Ronaldo Francini Filho descobriu a biologia marinha caçando formigas em Alcatrazes com o pai, um renomado ecólogo e professor de ciências biológicas em Santos, no litoral paulista. O ano era 1994; o movimento pela criação do Parque Nacional Marinho dos Alcatrazes estava em alta, e ele acabara de passar no vestibular para cursar Biologia na Universidade de São Paulo. “O velho resolveu me dar um presente e me levou para coletar insetos na ilha com ele”, lembra o pesquisador. Mas o que acabou capturando seu interesse mesmo foi o mar.
A importância de Alcatrazes para a biodiversidade marinha brasileira extrapola suas águas. O arquipélago foi o berço do mergulho científico brasileiro e escola de ambientalismo para uma geração de jovens pesquisadores que hoje trabalham com conservação marinha em todo o País. “Meu fascínio começou ali, vendo a galera trabalhar em Alcatrazes; fiz um curso de mergulho e fui trabalhar no mar”, conta Francini Filho, o “Magra”, hoje professor da Universidade Federal da Paraíba e um dos maiores especialistas em peixes e ecossistemas recifais do Brasil, com mergulhos anotados ao longo de toda a costa nacional.
Dentro d'água naquela época, fazendo os primeiros inventários da fauna marinha de Alcatrazes, já estavam seu irmão, Leo Francini, e o colega Rodrigo Leão de Moura, dois jovens estudantes de biologia da Universidade Católica de Santos (Unisantos), que teriam um papel fundamental em revelar a importância ambiental do arquipélago. “Até então ninguém fazia pesquisa científica com mergulho no Brasil. Os professores davam risada; chamavam a gente de Jacques Cousteau”, conta Moura, hoje com 44 anos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos cientistas marinhos mais experientes do Brasil. “Alcatrazes tem esse legado; foi uma escola de pesquisa e ativismo para muita gente.”
O que a molecada descobriu debaixo d’água — e continua a descobrir até hoje — foi um éden de biodiversidade marinha. Mesmo sem contar com a colorida opulência dos recifes de corais, típicos de águas tropicais mais quentes e cristalinas ao norte, o arquipélago ostenta uma variedade de vida impressionante. Para se ter uma ideia, Alcatrazes tem mais variedades de peixes do que Fernando de Noronha: algo entre 200 e 250 espécies, comparado a 150 do arquipélago pernambucano (os números variam de acordo com a metodologia usada para elaborar as listas). Isso inclui desde peixinhos coloridos que vivem entocados em fendas até raias-mantas e tubarões que vêm se alimentar por ali de tempos em tempos.
“Além de ser o maior arquipélago de São Paulo, Alcatrazes tem uma grande diversidade de habitats marinhos, que outras ilhas não têm”, explica Moura, que cresceu em Santos e pescava lá com o pai quando moleque, antes de virar cientista. Também contribui o fato de Alcatrazes não estar nem muito longe nem tão próximo da costa; e de estar numa zona de transição entre águas tropicais (mais quentes) e subtropicais (mais frias). “É como se você tivesse duas regiões biogeográficas empilhadas; e o resultado disso é uma riqueza de espécies muito elevada.”
“É incrível imaginar que tão perto de uma das maiores zonas metropolitanas do mundo você tem um lugar como esse”, impressiona-se o pesquisador Guilherme Henrique Pereira Filho, parte de um grupo do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Santos, que desenvolve vários projetos de pesquisa em Alcatrazes. “Para mim sempre foi o paraíso do Sudeste”, completa Francini Filho. “Foi onde fiz alguns dos melhores mergulhos da minha vida, com certeza.”
“Foi aqui em Alcatrazes que eu comecei a mergulhar, que eu comecei a fotografar; então praticamente tudo o que eu faço hoje é graças a essa ilha”, completa o irmão, Leo Francini, que também nunca deixou o mar, trabalhando como biólogo, mergulhador e fotógrafo profissional.
Convivendo com os peixes — e em alguns casos, se alimentando deles — pode-se encontrar também tartarugas-marinhas em abundância, golfinhos, baleias e mais de 400 espécies de invertebrados que vivem associados ao seu substrato marinho; incluindo aí lulas, caranguejos, ouriços, estrelas-do-mar, anêmonas e as carismáticas lesminhas coloridas, chamadas de nudibrânquios. Entre os corais, as espécie mais abundantes são o cérebro (Mussismilia hispida, endêmica do Brasil) e o Madracis decactis; que não chegam a formar estruturas recifais próprias, mas recobrem o substrato rochoso das ilhas, agregando complexidade e beleza ao ecossistema.
