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Clayton Souza Fotos
Reportagem do Estado e dados da Saúde mostram que número de homicídios em São Paulo é maior do que o divulgado pelo governo
O número de assassinatos em São Paulo é maior do que o divulgado pela Secretaria da Segurança Pública. Levantamento feito pelo Estado em boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil como “morte suspeita” no primeiro semestre de 2015 na capital paulista achou 21 casos que ficaram de fora das estatísticas criminais. Eles foram depois reclassificados, na maioria, como “lesão corporal seguida de morte”, apesar de terem um histórico de homicídio. Isso aconteceu mesmo sem a polícia saber se a intenção do autor do crime era ferir ou matar a vítima. Assim, os casos continuaram sem constar das estatísticas desse crime.
Se os 21 casos tivessem sido incluídos nas estatísticas, o primeiro semestre de 2015 teria fechado com 3,6% mais vítimas de assassinato na cidade, ou 590 pessoas mortas em vez das 569 divulgadas pela secretaria. O número significaria uma variação positiva de 0,3% no total de vítimas de homicídios em relação ao mesmo período de 2014, que teve 588 mortes oficiais. Pela estatística do governo, no entanto, houve queda de 3,2% nas vítimas de homicídios em comparação com 2014. Em média, pelo menos 3,5 casos de mortes violentas foram registrados como “lesão corporal” ou “morte suspeita” por mês pela polícia.
Depois de obter os dados sobre os casos por meio de quatro pedidos feitos com base na Lei de Acesso à Informação, a reportagem procurou policiais civis, testemunhas e familiares das vítimas, que relataram que os crimes foram cometidos por traficantes de drogas, desafetos pessoais e até por assaltantes. Até agora, ninguém foi preso.
A relação de ocorrências traz casos de pessoas mortas a tiros, facadas e pauladas. As vítimas eram, na maioria, trabalhadores braçais, moradores de rua, dependentes químicos e estrangeiros. Há uma distribuição aleatória dos 21 casos, mas a maioria aconteceu na periferia.
O secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, sustenta que “as estatísticas da secretaria são 99,9% confiáveis” (Leia entrevista no capítulo 5). Com base no levantamento da reportagem, o secretário informou que os BOs foram reclassificados, durante as investigações, para outros delitos. “Seis como homicídios, que logo foram colocados na estatística.”
Desde janeiro de 2015, o site da secretaria registrou apenas uma vez, em março daquele ano, uma atualização de dados após sua publicação mensal, a fim de incluir um caso de homicídio. Moraes entregou ainda uma planilha em que informava que 11 “mortes suspeitas” haviam sido reclassificadas como “lesão corporal seguida de morte”.
Planilha. A reportagem ouviu os desembargadores Amaro José Thomé Filho e Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, a promotora de Justiça Mildred de Assis Gonzales, que trabalha há 20 anos no Tribunal do Júri, a professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Helena Regina Lobo da Costa e os delegados Marcos Carneiro Lima e Nelson Silveira Guimarães, ex-diretores da Divisão de Homicídios. Todos afirmaram que, sem conhecer o autor do crime e saber qual era sua vontade – ferir ou matar a vítima –, a polícia não podia registrar os casos como lesão corporal seguida de morte.
“Se você não identifica o autor, mas ouve uma testemunha que esclarece que ele não tinha motivação de matar, pode ser que mude o caso. Mas eu não sei como pode transformar um caso de homicídio em lesão corporal sem identificar o autor”, disse Silveira Guimarães.
A Justiça já discordou da classificação de “lesão corporal” ou “morte suspeita” dada pela polícia em cinco desses casos e em um de “suicídio” e enviou os inquéritos à Varas do Júri, que cuidam de assassinatos. “Há uma resolução de 1998, do Tribunal de Justiça, de que, na dúvida, os casos devem ir para a Vara do Júri”, disse Mildred. Após ser alertada pela reportagem, a secretaria confirmou ontem a informação – reafirmou, no entanto que cinco casos continuavam em varas que analisam lesões.
Ao classificar os homicídios como lesão, a polícia deixa de encaminhar os casos ao setor especializado, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) – ele foi o destino de só 4 dos 21 casos. Além de lesão, a polícia registrou casos como o de um corpo carbonizado como “óbito”, as mortes de supostos ladrões se tornaram “roubo”, um linchamento virou “overdose” e um espancamento, “atropelamento”. Até ontem, nenhum dado havia sido retificado na estatística oficial.
