Bulevar da Universidade, 301, Galveston, Texas, é onde vive o primeiro vírus zika coletado por cientistas, em 1947. Da floresta de Uganda que deu origem a seu nome até o endereço atual, ele passou 27 anos em Nova York e outros 21 na Universidade de Yale, em Connecticut. Na maior parte de sua existência in vitro, era visto como um organismo exótico desprovido de interesse científico. Tudo mudou no fim de 2015, quando os primeiros casos de microcefalia começaram a ser relatados no Brasil.
O potencial vínculo entre a infecção e a má-formação de embriões desencadeou uma febre global de pesquisas na academia e na indústria farmacêutica, que tentam entender a ação do zika e desenvolver medicamentos e vacinas para combatê-lo. “Misterioso” e “obscuro” são adjetivos comuns usados por especialistas para se referir ao vírus, que ganhou atenção mundial a partir do Brasil.
O primeiro exemplar do zika integra uma coleção de cerca de 7.000 cepas de mais de 600 diferentes vírus mantida pela Faculdade de Medicina da Universidade do Texas (UTMB, na sigla em inglês). A “biblioteca viral” é uma das maiores, mais antigas e mais diversificadas do mundo e muitos pesquisadores recorrem a ela em busca de material para seus estudos. Ao longo dos anos, a cepa de zika coletada em Uganda ganhou a companhia de outras e hoje a coleção da UTMB tem 12 diferentes tipos do vírus suspeito de provocar microcefalia e a síndrome de Guillain-Barré.
“Ninguém nunca se interessou por zika. Por isso, ninguém tinha o vírus. Agora, todo mundo quer”, disse ao Estado Robert Tesh, que estuda doenças infecciosas desde os anos 60 e comanda o Centro Mundial de Referência para Vírus Emergentes da UTMB. O interesse aumentou ainda mais depois que o presidente Barack Obama anunciou a liberação de US$ 1,8 bilhão para o combate de zika, US$ 200 milhões dos quais dedicados à pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e vacina.
Antes dos casos de má-formação no Brasil, a UTMB quase não recebia pedidos de cepas de zika. Agora, há uma média de 25 solicitações por semana, observou Tesh, que visita o Brasil duas por ano como parte de seu trabalho. Além de dar matéria-prima a estudos de vacinas e medicamentos, a “biblioteca viral” permite que cepas de zika sejam comparadas, para definição de semelhanças e diferenças entre suas manifestações em diferentes regiões, disse o brasileiro Marcio Nunes, que é chefe do Laboratório de Genômica do Instituto Evandro Chagas e pesquisador visitante da UTMB.
No dia 11 de fevereiro, a universidade fechou contrato com o Ministério da Saúde do Brasil para o desenvolvimento de uma vacina contra o zika, uma das inúmeras iniciativas do tipo desencadeadas pelo atual surto. No próximo mês, uma dupla de pesquisadores brasileiros chegará a Galveston para participar do projeto. A princípio, seu prazo de permanência no Texas será de dois anos, o que revela a complexidade da tarefa à sua frente.
O desafio mais imediato é criar um “modelo animal” para entender melhor a ação do vírus e testar a vacina. Os cientistas precisam encontrar um animal no qual o zika atue da maneira mais próxima possível à observada em humanos. “Ainda não temos isso”, afirmou Tesh. “Os animais são infectados, produzem anticorpos, mas não apresentam sintomas da doença.”
Além de auxiliar no desenvolvimento da vacina, o “modelo animal” permitirá que os cientistas respondam outras perguntas, entre as quais o impacto de infecções anteriores por dengue sobre o zika e o desenvolvimento de microcefalia, disse Scott Weaver, diretor do Instituto de Infecções Humanas e Imunidade da UTMB.
Essa é apenas uma da longa lista de perguntas sobre a doença que continuam sem respostas. “Nós sabemos muito pouco. Há muitas lacunas em nossa habilidade de prever riscos e entender a ciência básica do vírus”, observou Weaver, um dos primeiros cientistas a escrever sobre a possibilidade de uma epidemia de zika, na década passada.
Inicialmente, o organismo intrigou Weaver pelo fato de não ter trilhado o mesmo caminho de outros vírus semelhantes, como dengue e chikungunya, que saíram de florestas africanas e se espalharam em áreas urbanas. Nos primeiros 60 anos depois de sua descoberta, o zika infectou apenas 14 pessoas em todo o mundo. O cenário mudou em 2007, quando um surto atingiu a maior parte dos 11,2 mil habitantes da ilha de Yap, no Pacífico. A partir dali, ele viajou na direção das Américas até chegar ao Brasil, em 2014. Com Yap, o interesse de Weaver pelo zika aumentou.
Hoje, ele e Tesh estão entre dezenas de cientistas da UTMB que estudam formas de conter a doença. Além da vacina, eles trabalham no desenvolvimento de testes mais eficazes, de medicamentos e em estudos sobre o impacto da infecção em embriões.
“O melhor que podemos fazer no momento é extrapolar o conhecimento que temos de outros flavivírus e testar alguns dos modelos usados para dengue, febre do oeste do Nilo, encefalite japonesa e febre amarela. É onde estamos começando.”
Perguntas e Respostas
O que é?
Microcefalia é uma condição rara em que o bebê nasce com uma cabeça pequena ou a cabeça para de crescer após o nascimento. Se essa má-formação se combinar com o baixo crescimento do cérebro, a criança pode ter o desenvolvimento motor e também intelectual prejudicados.
