Policiais corrutos e bandidos comuns se uniram para roubar os ladrões
Ladrões do Banco Central são vítimas de acharques e sequestro Meio-campista habilidoso nas peladas do bairro, o vigilante Edilson dos Santos Vieira tinha o apelido de “Dez”, em referência ao número da camisa a que fazia jus no time dos amigos. Vigilante terceirizado, seu trabalho incluía passar semanalmente na sede do Banco Central para entregar malotes de valores. Partiu dele a primeira informação de que um furto poderia ser efetuado ali com certa facilidade, sem necessidade de uso de armas ou violência.
Pela ideia, “Dez” ficou com cerca de R$ 1,4 milhão do roubo. Mas o sonho logo se transformaria em tragédia. Edilson foi o primeiro alvo da quadrilha liderada por José Valdir Vieira de Freitas, o JP, um conhecido traficante cearense, que além de comprar e revender cocaína, decidiu lucrar em cima dos mais novos milionários da cidade, por meio de sequestros e extorsões.
Da primeira vez que sequestrou Edilson, o bando de JP pediu R$ 500 mil, prontamente pagos pelo então policial militar Edmilson dos Santos Vieira, irmão da vítima. A família percebeu que não teria vida fácil quando, após a libertação do vigilante, foi a vez do PM Edmilson ser sequestrado. Para devolvê-lo com vida, JP cobrou R$ 123 mil, quantia que também recebeu depois de pouco tempo. Em meio aos repetidos ataques, “Dez” foi encontrado morto, em um suposto suicídio , ocorrência que a Polícia Civil cearense nunca investigou, além da observação do exame necroscópico, que confirmava a morte por asfixia.
A quadrilha pensou ter achado ali uma fonte quase inesgotável de dinheiro e planejava achaques contra outros beneficiados com o dinheiro do Banco Central. O grupo só não esperava que poderia se tornar alvos na mesma velocidade. Foi a vez de investigadores da Delegacia de Narcóticos (Denarc) do Ceará encurralarem JP, com quem haviam encontrado dois quilos e meio de cocaína. Para não ser preso, a propina que devia ser paga era de R$ 40 mil, que acabou sendo entregue em duas parcelas pelos familiares do criminoso.
Buscando a todo momento pistas que levassem aos envolvidos do furto ao Banco Central, a Polícia Federal acompanhou em tempo real, por grampos, o achaque dos policiais do Denarc contra a quadrilha de JP. Na semana seguinte, três agentes e um membro da quadrilha de JP foram presos sob acusação de envolvimento no círculo de extorsões.
Rapidamente, outros membros da quadrilha que atacou o BC se tornariam alvos recorrentes de sequestros, agressões físicas e extorsões. Além dos ladrões, parentes e amigos passaram a ser vítimas dos ataques. Em um dos resgates mais caros exigidos por criminosos, a família de Luiz Fernando Ribeiro, o Fernandinho, pagou R$ 2,15 milhões pela liberdade do jovem. No dia seguinte ao pagamento, seu corpo foi encontrado morto com sinais de tortura. Estava sem documentos e só seria identificado tempo depois.
Era noite de 7 de outubro de 2005, quando Fernandinho chegava a uma boate no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Desceu da Montana blindada acompanhado por amigos, mas, antes que o manobrista pudesse pegar a chave da sua mão, ouviu de pelo menos quatro homens que o cercaram: “Polícia Federal!”. Foi colocado em um carro, que seguiu rumo incerto. Os colegas ainda chegaram a tentar perseguir o veículo, sob o temor de que não se tratasse de policiais, e sim de sequestradores, mas não tiveram sucesso.
No dia seguinte, os termos do pagamento do resgate já estavam sendo discutidos entre o grupo que levou Fernandinho e os familiares do ladrão. Fernandinho era um alvo valioso. Com dinheiro proveniente do tráfico havia financiado a escavação do túnel e tudo indicava que havia ficado com a maior fatia da divisão. Logo, o resgate teria de respeitar essa proporcionalidade.
A 1h20 da madrugada do dia 9 de outubro, o advogado da família reuniu o valor requisitado e foi a um posto de gasolina na Rua Azem Abdala Azem, perto da Rodovia Raposo Tavares, na zona oeste da capital paulista. Três pessoas em um Audi Preto recolheram o dinheiro e saíram sem dar mais satisfações. Sem receber notícias da libertação de Fernandinho, a família temeu pelo pior, ligou para um dos criminosos e recebeu a resposta de que a libertação estava dependendo da contagem das cédulas, que não havia terminado. Depois disso, ele seria entregue com vida.
Na manhã do dia 9, poucas horas após o pagamento, seu corpo foi encontrado com marcas de tiros de pistola às margens da Rodovia Fernão Dias, na altura do município de Camanducaia, em Minas Gerais. Estava com um gorro, de bruços, com as mãos para trás onde se notava marcas nos pulsos, sinalizando uso de algemas ou cordas.
