Capítulo 1

Biodiversidade terrestre

vídeo por Herton Escobar

É à noite que a fauna mais peculiar de Alcatrazes vem à tona. Depois de uma caminhada de duas horas mata adentro e morro acima, chegamos a um campo de bromélias no topo do Saco do Funil, a enseada que se forma entre os braços norte e leste da ilha, com quase um quilômetro de largura. Faltam ainda duas horas para o pôr do sol; então só nos resta esperar pelo anoitecer, quando despertam as cobras e as pererecas.

A vista do topo da ilha é magnífica. Alcatrazes se ergue abruptamente do mar como uma crista montanhosa em forma de Y, pontuada por grandes corcovas rochosas e ladeada por bolsões florestais, que se agarram como alpinistas aos seus paredões. Seu ponto mais alto, o Pico da Boa Vista, com 316 metros de altura, se parece tanto com o Corcovado quanto o Pão de Açúcar, dependendo do ângulo que se olha para ele. Ao norte, vê-se o contorno de Ilhabela e São Sebastião, com a Serra do Mar ao fundo, delineando o horizonte.

Geologicamente falando, a ilha já existe assim, como a vemos hoje, há pelo menos 2,5 milhões de anos. Não faz tanto tempo assim, porém, a paisagem que se via lá do alto era bem diferente. Para começar, não havia água; tudo o que se enxergava ao redor era terra firme, coberta de Mata Atlântica. Alcatrazes era uma montanha no meio da floresta, e não uma ilha.

Assim foi entre 85 mil e 15 mil anos atrás, durante o último ciclo glacial da Terra, quando o nível dos oceanos caiu drasticamente e a linha da costa estava recuada dezenas de quilômetros para o leste, segundo o geólogo Paulo César Giannini, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. Ou seja: durante 65 mil anos, foi possível caminhar em terra firme de São Sebastião até Alcatrazes. Difícil dizer se já havia seres humanos pré-históricos circulando por ali naquele período; mas cobras, sapos e outros bichos da floresta, com certeza.

Até que, com o fim da última era do gelo, o nível do mar voltou a subir e rodear Alcatrazes, isolando-a do continente. O que era montanha virou ilha novamente, e todos os bichos e plantas que ali ficaram ilhados tiveram de se adaptar a essas novas condições. Muitos acabaram extintos, enquanto que outros sobreviveram e deram origem a novas espécies, geneticamente e morfologicamente distintas de suas ancestrais do continente.

Um desses bichos diferenciados é a perereca-de-alcatrazes, chamada pelos cientistas de Scinax alcatraz, que agora procuramos em meio às bromélias do Saco do Funil. “Daqui a pouco elas começam a cantar”, avisa a bióloga Cybele Lisboa, da Fundação Parque Zoológico de São Paulo.

Vida nas bromélias
Pesquisadores da Fundação Parque Zoológico de São Paulo coletam pererecas nos bromeliais da Ilha dos Alcatrazes, no litoral norte de São Paulo. A perereca-de-alcatrazes é uma espécie endêmica da ilha, criticamente ameaçada de extinção. O Zoológico tem um projeto de reprodução da espécie em cativeiro.

Pequeninas, com menos de 3 centímetros de comprimento, elas passam os dias entocadas nas poças d'água que se formam entre as folhas das bromélias, para se proteger do sol e se esconder dos predadores. Mas basta cair a luz e os machos começam a piar, tentando atrair as fêmeas para suas plantas.

O canto é um chamariz também para os pesquisadores, que vasculham o bromelial com suas lanternas. O objetivo é coletar 14 pererecas para o programa de reprodução e pesquisa da espécie no Zoológico de São Paulo. Cybele explica que a população nativa da ilha está saudável; mas a população em cativeiro serve como uma reserva de emergência, caso alguma coisa venha a acontecer com ela. “Hoje a reintrodução não é necessária, mas a gente tem esse respaldo”, diz a pesquisadora.

Por ser um bicho que só existe em Alcatrazes — e cujo hábitat, até recentemente, estava sujeito a bombardeios e incêndios constantes —, a espécie é considerada criticamente ameaçada de extinção.

E ela não é a única. Às margens da trilha que usamos para chegar ao bromelial vive uma outra espécie de anfíbio endêmico de Alcatrazes, a rã Cycloramphus faustoi. Descoberta há pouco mais de dez anos, ela tem uma área de vida ainda menor do que a Scinax alcatraz: só existe ali, entocada em frestas de rochas nas escarpas do Saco do Funil, e em nenhum outro lugar da ilha. Por pouco a área não foi queimada por um incêndio em 2004, o que poderia ter extinguido a espécie antes mesmo de ela ser formalmente descrita pelos cientistas.