“Isso é para quebrar o paradigma de que só existe biodiversidade marinha no Nordeste, nos recifes de coral”, diz o pesquisador Fabio Motta, 42 anos, também do Instituto do Mar da Unifesp — mais um biólogo que se inspirou em Alcatrazes para trabalhar no mar. “Eu via aquelas expedições saindo para fazer pesquisa no arquipélago e ficava só babando, imaginando quando seria minha vez de ir para lá”, conta ele, lembrando dos tempos de graduação na Unisantos, no início da década de 1990.
Demorou 20 anos para realizar o sonho, mas ele chegou lá. Desde 2015, Motta coordena um projeto de monitoramento das áreas de proteção marinha do Estado de São Paulo, com o objetivo de medir os impactos dessa proteção (ou da ausência dela) na biodiversidade dessas unidades, com apoio da SOS Mata Atlântica. No foco do estudo estão o Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, principal destino turístico de mergulho do litoral paulista; a Estação Ecológica Tupinambás, que desde 1987 cobre parte do Arquipélago dos Alcatrazes; e a Ilha da Queimada Grande, a 35 quilômetros de Peruíbe, que não tem proteção nenhuma. Utilizando metodologias padronizadas, os pesquisadores inspecionam regularmente a quantidade e a diversidade de vida marinha presente nesses locais.
Resultados preliminares mostram uma diferença de 60% na biomassa (quantidade) de garoupas e badejos — peixes de alto valor comercial, muito visados pela pesca — na Queimada Grande, em comparação com Laje e Alcatrazes, que apresentam biomassa equivalente. “É uma diferença chocante”, observa Motta. “Você vê como a proteção faz diferença.”
Mesmo que a fiscalização não seja onipresente, o fato de serem áreas sob proteção legal acaba surtindo algum efeito positivo, pelo menos no sentido de desestimular invasores e reduzir a pressão de pesca. Na Laje de Santos, o turismo de mergulho é um aliado importante das autoridades, pois há pessoas circulando pelo local regularmente. Em Alcatrazes, o fato de ser uma zona militar, sob jurisdição da Marinha, ajudou a manter os barcos de pesca parcialmente afastados — ainda que a presença dos militares no local fosse apenas esporádica. A Estação Ecológica Tupinambás foi criada por decreto em 1987, mas só foi implementada em 2001; e até 2011 não tinha embarcação própria de fiscalização.
“Não há dúvida de que a presença da Marinha desencorajou muito a pesca”, diz o biólogo Fabio Olmos, do Projeto Dacnis, que participou de vários levantamentos de fauna em Alcatrazes nos últimos 20 anos. “Não que a ilha tenha ficado intocada, mas criou uma espécie de parque involuntário, que ajudou bastante na conservação do ambiente marinho.”
Ainda assim, o que se vê hoje mergulhando no arquipélago já é uma versão empobrecida do que se via algumas décadas atrás, diz Olmos, especialmente no que diz respeito à escassez de grandes peixes. Há histórias de meros e tubarões mangonas que viviam por ali, mas há muito não são vistos. “As larvas dos peixes estão circulando por aí, no plâncton; só precisamos dar um porto seguro para elas se fixarem e se desenvolverem”, observa Olmos. “A Laje de Santos já foi um lugar extremamente detonado, mas a proteção, mesmo que não absoluta, permitiu o retorno de muitas espécies.”
Com a criação do Refúgio de Vida Silvestre dos Alcatrazes (30 vezes maior que a Estação Ecológica), em agosto deste ano, a expectativa é que a quantidade de vida marinha no arquipélago aumente ainda mais, recuperando sua pujança anterior. Desde, é claro, que a proteção da unidade seja implementada na vida real, em parceria com as comunidades locais, e não fique apenas no papel. No caso das espécies de peixes residentes e de maior porte, como badejos, chernes e garoupas, uma única intrusão de pesca ilegal pode ter efeitos devastadores, pois a população demora a se recompor.
“Qualquer distúrbio momentâneo na infraestrutura de proteção pode jogar no lixo todo um esforço de anos de conservação”, alerta Motta, pouco antes de cair na água para mais um mergulho científico no arquipélago. “Por isso a importância da constância e perenidade da fiscalização.”
