustenta que 89% dos usuários não se viciam. Para comprovar a tese, ele ofereceu US$ 5 para que craqueiros deixassem de fumar a segunda pedra – só 11% preferiram a droga. O resultado, em sua opinião, é prova de que é a condição pessoal e social do indivíduo que o torna compulsivo. "Quando eles receberam uma alternativa para parar, fizeram decisões econômicas racionais. Então eu percebi que o crack não é o real problema."
"A gente sabe que a droga não é boa ou má. O que pode ser boa ou má é a maneira como você se relaciona com ela. A maior prova disso é o álcool – a grande maioria dos usuários não é dependente e usa de forma controlada. Isso é válido para drogas ilícitas", acrescenta Dartiu, da Unifesp.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a dependência existe quando a pessoa usa a droga por impulso e de forma repetitiva (diariamente ou com frequência) para conseguir sensação de prazer ou evitar o desconforto gerado por sua ausência no organismo. Há dois tipos de dependência: física e psíquica. No primeiro caso, o corpo apresenta sintomas e sinais quando o usuário interrompe o consumo. É a chamada crise de abstinência, que existe no caso do álcool e da heroína. Outro mito, de acordo com Dartiu, é que, quando interrompido o uso, o crack causa crise de abstinência física. A dependência que ele provoca, no entanto, é psicológica. Quando fica sem a droga, o viciado tem sintomas de mal-estar e desconforto, como ansiedade, sensação de vazio, dificuldade de concentração, que variam de acordo com a pessoa.
"Sinto inquietação, coceira, irritação, principalmente irritabilidade", explica Michel, de 31 anos, um garoto rico do interior paulista, internado pela 14.ª vez, em uma comunidade terapêutica de Vera Cruz.
"O crack que dá muito prazer dura dez minutos e a pessoa entra em grande depressão. Então quer imediatamente mais crack para ter bem-estar. Ela já esqueceu o que é viver sóbrio. E daí sofre terrivelmente", explica o padre Haroldo Rham, referência no tratamento de dependentes no Brasil.
Outro problema do dependente que faz uso compulsivo e por longo período é que, com o passar do tempo, além de o cérebro aumentar sua tolerância em relação à química da droga, exigindo um consumo cada vez maior e propiciando um barato cada vez mais fraco e fugaz, surgem as sensações de perseguição, medo e alucinações relatadas pela maioria dos usuários ouvidos pela reportagem.
À saúde, o crack pode provocar danos irreparáveis, principalmente para o coração e o cérebro, ao reduzir a oxigenação e potencializar distúrbios mentais. "O indivíduo tem arritmias cardíacas, enfarte, uma subida rápida da pressão arterial e pode ter um derrame", explica Dartiu. "O principal dano é cerebral, a pessoa fica bem desorganizada", completa o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. A quantidade e o tempo de uso de droga impactam nesses estragos. "São os microinfartos cerebrais, pequenas impossibilidades de irrigação de determinadas áreas cerebrais, que fazem a pessoa começar a ter alterações de capacidade de habilidades cognitivas, do tipo atenção, memória, capacidade de concentração", esclarece Dartiu.
"Tem coisas que eu não lembro. Sabe, as datas... Apesar de ter uma saúde boa, por todo esse uso de drogas eu não me lembro muito... Tem flashes que eu esqueço, porque teve muito neurônio queimado pelas drogas", diz Dênis (nome fictício), de 48 anos, filho de família rica que conheceu a cocaína aos 19 e terminou no crack.
O uso em grande quantidade e por longo período pode provocar uma série de danos também em outros órgãos vitais, como rins, fígado e pulmões. O último não só pelo calor da fumaça, da química ingerida e pela contração dos vasos sanguíneos, mas também por aumentar os riscos de pneumonia e tuberculose, doenças que se aproveitam da debilidade do organismo dos usuários, que deixam de comer, e do ambiente precário onde usam a droga. "O crack faz as pessoas emagrecerem, aumenta o risco de contrair HIV, tuberculose, ficar grávida. Quando elas chegam ao tratamento, estão muito debilitadas", explica Laranjeira
A pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) encomendada pelo governo federal apontou que 10% das mulheres que usavam regularmente crack estavam grávidas no momento da entrevista e mais da metade já havia engravidado pelo menos uma vez após iniciar o consumo. Para os pesquisadores, coordenados pelos professores Francisco Inácio Bastos e Neilane Bertonio, trata-se de um dado preocupante, levando-se em conta os riscos para o desenvolvimento neurológico e intelectual das crianças geradas por mães usuárias.
"Fiquei até os três meses da gestação fumando crack", conta Vanessa, de 30 anos e na terceira gravidez, internada na clínica do Estado em Botucatu. A unidade, de internação breve, permite às gestantes passar toda a gravidez em tratamento. Ela foi enviada para lá de São Paulo, depois de ser resgatada na cracolândia da região da Luz. "O crack foi minha devastação, foi muito rápido. Comecei em abril. Em junho, eu já estava internada numa clínica. Porque foi muito: todo dia, todo dia, todo dia."
A 154 quilômetros dali, em Ibitinga, Cássia (nome fictício), de 28 anos, conta que teve três filhos e durante a gravidez de todos eles usou a droga até o parto. Nenhum, segundo ela, tem sequelas aparentes. "Mas meu neto teve de passar por tratamento psicológico depois que a Justiça deu sua guarda. Ela pegava a criança com 1 ano de idade e ficava no mato fumando pedra o dia inteiro. Colocava do lado e fumava, não deixava ninguém segurar a criança", conta a mãe da usuária, que a acompanhou até o serviço de saúde mental para pedir sua internação. "Quando meu neto chegou em casa, a gente dava carrinho para ele brincar e ele nem dava bola. Mas, se via uma lata no chão, pegava, colocava perto da boca e estalava os olhos", lembra. A dona de casa, que pediu que seu nome não fosse divulgado, teve três dos seis filhos viciados em crack - apenas a irmã de Cássia conseguiu abandonar o uso.
"Tô morrendo, tô morrendo por dentro, não tô vivendo, tô vegetando. Não consigo comer, não consigo dormir. Moro de frente para a biqueira. Tá osso, hein. Tô vendo criança de 9 anos fumar drogas, criancinha de 9 anos. O crack leva à morte. Não quero a morte, eu tenho filho", desabafa Cássia, que nas ruas trocava sexo por crack ou dinheiro para usar a droga.
Ela faz parte de uma estatística preocupante: o comportamento de risco das usuárias foi verificado na pesquisa da Fiocruz para a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). O estudo apontou que elas têm muito mais risco de contrair doenças que a população em geral – entre os adictos de crack, por exemplo, há oito vezes mais casos de aids do que na média do povo brasileiro.
O risco de doenças indiretas é potencializado pelo local e modo usado pelos craqueiros para consumir a droga. A pedra é queimada em cachimbos improvisados, latas amassadas, copos plásticos com tampa metálica, bico de válvula de fogão e canos de PVC. Por conterem metais pesados e substâncias químicas, há consequências para o organismo – a fumaça tem alto potencial cancerígeno.
"O cachimbo custa de R$ 5 a R$ 10. Se estiver recheado, é mais caro", explica Jimi, de 39 anos, usuário de São José do Rio Preto, enquanto monta um cachimbo com um isqueiro cortado ao meio e um cano de antena. Nos pontos coletivos de consumo, é comum a troca de apetrechos. Assim como a mistura com cigarros (chamados de pitilho) ou maconha (mesclado).