“Temos que estar atentos; pois do mesmo jeito que essas espécies surgiram elas podem desaparecer rapidamente”, diz o herpetólogo Otávio Marques, do Instituto Butantan, um dos biólogos com mais tempo de pesquisa logado em Alcatrazes. Assim como outros pesquisadores, ele acredita que ainda há muitas espécies endêmicas para se descobrir no arquipélago — especialmente entre os grupos menos estudados, como insetos e outros invertebrados. “Imagino que a maior parte das espécies locais seja diferenciada”, aposta Marques. “Só precisa pesquisar.”

“Ainda há muito esforço científico a ser feito em Alcatrazes”, reforça o biólogo Fausto Pires de Campos, do Instituto Florestal, que há três décadas lidera os esforços da comunidade científica e ambientalista pela conservação de Alcatrazes. “Vai aparecer muita coisa nova aqui ainda, pode ter certeza”, diz. “É o grande centro de biodiversidade do Estado de São Paulo.”

Serpentes

Durante a coleta dos anfíbios é preciso tomar cuidado para não pisar em uma outra espécie que também é endêmica da ilha e gosta de frequentar os bromeliais — inclusive para abocanhar alguma perereca desatenta, sempre que possível: a jararaca-de-alcatrazes, ou Bothrops alcatraz.

Com menos de 50 centímetros de comprimento, ela é uma variação anã da jararaca comum do continente (Bothrops jararaca), que pode ter mais de 1 metro. Mais um ótimo exemplo de especiação (geração de novas espécies) induzida por mudanças ambientais e isolamento geográfico.

“No passado, havia uma única espécie de jararaca”, explica Marques. Porém, uma vez que o nível do mar subiu e isolou Alcatrazes do resto do continente, 15 mil anos atrás, as jararacas que ficaram presas na ilha tiveram de se adaptar a esse novo ambiente insular, dando início a um forte processo de seleção natural — uma peneira evolutiva, por assim dizer. A principal mudança foi na alimentação: no lugar de pequenos roedores (que rapidamente se extinguiram na ilha), elas passaram a comer lacraias e baratas — animais de valor calórico muito inferior. “Isso fez com que as cobras de Alcatrazes ficassem menores com o passar do tempo”, conclui Marques. Mesmo em cativeiro, com comida abundante, elas não crescem mais do que meio metro. Ou seja, é uma característica que está “fixada” no genoma do animal, caracterizando-o como uma nova espécie.

Mas a diferença não ficou apenas no tamanho. O veneno da Bothrops alcatraz também se diferenciou do veneno da jararaca do continente, tornando-o especialmente interessante para estudos bioquímicos e moleculares, visando ao desenvolvimento de novos fármacos.

“Para quem não se comove com a conservação por questões puramente ambientais, tem também essa importância utilitária”, argumenta Marques; lembrando que o veneno da jararaca do continente já serviu de base para o desenvolvimento de um dos medicamentos anti-hipertensivos mais usados no mundo, o captopril. “Podemos extrapolar isso para outros grupos da ilha, como os anfíbios e as plantas, que também podem conter moléculas únicas, de interesse farmacológico.”

Não se sabe exatamente quantas jararacas existem em Alcatrazes, mas Marques estima algo em torno de 2 mil. Apesar do medo que as cobras inspiram nas pessoas, a Bothrops alcatraz é um bicho frágil, e por só existir na ilha é também considerado criticamente ameaçado de extinção. Em nossa busca pelas pererecas-de-alcatrazes — que, por sua vez, são uma variação da pererequinha-de-bromélia do continente (Scinax perpusillus) — encontramos duas delas serpenteando pelo gramado próximo ao heliponto da Marinha, no topo da ilha.

É bem possível que uma cobra-coral que existe na ilha também seja endêmica, mas os únicos dois exemplares que estavam disponíveis para estudo foram perdidos no incêndio que destruiu a coleção de répteis do Butantan, em 2010.

Isolamento geográfico
Alcatrazes esteve isolada e conectada ao continente diversas vezes ao longo dos últimos 2,5 milhões de anos; de acordo com as variações cíclicas do nível do mar

Ao todo, são conhecidas mais de 20 espécies endêmicas em Alcatrazes, incluindo répteis, anfíbios, aranhas, insetos e plantas; sem contar o que não foi descoberto ainda. Tudo isso, num espaço de apenas 170 hectares e de cobertura predominantemente rochosa. Nenhuma outra ilha do país — nem Ilhabela, nem mesmo Fernando de Noronha — chega perto disso.

Daí nasceu o apelido “Galápagos do Brasil”, em uma alusão às icônicas ilhas do Oceano Pacífico, que inspiraram Charles Darwin a conceber sua teoria da evolução. Os mecanismos evolutivos que deram origem à toda essa fauna exclusiva de Alcatrazes são os mesmos que geraram os diferentes bicos de aves e cascos de tartarugas que Darwin observou em Galápagos em 1835, três anos depois de passar pelo Brasil.