Como é feito o diagnóstico?
A maneira mais confiável para avaliar se um bebê tem microcefalia é medir o perímetro cefálico 24 horas após o nascimento e comparar com os padrões de crescimento da OMS - hoje são considerados suspeitos casos de cérebros menores ou iguais a 32 centímetros. A confirmação depende de exame de tomografia. É ele que vai mostrar se há lesão no cérebro e calcificações. Vale ressaltar que há crianças que nascem com diâmetro de cabeça abaixo de 32 centímetros e têm o desenvolvimento normal.
Está confirmada a relação entre zika e microcefalia?
Estudos publicados nos últimos dias identificaram a presença do vírus no cérebro de bebês com microcefalia que morreram após nascer e em fetos abortados. Também foi localizado o vírus no líquido amniótico de gestantes e num grupo de 12 bebês com microcefalia foi detectada a presença de anticorpos para o zika no líquido cefalorraquiano, encontrado no crânio e na medula espinhal. Estudos constataram ainda que o vírus é capaz de atravessar a placenta. Todos esses indicadores apontam correlação entre o vírus e o problema e, para alguns pesquisadores, não existe mais dúvida de que o zika está causando isso. Mas outros cientistas pedem cautela e mais estudos que mostrem exatamente como seria a ação do zika no desenvolvimento do cérebro.
Que tipo de estudo é preciso fazer para ter certeza?
É preciso confirmar como e por que o vírus age do jeito que se imagina que ele age. A única forma cientificamente válida de testar essa relação é reproduzindo a situação em laboratório, com a inoculação do vírus zika no cérebro de animais e em culturas de células neuronais humanas para ver se ele de fato interfere no seu desenvolvimento. Equipes do Rio e de São Paulo estão fazendo esses estudos. Outras pesquisas vão acompanhar grávidas. Uma delas, da USP de Ribeirão Preto, vai monitorar 3.000 mulheres. Elas serão submetidas, mensalmente – até o parto – a um exame de sangue que detecta anticorpos do vírus tanto na mãe quanto no bebê, para mostrar se e quando o feto é infectado durante a gestação.
Pode estar ocorrendo uma supernotificação de casos?
Antes de os primeiros casos em Pernambuco começaram a aparecer no final de agosto do ano passado, levantando a suspeita entre zika e microcefalia, não havia notificação compulsória no Brasil da má-formação cerebral. Em 2014, por exemplo, foram registrados somente 147 casos. Diante do novo risco, todo bebê nascido com perímetro cefálico menor ou igual a 32 centímetros começou a ser notificado. Em poucos meses, por causa disso, o número saltou para a casa dos milhares. O Ministério da Saúde informou que até a última sexta-feira houve 4.783 notificações. Muitos desses bebês, porém, podem ser saudáveis (sem ter lesões ou calcificações no cérebro). Tanto que 765 casos foram descartados como não sendo microcefalia. 3.852 casos estão sob investigação e 462 foram confirmados. Entre estes casos, em 41 houve relação com zika. Ou seja, nesses bebês foi detectado o vírus, mas não foram descartadas outras possíveis causas. Essas crianças não foram testadas, por exemplo, para outros vírus relacionados a microcefalia, como rubéola. Os outros 421 ainda estão sendo testados para o vírus.
Mesmo se essa relação for confirmada, o que mais é preciso saber sobre o risco aos bebês?
Ainda não se sabe em qual momento da gravidez existe mais perigo. Suspeita-se que seja no primeiro trimestre. Tampouco se sabe por quanto tempo depois que uma mulher foi contaminada ela ainda pode passar o vírus para feto. Especialistas afirmam, porém, que as chances são pequenas, já que o feto só poderia ser infectado durante a fase ativa da doença. Outra dúvida é se uma pessoa contaminada uma vez pode se contaminar de novo. Por enquanto acredita-se que não, que a pessoa uma vez contaminada fica imune. Mas como a circulação do vírus é nova, não há certeza.
Se a microcefalia for constatada ainda no pré-natal, é possível fazer alguma intervenção para barrar ou reverter a má-formação? Em que medida é útil fazer mais ultrassons?
Não há intervenção possível. Os exames de imagem apenas confirmarão as suspeitas da má-formação, pois o diagnóstico final é dado após o nascimento. O que a gestante deve fazer é manter toda a rotina do pré-natal com especial atenção, já que a gestação passará a ser classificada como de alto risco, exigindo acompanhamento de referência.
Depois que o bebê nasce com microcefalia, o que é possível fazer para melhorar o desenvolvimento da criança?
Especialistas afirmam que um tratamento multidisciplinar deve ser iniciado o mais rápido possível, assim que o bebê tiver alta da maternidade. Ele prevê acompanhamento de fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, médicos e assistentes sociais. Se o incentivo começar cedo, as crianças podem andar, falar, comer, se vestir, estudar, enfim, levar uma vida praticamente normal. Mas tudo depende do grau da microcefalia. Nos casos mais severos, como os relacionados ao vírus zika, tanto o desenvolvimento motor, como intelectual, podem ser prejudicados de forma definitiva.
Uma mulher que já teve zika pode vir a ter filhos com microcefalia no futuro?
Não se sabe ainda, mas especialistas afirmam que as chances são pequenas, já que o feto só poderia ser infectado durante a fase ativa da doença. Desse modo, a mulher não 'armazenaria' o vírus para transmiti-lo durante uma futura gestação.