Nesse contexto, a visitação pública é apontada como um componente indispensável à proteção das unidades. “Quando você tem gente no local, olhando o tempo todo, isso afasta os marginais”, diz Olmos. “Não é apenas importante, é fundamental.”
“A melhor estratégia para proteger Alcatrazes é abrir para visitação”, reforça a veterinária Juliana Saviolli, do Instituto Argonauta, que cresceu contemplando a ilha no horizonte e ouvindo histórias incríveis do pai, mergulhador, que participou de uma travessia a nado para chamar atenção para Alcatrazes, na década de 1990. Gente no litoral querendo conhecer o arquipélago não falta, garante ela. “É impossível chegar lá e não se apaixonar, não querer preservar.”
Invasão Biológica
Por mais ostensiva que seja a fiscalização, porém, há uma ameaça que não pode ser afastada com barcos nem intimidade com armas de fogo. É o coral-sol, uma espécie invasora do Oceano Pacífico, que vem se espalhando pelo litoral brasileiro desde a década de 1980.
A situação mais grave é na região de Búzios, no norte do Estado do Rio, onde o coral-sol já se tornou a espécie dominante do substrato marinho, ocupando todo o espaço das espécies nativas. “Imagine se a Mata Atlântica fosse substituída por pinheiros; é isso que está acontecendo com o coral-sol”, diz o pesquisador Marcelo Kitahara, também do Instituto do Mar da Unifesp. Em Búzios, a situação já é irreversível, segundo ele. Imagens feitas no ano passado mostram grandes áreas de costão rochoso do balneário completamente forradas de coral-sol. “Quando a cobertura chega a 100%, o manejo não é mais possível. O esforço de mergulho é tão grande que torna-se impraticável.”
Em Alcatrazes, a espécie foi detectada pela primeira vez em 2011. Para evitar que a história de Búzios se repita por ali, a gestão da Estação Ecológica Tupinambás iniciou em 2013, em parceria com os pesquisadores, um trabalho de monitoramento e controle do coral-sol no arquipélago, baseado em vistorias e remoções periódicas da espécie. O combate tem de ser feito manualmente, corpo-a-corpo, raspando os corais das rochas como se fossem cracas no fundo de um barco — ou mudas de pinheiro no meio da floresta.
Desde o início dos trabalhos, já foram detectados 22 pontos de infestação no arquipélago, e removidas aproximadamente 30 mil colônias de duas espécies de coral-sol: Tubastraea tagusensis e Tubastraea coccinea; assim chamadas por causa do seu formato tubular. Cada colônia parece um buquê de flores encravado na rocha; alguns amarelos, outros mais alaranjados. Um bichinho bonito, mas ordinário, ecologicamente falando.
Como toda espécie invasora que se preze, o coral-sol é extremamente resiliente e se multiplica com uma facilidade assustadora. Para começar, são animais hermafroditas — ou seja, cada colônia tem autonomia reprodutiva. E para piorar, qualquer pedacinho de coral que ficar preso à rocha tem a capacidade de regenerar o animal. “Em questão de 20 dias, um fragmento que não tem boca nem tentáculos, numa área de 1 milímetro quadrado, consegue se regenerar até formar um novo indivíduo completo”, alerta Kitahara. Caso fique solto na coluna d'água, esse mesmo pedacinho pode se fixar em outro lugar e dar origem a uma nova colônia, como numa metástase. “É como um câncer; se você deixar um pedacinho no organismo, ele reaparece.”
Para evitar isso, os pesquisadores vêm testando um “aspirador de pó submarino”, usado para sugar todos os fragmentos de coral à medida que a raspagem é feita. Eles aproveitam o trabalho de monitoramento e manejo para pesquisar e aprender mais sobre o invasor.
Uma das metodologias consiste em comparar o desenvolvimento do coral-sol em áreas adjacentes de um paredão rochoso; metade das quais foi minuciosamente raspada (parcelas manejadas), enquanto que a outra é deixada intocada (parcelas controle). O objetivo é ver se o coral-sol volta a se desenvolver nessas áreas limpas, quanto tempo isso leva para acontecer, e como a presença dele nas áreas não tratadas impacta a biodiversidade nativa.
“Em locais onde a invasão ainda está começando e o porcentual de cobertura do costão ainda é pequeno, acho que sim, é possível fazer esse manejo”, diz Kitahara. Por enquanto, a situação em Alcatrazes está sob controle, diz ele, mas é ilusório falar em erradicação. “É um problema para sempre, que precisará ser controlado ad aeternum”, conclui o pesquisador.