Caminho. A Secretaria da Segurança informou ontem que determinou à Corregedoria da Polícia Civil que apure por que os inquéritos de três casos descobertos pelo Estado foram abertos só em 25 de fevereiro, dia seguinte ao que a pasta foi procurada para saber o que a polícia havia feito nos crimes descobertos pela reportagem. Um quarto inquérito – classificado como roubo – foi instaurado em 29 de fevereiro, dia em que o secretário Alexandre de Moraes falou com a reportagem.
O levantamento do Estado teve como ponto de partida a análise de 3.766 casos de “morte suspeita” registrados no primeiro semestre de 2015 na capital, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. “Morte suspeita” é como a polícia registra óbitos em que há dúvidas sobre o que aconteceu – suicídio, acidente, queda ou mal súbito.
O Departamento de Administração e Planejamento da Polícia Civil (DAP) informou, também por meio da Lei de Acesso à Informação, que o número oficial de “mortes suspeitas” cresceu na cidade de São Paulo em 2015, em comparação com 2014. O aumento foi de 7,85% no período, passando de 4.035 casos para 4.352. No Estado, o salto foi maior: de 10.961 para 12.347 – aumento de 12,6%. Em paralelo, o governo Geraldo Alckmin (PSDB) divulgou reduções de homicídios em proporções parecidas: de 5,3% na capital e de 11,5% no Estado.
Os delegados Marcos Carneiro Lima e Nelson Silveira Guimarães, que foram da cúpula da Polícia Civil nas gestões de Mario Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, criticaram a forma como “casos de homicídios” se transformaram em BOs de “morte suspeita” e de “lesão corporal seguida de morte”. E apontaram falhas no trabalho policial. “Morte suspeita é uma ignorância. É quase manipulado”, afirmou Guimarães. Para ele, falta fiscalização por parte dos superiores do trabalho dos delegados plantonistas – responsáveis por fazer os boletins.
Especialistas, como o criminalista Alberto Zacharias Toron e o procurador José Francisco Cembranelli, afirmaram que, na dúvida, a polícia devia abrir o inquérito para investigar o possível homicídio. Além dos 21 casos, a reportagem encontrou outros três em que o governo informou ter feito a reclassificação da “morte suspeita” para “homicídio”. Esses registros, no entanto, não constam de três planilhas fornecidas pela secretaria por meio da Lei de Acesso à Informação sobre os casos que entraram nas estatísticas oficiais.
Sigilo. Para confirmar os dados de homicídio da capital, a reportagem teve acesso à íntegra de boletins de ocorrência de “morte suspeita”, com informações das vítimas, de seus parentes e de testemunhas. O acesso a esse tipo de informação foi impedido, no mês passado, por determinação do secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes. Ele alega que o intuito da medida é preservar a privacidade dos cidadãos.
Diante da polêmica, a medida terminou por ser revogada por decreto do governador Alckmin, que, no entanto, manteve restrito o acesso a dados pessoais, tendo como base trecho que protege dados pessoais na Lei de Acesso à Informação, de 2012. "A restrição a documentos de interesse público afeta o trabalho de jornalistas, pesquisadores e outros atores engajados no controle social; mas, mais do que isso: a restrição que o governo de São Paulo vem fazendo de maneira sistemática a dados sobre Segurança Pública é uma afronta à Lei de Acesso à Informação, cuja principal prerrogativa é a de que ‘a publicidade é a regra, o sigilo é a exceção’", disse Juliana Sakai, da Transparência Brasil.
Mortes violentas no Estado de São Paulo
A diferença entre as mortes dentro e fora das estatísticas no Estado pode ser ainda maior do que indica a análise dos boletins de ocorrência feita pela reportagem. É o que apontam os dados mais recentes divulgados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), vinculado ao Ministério da Saúde.
Ele conta os casos de homicídios não a partir das delegacias, mas com base nas declarações de óbito de hospitais, que trazem a causa mortis. Os números preliminares de 2014 do Datasus, recém-publicados, mostram oscilação para cima nas mortes por agressão naquele ano, enquanto a Secretaria da Segurança Pública (SSP) divulga redução dos assassinatos.
A secretaria informou, em nota de 17 de fevereiro, que “os indicadores de criminalidade são um retrato mensal de casos registrados e, por isso, não podem incluir um homicídio de uma vítima que venha a falecer meses depois, ao contrário dos dados do Datasus, que têm fechamento anual”. “Essa metodologia é mantida pela SSP para permitir a comparação histórica.”
