Se Deus existisse – os crentes que me perdoem a eventual blasfêmia – não teria dado
tanto talento, e olhos verdes, a um só Francisco
RUI GUERRA
É CINEASTA E DRAMATURGO E ADAPTOU O LIVRO ‘ESTORVO’ PARA O CINEMA
Algumas palavras para alguém que anda por aí há já algum tempo
... e eu andei de lá pra cá, de cá pra lá, pensei, hesitei, de novo de lá pra cá, parei onde tinha saído, me decidi.
Tudo bem, não queria, mas topo.
Difícil.
Vou escrever umas linhas sobre o cara, a amizade enxotada para longe, fingindo que eu sou outro, a cabeça desgarrada, o pensamento nos dedos. Eles que corram pelas teclas, ao deus-dará. Veremos o bicho que dá.
Certamente, nada de novo na frente ocidental.
Quem me conhece de perto sabe que sou obcecado pelo tempo. Talvez seja um paradoxo, mas desprezo a pretensão das datas fixas.
Cores não se discutem.
As cerimônias que acompanham esses dias marcados no calendário, um pé em falso e pronto: lá estamos nós no espelho, o rosto enraivecido ou lambuzado de pieguice. No entanto, não desdenho a importância dos rituais e gosto de sua arquitetura, desde que eu não esteja emocionalmente envolvido.
Meu lado voyeur, com uma possível dosagem de cinismo.
Agora, aqui, uma pedra no meu caminho: mais que uma pedra, um imenso pedregulho. Hoje – um hoje que vai acontecer daqui a alguns dias – erguem um monumento de 70 anos. Merecido, concordo.
Daí a minha confusão.
O cara a ser homenageado – li nas folhas – se mandou para Paris.
Nada de inabitual na sua vida, mas desta vez não me venham dizer que a coincidência foi um acaso. E a timidez não explica tudo. A data, redonda, implica ele ser obrigado a olhar para trás, rever a vida, olhar o futuro que míngua a cada hora, olhar para si mesmo, num momento em que o que mais se quer é já estar no cotidiano do dia seguinte.
Não é tudo – mas tem disso.
Seja como for, entre foguetes e fantasmas, é uma data que dói.
E vêm outros, de boa-fé, o sorriso rasgando o rosto, gravar, eufóricos, prematuros epitáfios. Entre eles, eu, desequilibrado, a contrapé, com banalidades e despropositadas reflexões, desrespeitando o momento, grave.
Me perdoa, amigo.
Daí o meu incômodo.
Falar de admiração num momento de sua inevitável solidão. E não fujo da rima inoportuna, neste atabalhoado texto – eu, que a odeio na prosa – logo ao escrever sobre alguém que a usa com uma irritante precisão, que apelaria de cirúrgica, se ela não brotasse nas suas canções, incontornável, a ampliar o significado cru da palavra certa.
Palavras rascantes, por vezes fora de moda, de rimas esdrúxulas, as rugas apagadas; palavras dessuetas, de rimas inóspitas, a pretensão espanada; palavras do dia a dia de poetas dos becos, de rimas povão – e dá-lhe ão nisso – sabor feijão com arroz. Todas, exatas, se divertindo ou gemendo, num cacarejo de aliterações e significados, trazendo suas alegrias e dores numa melodia, arranhada no violão, com o ferro inequívoco do seu criador.
E eis o menestrel, sem adjetivos.
Cara, admiro essa paixão pela palavra e a mão forjada para escrever esses garranchos e arrancar as notas limites de um pinho vagabundo – que se entrechocam, lúdicos, e que quando um se dá conta, a canção já te tomou pelo ventre, irremediável companheira para o resto da vida; cara, admiro essa mão, que na prosa silenciosa do romance ou na vibração do texto falado, em retas sinuosidades encontra o sentido agudo da palavra. Saber de quem caminha por essas décadas, os olhos atentos, cravando os dentes longos em tudo o que pulsa.
Cara, e talvez mais que tudo: admiro esse destemor de Geraldo Sem-Pavor que tens da vida, desde jovem – e sei do que falo – depois homem feito, agora já não tão jovem para quem acredita em números, sempre inteiro no sempre do cotidiano, corpo e alma nessa coisa de ser brasileiro e não fugir de o ser. Mergulhando cada hora mais fundo nas tuas assumidas convicções, sem alarde e sem estandarte, sem dúvidas hamletianas, estorvos e leite derramado na jornada.
Admiro, admiro e admiro.
Só não me venham dizer que esse talento é inato, dádiva divina.
Assim também eu! – dirão alguns detratores. Mentem, com quantos dentes têm na boca.
É ignorar o trabalho constante, teimoso, de quem é e foi capaz de se construir dolorosamente no seu ofício e na dura tarefa de ser do seu tempo.
Deixem os cães latir ao passar da caravana.
Se Deus existisse – os crentes que me perdoem a eventual blasfêmia – não teria dado tanto talento, e olhos verdes, a um só Francisco.
No outro prato da balança – 0 santo é de barro –, à guisa de consolação, torço para que não faças, no Maracanã, o gol de teus sonhos.
