Dez anos depois, o que aconteceu com os principais personagens do crime

Pelo noticiário da tevê, os dois acompanhavam as novidades. Tinham assistido aos relatos de sequestros, roubos, extorsões e mortes contra os que, em outra hora, já tinha sido comparsas no crime. Temeram. E depois riram. Temeram porque podiam ser os próximos a serem pegos. Riram depois porque sabiam que, em meio a tantas histórias que surgiam, muitas não passavam de folclore.

Os dois eram Alemão e Moisés, as últimas peças da quadrilha capturadas pela Polícia Federal. Para isso, foram necessários quatro anos. Além das provas que deviam ser convincentes para que o juiz Danilo Fontenelle condenasse os criminosos, era necessário encontrar pessoas que não trabalham, votam ou estudam, pulam de casa em casa, trocam de chip de celular como de roupa. Enfim, gente cuidadosa, arisca, que sabia ter os federais atrás de si.

Moisés era um desses homens. O ladrão que se equilibrava entre policiais corruptos e colegas traiçoeiros vivia em um flat na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Soube gastar sem chamar a atenção. Parecia um dos poucos preparados para viver com os milhões do Banco Central sem ser triturado por tudo o que aquele dinheiro atraía.

Insistentemente tentavam pegá-lo, mas ele não falava no telefone. Mantinha contatos com seus antigos colegas que pertenciam à facção criminosa. “Todo bandido que comete um grande crime deve pagar uma contribuição ao PCC”, contou o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, um das maiores especialistas em crime organizado no Estado. Christino investigou o PCC desde o começo do século e foi responsável por algumas das mais duras denúncias contra os integrantes da facção.

Moisés nem sequer usava o mesmo chip mais do que uma semana. Fez implante capilar, afinou o pescoço e cuidou que não fosse fácil para a polícia reconhecê-lo. Um dia, porém, a rede traçada pelo delegado Antonio Celso conseguiu detectar o bandido. Localizaram o seu flat, mas não sabiam se o homem estava mesmo lá dentro. Um dos federais pensou em um ardil: iam bater no carro do de Moisés, simulando um acidente na garagem. O porteiro ia chamá-lo e, quando chegasse, as algemas iam apertar seus pulsos. Assim foi feito. E deu certo. Era agosto de 2009, quando o último dos ladrões do Banco Central foi finalmente pego. “Vocês demoraram muito. Pensei que vocês haviam desistido de mim”, ironizou o homem.

Cofre encontrado na casa de “Alemão”, onde estava R$ 80 mil. Foto: Divulgação No ano anterior, em fevereiro de 2008, a equipe de Antonio Celso havia capturado outro chefe do bando: Alemão. O homem comprara um sítio e construíra uma casa onde colocara parte do dinheiro em um cofre, escondido sob o piso, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. O delegado sabia que o homem que reuniu em torno de si as três quadrilhas que participaram do furto estava diferente. Deixara os cabelos crescer, usava óculos e nem de longe lembrava o rapaz franzino, de cabelos curtos, cuja fotografia constava como uma das mais consultadas nas páginas do gigantesco inquérito policial sobre o crime.

Para ter certeza de que o imóvel pertencia ao bandido, Celso se fez passar por corretor de imóveis. Visitou a casa e verificou que suas informações estavam corretas. Era ali que se escondia Alemão. Dias depois, ele voltou com toda sua equipe. Alemão não teve chance de escapar. Algemado, levou os policiais até o cofre no qual guardava ainda R$ 80 mil em notas de R$ 50, todas retiradas da caixa-forte.

Quebra-cabeça. A missão de Antonio Celso parecia concluída. Alguns meses depois, foi convidado para assumir o posto de adido policial na embaixada brasileira no Paraguai. Ali o delegado responsável por desarticular o banco dos toupeiras ia reencontrar o Primeiro Comando da Capital. O país vizinho começava a funcionar como uma espécie de escritório do PCC e do Comando Vermelho, facções que se associaram a criminosos locais.

Seu trabalho começara com uma investigação sobre a cúpula do crime organizado, que nasceu de interceptações telefônicas que poucos em São Paulo sabiam da existência. Feitas na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, os grampos mostraram que Wagner Roberto Raposo Olzon, o Fusca, recebera uma missão especial da facção: encontrar em Porto Quijaro - cidade boliviana na fronteira com Mato Grosso do Sul - Dom Eduardo, um homem importante da região da fronteira, que apresentaria Fusca e outro enviado do PCC a homens ligados às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

O objetivo era importar uma tonelada por mês de cocaína da Bolívia. Nesse quebra-cabeça, entrava outra peça: o traficante paraguaio Carlos Alberto Caballero, o Capilo, que se tornou representante do PCC em seu país. Era lá que estava Antonio Celso e foi em parceria com a Secretaria Nacional Antidrogas que o homem trabalhou até conseguir pôr atrás das grandes Capillo e cortar, assim, a primeira conexão feita pela facção criminosa fora do País – três brasileiros substituiriam Capillo, detido em 2011: Claudio Marcos Almeida, o Django, Rodrigo Felício, o Tiquinho, e Wilson Roberto Cuba, o Rabugento.