“Se ele tivesse parado em Alcatrazes, poderia ter chegado às mesmas conclusões. A jararaca teria sido um ótimo exemplo”, observa Marques.

Aves

Olhando para o céu, Alcatrazes é também o maior sítio reprodutivo de aves marinhas da costa brasileira, com uma população que gira em torno de 10 mil aves. Nesse caso, não são espécies endêmicas — pois a capacidade de voar as torna imunes ao isolamento geográfico —; mas são muitas, tanto em quantidade quanto em variedade. Mais de 100 espécies de pássaros já foram avistadas no arquipélago, e pelo menos uma dúzia está ameaçada de extinção, como o piru-piru e o trinta-réis-de-bico-vermelho.

O número total varia de acordo com o “passarinheiro” consultado, mas a ordem de grandeza é esta. A lista inclui espécies residentes e de passagem, incluindo visitantes inusitados do continente, como o beija-flor-preto; migrantes do Hemisfério Norte, como o falcão-peregrino, que utilizam Alcatrazes como ponto estratégico de descanso e alimentação; e passageiros de águas mais geladas ao sul, como os pinguins-de-magalhães, que vez ou outra vêm caçar um petisco por ali no inverno.

As florestas da ilha abrigam um boa amostra de aves da Mata Atlântica, incluindo o azulão, o curió, e o canário-da-terra. Mas ninguém causa uma impressão maior nos visitantes humanos de Alcatrazes do que suas gigantescas fragatas (Fregata magnificens), com uma envergadura que ultrapassa 2 metros e uma colônia de aproximadamente 6 mil indivíduos — a maior do Brasil. Elas nidificam principalmente na face ocidental da ilha, no sopé do Pico da Boa Vista, e passam o dia pescando, cuidando de seus ninhos e voando em círculos ao redor da ilha, formando por vezes enormes turbilhões de asas negras no céu. “Nunca vi tanta ave voando sobre a minha cabeça; é um negócio impressionante”, diz a médica veterinária Juliana Saviolli, do Instituto Argonauta, que participa de pesquisas no arquipélago há mais de 15 anos. “É muito mágico chegar lá e ver essa cena, todas as vezes.”

Na época de reprodução, os machos inflam seus papos cor de sangue como bexigas para impressionar as fêmeas, fazendo parecer que as árvores da ilha estão carregadas de grandes frutas vermelhas.

Eduardo Nicolau/Estadão

As fragatas também são chamadas às vezes de alcatrazes, mas quem emprestou seu nome mesmo ao arquipélago foram os atobás-pardos (Sula leucogaster), também conhecidos como mergulhões, pela sua incrível capacidade de mergulhar no mar como um torpedo para capturar peixes e lulas. “Alcatrazes em árabe significa ‘o mergulhador’, o que se refere ao atobá”, esclarece Campos. A Ilha de Alcatraz na Califórnia — aquela do presídio, provavelmente mais conhecida da maioria dos brasileiros do que esta — também herdou o nome de uma ave mergulhadora; naquele caso, o pelicano.

Os atobás formam a segunda maior colônia do arquipélago, com cerca de 3 mil indivíduos, e nidificam em todas as suas ilhas, incluindo a da Sapata, na qual a Marinha ainda atira de tempos em tempos. Essa é a ameaça mais óbvia, mas não é a única. Um outro inimigo em potencial, silencioso, é a contaminação da cadeia alimentar oceânica por poluentes orgânicos persistentes, oriundos de pesticidas e atividades industriais (como PCB e DDT); além da poluição do ambiente marinhos por plásticos, que os atobás acabam levando para os seus ninhos.

Sangue de atobá
A pesquisadora Larissa Cunha, da UFRJ, coleta amostras de sangue e ovos de atobás em Alcatrazes, para verificar se as aves estão sendo contaminadas por poluentes orgânicos persistentes, presentes no oceano.

Durante a nossa expedição, acompanhamos o trabalho da pesquisadora Larissa Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que monitora a presença dessas substâncias tóxicas em aves marinhas ao longo de toda a costa brasileira. Em 2015 ela já havia coletado amostra de sangue e ovos de fragatas no arquipélago. Agora, foi a vez dos atobás.

“Esses poluentes chegam ao oceano e vão se deslocando ao longo da cadeia alimentar”, explica Larissa. Primeiro são absorvidos pelo plâncton, depois pelos peixes menores (que se alimentam do plâncton), e pelos peixes maiores, até os chamados “predadores de topo de cadeia” — dentre os quais, os atobás e os seres humanos. As amostras de sangue e os ovos serão analisadas em laboratório para medir a presença dessas substâncias no organismo das aves, e avaliar se há algum impacto disso na capacidade de reprodução e sobrevivência delas.