Fernandinho teria morrido por ter reconhecido um dos seus sequestradores. Tratava-se de um investigador do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil paulista. Com o reconhecimento, o policial decidiu matá-lo. O envolvimento de homens do Deic permeou as apurações sobre a participação de policiais em casos de achaques. Sentados nos banco dos réus em Fortaleza, mais de 10 ladrões diriam à Justiça terem sofrido extorsões em São Paulo praticada por agentes da segurança pública.
A ânsia em investigar ramificações de parte da quadrilha que atacou o BC e retornou a São Paulo fez com que o então diretor do Deic, o delegado Godofredo Bittencourt Filho, proibisse diligências oficiais sobre qualquer pista ligada ao Banco Central. Era um crime federal, alegava, e, portanto, devia ser apurado pela PF.
Os ataques aos ladrões não cessaram. Um mês depois da morte de Fernandinho, foi a vez de Pedro José da Cruz, o Pedrão, ter sua casa, em Suzano, Grande São Paulo, invadida por seis homens que se disseram policiais. Em depoimento à PF, o ladrão confirmou que havia pago R$ 2 milhões para não ser preso. Poucos dias depois, outros quatro homens levaram Pedrão até uma delegacia e pediram R$ 450 mil . O ladrão apelou. Daquele jeito iam deixá-lo “duro”. Com medo de serem denunciados, os investigadores resolveram comprar o silêncio do ladrão. Deixaram R$ 50 mil para o bandido.
Uma semana depois, mais uma vez bateram na porta de Pedrão. Cansado de ser extorquido, ameaçou denunciar os policiais. O que não sabia é que daquela vez era 'cana' mesmo: os homens estavam ali para levá-lo preso, e não para roubá-lo. Eram os federais.
Réu em ações por roubo, porte ilegal de arma e tráfico de drogas na Justiça de São Paulo, Jean Ricardo Galian, o Jean Gordo, teve participação comprovada no furto em Fortaleza. No seu julgamento, relatou à Justiça ter sido vítima de três sequestros e ter pago R$ 2,46 milhões para sair com vida dos cativeiros. Outros membros do grupo, como Alemão e Moisés também relataram pagamento em dinheiro a criminosos para não serem levados a cativeiros.
Em abril de 2006, foi a vez do irmão de “Alemão” ser o alvo. O agricultor Jussiê Alves dos Santos estava em Fortaleza para uma consulta médica quando foi abordado por quatro homens em frente a uma clínica no bairro Aldeota e sequestrado. Por 12 dias, ele foi torturado e questionado por criminosos sobre o paradeiro do dinheiro do irmão. Acabou sendo libertado sem notícia oficial de que tenha pagado resgate. A família acreditava na época que ele havia sido confundido com Alemão pelas semelhanças físicas.
No mesmo mês, foi a vez de Raimundo Laurindo Barbosa Neto ser sequestrado. O ladrão estava sendo acompanhado pelos federais desde que descera no Aeroporto de Congonhas . Era 20 de abril de 2006. Os policiais corruptos levaram o ladrão para o cativeiro - os federais desconfiavam que ele era mantido em uma delegacia da cidade, mas Neto estava no escritório de um advogado. O investigador Victor Ares Gonzales, do 3.º Distrito Policial de Diadema, foi flagrado pelos federais negociando o resgate com um parente da vítima. Acabou preso e condenado a 11 anos de prisão pelo juiz Danilo Fontenelle Sampaio, da 11.ª Vara Federal de Fortaleza.
Representante de 16 réus em processos ligados ao BC, o advogado Eliseu Minichillo confirmou o cenário de violência que se instalou após o furto. “Vários réus foram extorquidos por policiais, extorquidos por falsos policiais, por ladrões também. Ou seja, ladrão roubando ladrão, ladrão sequestrando parente de ladrão. Todos que tiveram acesso a esse dinheiro, sem exceção, tiveram uma série de problemas”, contou.
Vários réus foram extorquidos por policiais
A rotina de extorsões surpreendeu até quem está acostumado a investigações dessa natureza há muito tempo. “Esperávamos que fossem acontecer extorsões de criminosos para tentar pegar o dinheiro do furto. Só não esperávamos que fosse algo com essa contundência”, disse o delegado Antônio Celso dos Santos, que conduziu todo o inquérito sobre o crime no Ceará.
A Polícia Federal atribuiu às recorrentes extorsões praticadas por policiais, verdadeiros ou falsos, o fato de não ter conseguido recuperar mais dinheiro levado da caixa-forte. A estimativa é de que entre 20% a 30% do valor total tenha ido parar nas mãos de policiais corruptos e outros ladrões que conseguiram achacar os integrantes da quadrilha.
A rotina de outros tantos criminosos, porém, passava longe do incômodo. Sabiam se proteger, esquivar-se dos ataques e continuar tocando a vida. Inclusive cavando novos túneis e planejando roubos ainda mais ousados. Para apanhá-los, a Polícia Federal organizou e executou uma das maiores operações feitas até hoje contra o crime organizado no País: a Facção Toupeira.
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