Mesmo com o aumento da vigilância da PF na região e a entrada em ação dos adidos policiais no Paraguai e na Bolívia – estratégia semelhante à usada na América do Sul pela Drug Enforcement Administration (DEA), a agência antidrogas americana -, ­ o negócio da droga prosperou. Em 2013, a facção estava presente em 22 Estados e três países.[1] Só a cúpula da Família ou Partido, como seus membros chamam a organização, tinha cerca de R$ 8 milhões de lucro por mês com o tráfico, sem contar os R$ 2 milhões com a “loteria” da facção e outras fontes de renda, como imposto do crime, pago por Moisés e outros ladrões do Banco Central . Estimava-se que a organização arrecadava R$ 120 milhões por ano, o que a colocaria na época entre as 1.200 maiores empresas do País, segundo o volume de vendas. Ao todo, a facção teria cerca de 6 mil integrantes em São Paulo e outros 4 mil em outros Estados.

Depois de vigiar o PCC, Antonio Celso se aposentou. O homem que desarticulou os toupeiras hoje dá palestras sobre segurança e consultoria e invariavelmente tem de responder a perguntas sobre o crime. Alemão, Moisés, Pedrão, Deusimar e outros bandidos importantes nessa histórica continuam presos – se não exclusivamente pelo crime do Banco Central, por outros que a polícia lhes imputou. O juiz Fontenelle e o procurador Samuel Arruda continuam trabalhando no Ceará.

Sentenças. Os irmãos Minichillo - Eliseu e Isaac - advogam ainda para os maiores ladrões de banco e de carro-forte do País, sempre em busca de penas justas para quem cometeu crimes famosos. De protetor, Eliseu passou a investigado na Operação Facão Toupeira e teve mandado de prisão expedido pela Justiça por supostamente ajudar membros da quadrilha a obter documentos falsos. Imputação que foi anulada em instâncias superiores. “Um grande mal entendido”, segundo o advogado, que recorda sem aparente mágoa o episódio. “Liguei para o meu cliente pedindo que ele fosse pegar a identidade dele no Poupatempo. Era um sábado e o delegado, que não é daqui de São Paulo, achou que eu estava auxiliando os homens com documento falso, mas não era nada disso. E ele entendeu depois”, disse Eliseu.

Além de Minichillo, outros dois advogados dos criminosos viraram réus por acusações de lavagem de dinheiro: Edson Campos Luziano e Márcio Souza da Silva, vulgo "Márcio Chin". Godofredo Bittencourt Filho, o homem que dirigia o Deic, também se aposentou. O experiente delegado foi alcançado pela lei que diminui de 70 para 65 anos o limite de permanência de servidores na polícia.

O juiz Danilo Fontenelle voltou à rotina da 11ª Vara da Justiça Federal do Ceará. Especializada no combate à lavagem de dinheiro e a crimes contra o sistema financeiro, a vara foi criada em 2001, junto com outra em São Paulo. Mesmo depois de uma década, o magistrado ainda não está livre do caso do Banco Central. Ainda faltam duas ações penais por julgar, com 26 réus.

Um dos especialistas em túneis da quadrilha e conhecido por “engenheiro”, Pedrão denunciou as repetidas extorsões que sofreu, supostamente praticadas por policiais paulistas. Foi condenado a 25 anos e seis meses de prisão sob acusações de furto, formação de quadrilha e uso de documento falso. Pelas mesmas razões, “Véio Davi”, que também participou diretamente das escavações e era ligado à ala paulista da quadrilha, acabou condenado a 17 anos e seis meses de prisão.

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Com outros colegas vigilantes, Deusimar Neves de Queiroz foi responsável por passar informações privilegiadas sobre o funcionamento da caixa-forte do Banco Central. Acabou condenado por envolvimento com a quadrilha, pelo furto e por ter lavado o dinheiro conseguido ilegalmente. Pegou 47 anos de prisão na 1.ª instância, pena reduzida para 25 anos e seis meses em 2.ª instância.

Ex-prefeito de Boa Viagem, onde também nasceram outros membros da quadrilha que atacou o Banco, Antônio Argeu Nunes Vieira foi preso em 15 de novembro de 2008 pela Polícia Federal em Fortaleza. Respondeu a parte do processo em liberdade, tendo sido condenado em 1.ª instância a 47 anos de prisão, pena reduzida para 18 anos após recurso, pelos crimes de furto qualificado, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Está solto.

Argeu foi prefeito de Boa Viagem, cidade do sertão cearense com 52 mil habitantes, entre 1994 e 1996. De acordo com a Justiça, ele tinha uma relação próxima a “Alemão”. Investiu R$ 100 mil para os preparativos da escavação e ficou com R$ 4 milhões da partilha do roubo. A PF detectou um aumento repentino de patrimônio nos dois anos seguintes ao crime, principalmente, com a aquisição de propriedades rurais na sua cidade natal em nome de laranjas.