Essa foi a primeira vez em 13 anos que os dois índices têm oscilação diferente. O Datasus sempre registrou mais homicídios do que a secretaria, mas com uma correlação estatística quase perfeita. Ou seja, sempre que um índice sobe ou cai, o outro se move no mesmo sentido. Em 2014, em vez de queda de 4% no total de casos somados de homicídios dolosos e de latrocínios, como afirma o governo estadual, o Datasus mostra variação positiva de 0,4%, ou estabilidade, nos casos de morte por agressão no Estado.
A reportagem ouviu alguns dos maiores especialistas em Segurança do País – os sociólogos Claudio Beato e Julio Jacobo Waiselfisz, o cientista político Leandro Piquet e o diretor do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques. Todos lembram que a queda dos homicídios no Estado na última década é incontestável. São Paulo saiu da casa das 15 mil mortes por ano para 5 mil. A causa disso ainda é debatida. Mas eles apontam a necessidade de transparência dos dados e de mudanças nos métodos de divulgação dos indicadores da violência nos Estados.
Causa. Mesmo os números do Datasus podem ter falhas, segundo os especialistas, o que indicaria ainda mais assassinatos não computados. É grande, em São Paulo, o registro de mortes “cuja intenção é indeterminada” – que podem ser homicídios, suicídios ou acidentes.
Desde 2000, o Estado com mais médicos do País não consegue ficar abaixo da média nacional na proporção entre as mortes de intenção indeterminada e o total de mortes violentas. No País, a média é de que 7 em cada 100 mortes violentas não tenham a intenção determinada pelo médico. Em São Paulo, são 9. Os dados preliminares de 2014 mostram 2.339 ocorrências assim no Estado.
Jacobo e Piquet, por exemplo, afirmam que a prática entre os pesquisadores mostra que até 70% dos registros de “morte indeterminada” devem ser reclassificados como “agressão”, mortes causadas por outras pessoas. Assim, para se obter o número mais próximo do real de homicídios no Estado seria necessário somar aos 5,9 mil casos do Datasus mais 1,6 mil casos de mortes violentas cuja intenção foi catalogada como indeterminada pelos médicos. O total dos assassinatos chegaria, então, a 7,5 mil no Estado.
Um ‘Vietnã’ de assassinados fora das estatísticas em SP
José Roberto de Toledo Do Estadão Dados
As estatísticas sobre homicídios da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo têm uma subnotificação histórica de 23% quando comparadas aos registros de mortes por agressão do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), ligado ao SUS. Em média, nos últimos 15 anos a polícia paulista registra e divulga 2 mil assassinados a menos por ano do que o sistema de saúde.
Se somarmos todas as mortes por agressão que deixaram de ser computadas pelas estatísticas policiais desde 2000, constata-se que pelo menos 30.456 cadáveres evadiram-se das planilhas da Segurança. Como morto não anda, a explicação pela evasão de tantos casos cabe aos vivos que deveriam investigá-los.
Além de não dar satisfação a milhares de dramas vividos pelos amigos e familiares das vítimas, essa prática sistemática torna quase inúteis as estatísticas policiais. Pelo menos para quem quiser fazer um diagnóstico realista da violência em São Paulo. Enquanto policiais ganham bônus pela redução das mortes violentas em seu sistema, a maioria dos pesquisadores recorre aos dados da Saúde para entender o que ocorre de fato.
Não que o SIM seja perfeito. Também há subnotificação de mortes matadas nas declarações de óbito. Entre 2000 e 2014, 48 mil casos foram registrados como “eventos cuja intenção é indeterminada” no Estado de São Paulo. Em resumo, o responsável por declarar o óbito não soube informar se aquele corpo baleado ou afogado foi vítima de assassinato, suicídio ou acidente.
Estima-se que 70% dos corpos jogados nessa vala-comum da estatística do SIM tenham sido assassinados. Se aplicarmos essa taxa aos últimas 15 anos de “intenção indeterminada” aparecem mais 33 mil assassinados que se evadiram dos registros oficiais paulistas. Somados aos outros 30 mil que já haviam escapado dos boletins policiais, resultam 66 mil homicídios não-computados. É 10% mais do que os EUA tiveram de mortos na Guerra do Vietnã.