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Comissão da Verdade

O relatório final

AS CONCLUSÕES

AS VÍTIMAS

A GUERRILHA

REPRESSÃO INTERNACIONAL

OS BASTIDORES

Agrande expectativa de familiares de mortos e desaparecidos políticos era de que a Comissão da Verdade pudesse ter acesso a informações inéditas dos arquivos militares e, com isso, revelasse o paradeiro dos restos mortais de opositores do regime ainda não localizados, quase 30 anos após a redemocratização do Brasil. Sem contar com a colaboração que esperava das Forças Armadas, o colegiado pouco avançou nesse quesito.

 

O documento contém apresentação de 434 mortos e desaparecidos políticos. O texto traz novos detalhes sobre casos notórios, mas deixa uma certa frustração entre os militantes de direitos humanos e os parentes de vítimas da repressão. Com isso, os relatos de sobreviventes da tortura promovida por agentes de Estado têm mais relevância por retratar os horrores dos porões da ditadura – e com isso evitar que se repitam, uma tarefa que o Brasil ainda não conseguiu cumprir – do que em promover às famílias de vítimas o direito de enterrarem seus mortos.

 

 

Trechos

 

 

 

ALEXANDRA MARTINS / São Paulo

O trabalho da Comissão da Verdade revelou dados até então inéditos acerca do paradeiro do ex-deputado Rubens Paiva, morto em janeiro de 1971. Ao contrário da tese do Exército, de que ele teria fugido após o veículo do DOI-Codi que o transportava ter sido interceptado por estranhos, Rubens Paiva foi morto nas dependência do órgão de repressão, no Rio de Janeiro, segundo depoimento de testemunhas oculares do Batalhão da Polícia do Exército. Os depoimentos do coronel reformado Paulo Malhães também confirmaram a morte sob tortura do ex-deputado.

 

Deputado Rubens Paiva
ARQUIVO PESSOAL

 

O oficial reformado declarou à Comissão Nacional da Verdade, em 24 de março de 2014, que sua missão era a de ocultar o cadáver da vítima, não chegando a executá-la porque havia sido "incumbido de outra tarefa".  "Segundo o ex-coronel, esses corpos (desaparecidos) jamais serão encontrados, como afirmou em relação a Rubens Paiva, ao abordar a operação que desenterrou e sumiu com o corpo do ex-deputado: “Ninguém nunca mais acha”. Com o escopo de confundir, Malhães manteve relato dúbio e contraditório a respeito do destino final dos corpos de militantes desaparecidos pelo Exército, isto é, se eram jogados em algum rio ou no mar", registra o relatório.

 

Em outro caso de repercussão ainda sob o regime autoritário, a Comissão da Verdade reuniu novos detalhes sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, em São Paulo. Duas falhas são apontadas no material contra conclusões oficiais. Uma delas é relativa a uma mensagem supostamente deixada por Herzog na

cadeia, em que reconhece ser membro do PCB. “A declaração de Herzog guardava característica de ter sido ditada ou copiada de algum modelo”, em especial porque “as alterações de calibre e espaçamento interliterais e intervocabulários, bem como variações de pressão e de tonalidades do traçado, configuram falta de fluidez própria das escritas espontâneas”, conclui a comissão. A outra é referente à quantidade de perfurações no pescoço da vítima a partir de análise de fotografias: “São visíveis pelo menos dois sulcos, um horizontal, contínuo e com reação vital, e outro oblíquo ascendente no lado esquerdo do pescoço”.

Já o caso da morte a morte de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, primeiro caso esclarecido de desparecimento forçado no Brasil, recebeu contribuição valiosa da mulher do catarinense, Suzana Keniger Lisbôa, para reforçar contradições da versão oficial de que o ex-militante suicidou-se com arma de fogo. “Apesar de ter encontrado os restos mortais do marido, ela se recusa a retirá-lo da lista de desaparecidos políticos”, aponta o documento. Suzana luta para alterar a causa da morte na certidão de óbito de Luiz Eurico. De acordo com o inquérito policial militar, ele teria atirado contra a própria cabeça em um quarto de pensão de São Paulo. O suicídio é a segunda causa falsa de morte mais registrada em documentos até hoje existentes, perfazendo 17% dos casos, de torturados durante a ditadura. Em primeiro, vêm os confrontos com arma de fogo, com 32%.

 

O documento da Comissão da Verdade dá bastante espaço para o depoimento de sobreviventes da tortura, que fazem relatos comoventes sobre o horror da tortura e dos porões da repressão. Cristina Moraes Almeida, presa pela primeira vez aos 19 anos, em 1969, afirma que não há tratamento psicológico que seja capaz de apagar as marcas feitas pelos “assassinos em série”. Ela sofreu mutilações no tórax, nos seios e teve uma perna “estraçalhada” por uma furadeira.

 

O piloto que transportou o ex-presidente João Goulart para o exílio, no Uruguai, também lembra o que sofreu por assumir posição contrária ao golpe de 1964. Isolado e sem poder se comunicar com familiares, Hernani Fittipaldi ficou preso durante seis meses em um compartimento de submarino em alto mar. “Eu falava: 'Meu Deus do céu, estou no fundo do mar, agora, onde é esse mar?'”.

 

Crianças e menores de idade também foram expostos a situações de barbárie pelos militares. A filha da ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Política para as Mulheres, foi ameaçada com choque elétricos com 1 ano e 10 meses de idade, segundo o relatório. “Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando e ameaçando dar choque nela. O torturador era o Mangabeira”, lembra Eleonora, citando o codinome de um escrivão de polícia chamado Gaeta.

 

Etienne Romeu (à esquerda), única sobrevivente da Casa da Morte, e a irmã, Celina Romeu, durante audiência da CNV
MARCOS DE PAULA / ESTADÃO – 25.03.2014

 

A história da chamada Casa da Morte, em Petrópolis, só foi possível de ser revelada graças aos depoimentos de sua única sobrevivente, a mineira de Pouso Alegre Inês Etienne Romeu. O local funcionou como centro clandestino para prática de tortura, execução e desaparecimento forçado de opositores ao regime repressivo. Líder estudantil e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Inês Etienne foi vítima de violações como estupro, espancamento e tortura com choque elétrico durante três meses de prisão. Seus relatos colaboraram para o entedimento de como o local funcionava, bem como para a elucidação de casos de outros militantes desaparecidos e mortos que tiveram passagem pela Casa da Morte.

Coronel reformado Paulo Malhães, que confirmou a morte sob tortura do ex-deputado Rubens Paiva