Raimundo Laurindo Barbosa Neto, pertencente ao clã Laurindo, participou ativamente no planejamento e escavação do túnel em Fortaleza. Foi um dos poucos a entrar na caixa-forte com Alemão. Após lucrar com o furto, foi flagrado enquanto planejava a execução de novos roubos nos mesmos moldes em Porto Alegre. Condenado a 170 anos em 1.ª instância, principalmente por casos de lavagem, teve a pena reduzida para 17 anos de prisão.

Jorge Luiz da Silva, o “171” da quadrilha, foi o rosto da falsa empresa de Grama Sintética aberta para dar fachada aos trabalhos de escavação na Rua 25 de março. Sua identidade utilizada para abrir a firma foi uma das primeiras pistas que a polícia teve. Foi condenado a 50 anos de prisão pelo crime, mas sua pena foi reduzida para 19 anos em 2.ª instância.

A casa. Hoje reina o silêncio na Rua 25 de março, centro de Fortaleza. Dez anos após o furto ao Banco Central, os vizinhos da casa número 1.071 não falam sobre o caso. “Sabe o que é, minha filha? Todo mundo aqui tem medo ainda”, disse ao Estado a dona de um comércio que os ladrões costumavam frequentar, vestidos de funcionários da empresa de Grama Sintética. Jorge era o “dono” e se passava por Paulo Sérgio. “Ninguém gosta de falar disso”, afirmou uma comerciante. Depois do crime, pouco mudou na rua 25 de Março. A casa ganhou nova roupagem: deixou de ser verde e hoje é branca com detalhes em azul. Os vizinhos garantem que não há ninguém morando. O dono da casa não quer falar. “Procure outra pessoa. Não tenho interesse em falar”, disse antes de fechar a porta depressa.

Quem passa na rua e espia pelo portão de ferro vazado da casa consegue ver somente a garagem. Ali, há folhas secas, dois tijolos, um vaso pequeno de cimento vazio e outro vaso com três tipos de planta bem cuidadas. À primeira vista, não resta espaço para um carro estacionar. Um buraco amplo no teto, com pelo menos um metro de diâmetro, deixa claro que a garagem necessita de uma reforma.

Do lado oposto, diante da casa, uma parede azul, cimentada e pichada deu lugar ao que era uma sauna gay há dez anos. O local era frequentado por Jorge, contam os vizinhos, que participava das festas sob o pretexto de se integrar à rotina da rua.

Nos últimos dez anos, o lugar virou ponto turístico e chegou a fazer parte de roteiros de agências de viagem da cidade. O funcionário de um estacionamento, que preferiu não se identificar, brinca que o dono da famosa casa “ficaria rico” caso reabrisse o imóvel, cobrando entrada, para a visitação de curiosos. São tantos os que ainda caminham na calçada somente para conhecer in loco a casa do furto, que sua ideia seria transformá-la em uma espécie de museu do crime.

Líderes. Os principais líderes, Moisés e Alemão, deram trabalho à Polícia Federal, mas ambos foram postos atrás das grades. E lá devem ficar por um bom tempo. Alemão, o cabeça da ala cearense, foi preso em fevereiro de 2008, é mantido no Presídio de Avaré (SP) e ainda tem 28 anos de pena por cumprir.

Preso no ano seguinte, o chefe da quadrilha de São Paulo, Moisés, deve permanecer pelo menos 15 anos encarcerado. Em depoimento à Justiça, logo após ser capturado, o bandido revelou a intenção de se “regenerar”. Disse que queria trabalhar honestamente e educar o filho com “valores socialmente relevantes”. Ele contou ainda que, dois dias antes de ser preso, telefonou para o advogado e tratou sobre a possibilidade de se entregar. Só dois de seus comparsas continuam foragidos.

Na cadeia, alguns dos envolvidos no maior furto da história do País planejam novos e mais audaciosos crimes. Juiz federal responsável pelas investigações, Danilo Fontenelle não duvida que isso possa acontecer. “Embaixo do céu, tudo é possível”, afirmou.

Passados 10 anos do furto, ninguém diz saber onde foram parar cerca de R$ 100 milhões do total furtado do banco. “Até onde sei não sobrou dinheiro para ninguém, todos estão ‘duros’. Mas corre o risco de pensarem que estão com o dinheiro e serem sequestrados novamente”, ressaltou o advogado Eliseu Minichillo. De fato, com a maioria dos bandidos em liberdade, o grupo teme ser apanhado ou ver seus familiares nas mãos de outros ladrões. Todos têm medo de que comece tudo de novo. Para o juiz Fontenelle, as cédulas retiradas do banco pelo túnel são parte de um “dinheiro maldito”. Ninguém lucrou, quase todo mundo foi preso e condenado. Da euforia na caixa-forte, restou a preocupação. E revolta com seu destino. É o que diz Rafael. “Eu tô arrependido. Só tive prejuízo. Me tomaram tudo. Parecia um assalto.” O preso se levanta, e a entrevista acaba. O agente saca as algemas e manda o ladrão se voltar para a parede, com as mãos para trás. O grampo é colocado nos pulsos, e Rafael, conduzido de volta à cela. Passa pelo corredor da administração. O ladrão do banco central tem mais alguns anos de cadeia para acertar suas contas com a Justiça.

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