Termino.
Se não acordares de humor afiado, quando leres esta colcha de retalhos, sei que estraguei o teu dia.
Pelo aniversário, por seres o ser que és, te deixo de presente, na soleira da porta, o que de melhor te posso dar da minha eterna amizade: a minha inveja.
Na condução narrativa, os 4
primeiros romances de
Chico são superiores a
os títulos
iniciais de Machado de Assis
JOÃO CÉZAR CASTRO E ROCHAPROFESSOR DE LITERATURA COMPARA DA UERJ
Como caracterizar a literatura de Chico Buarque em 3.500 caracteres? Arrisco uma analogia: o autor de Estorvo encontra-se em situação similar à de Machado de Assis em 1878.
Explico: os quatro primeiros títulos do autor de Dom Casmurro continham a promessa de um grande romancista; promessa apenas realizada com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ora, lidos isoladamente, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia valem menos do que pesa o nome de Machado.
Vejamos se a analogia presta.
Começo pelo avesso: no tocante à fatura e à segurança na condução narrativa, os quatro primeiros romances de Chico Buarque são superiores aos títulos iniciais de Machado – e dizê-lo não é pouco. Contudo, o leitor de Benjamin ainda espera um texto de Chico Buarque que realmente seja algo novo e inesperado em sua trajetória.
Explico mais uma vez.
Estorvo e Benjamin são romances aparentados.
Budapeste e Leite Derramado também são textos da mesma família.
Na primeira dupla, destaca-se um narrador que é sobretudo uma forma de olhar. Em Estorvo, destaca-se um olho (deliberadamente não escrevo narrador ou voz) em primeira pessoa que vê o mundo através do constrangimento da metáfora inicial do olho mágico. O verbo que expressa o gesto é revelador: “Vou regulando a vista” – um modo de enquadramento, portanto. Já em Benjamin trata-se de um olho em terceira pessoa. Em tese, o horizonte de observação é ampliado, porém a atmosfera do texto permanece, se não a mesma, muito similar. Por isso, o verbo que define a perspectiva da narração evoca idêntico ato: “Benjamin enquadra Ariela contra o oceano” – um modo de regulação, por assim dizer.
No segundo par, sublinham-se a desorientação e a decadência ocasionadas por um excesso. De um lado, o talento literário sem projeto próprio de José Costa; de outro, a fortuna perdida da família de Eulálio d’Assumpção. Em ambos os casos, o leitor convive com sujeitos à deriva, cuja fala em primeira pessoa paradoxalmente se transforma no sintoma de um desencontro marcado do eu com sua (precária) subjetividade.
A tal ponto o projeto de um livro se desdobra no outro que o fecho de Budapeste parece anunciar o título de Leite Derramado: “E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa”.
Volto à analogia.
Os quatro primeiros romances de Machado lidam perigosamente com a mediocridade. Não é o caso de Chico Buarque – e dizê-lo é muito. No entanto, em cada um desses romances, Machado efetivamente buscou realizar algo distinto, seja no desenvolvimento do tema, seja no tratamento formal. Ele era o pesquisador de uma escrita que ainda lhe escapava, mas, aqui, a busca vale mais do que a forma prematura.
Eis o atual desafio de Chico Buarque. Em outras palavras, como reinventar sua literatura, indo além de uma prosa sofisticada, porém, no fundo, sem maiores sobressaltos? Como ampliar o repertório de olhares e tramas, para além da claustrofobia e do desenraizamento, com finais pouco surpreendentes, embora sempre muito engenhosos? Pode-se imaginar um sujeito que não permaneça à deriva ou uma trama textual que não reduplique mimeticamente o ângulo de observação?
Recordo a conclusão de seu segundo romance: “(...) e naquele instante Benjamin assistiu ao que já esperava”.
Os admiradores do autor, entre os quais me incluo, torcem para que a sentença não se transforme numa antecipação involuntária de seus próximos livros.
ESTORVO
Editora: Companhia
das Letras
(160 págs., R$ 39)
Publicado em 1991,
o livro apresenta um personagem entre
situações familiares
e o tormento provocadp por episódios irreais
BUDAPESTE
Editora: Companhia das Letras
(176 págs., R$ 39)
A história de um homem que trafega entre duas
cidades, duas mulheres, dois livros e duas línguas neste livro
de 2003
DERRAMADO
Editora: Companhia
das Letras
(200 págs., R$ 39)
A história de
um homem que,
no leito de morte,
revê sua trajetória, pontuada por uma
paixão mal resolvida
BENJAMIM
Editora: Companhia
das Letras
(168 págs., R$ 39)
De 1995, tem como
tema a obsessão
do personagem principal, um ex-modelo
fotográfico, pela morte
de uma mulher
Nada impede Chico Buarque de fazer brincadeiras e
observações espirituosas.
Especialmente quando ele inventa personagens
para si
REGINA ZAPPA
JORNALISTA E AUTORA DE QUATRO LIVROS SOBRE CHICO BUARQUE
Tarde de sábado na porta de um prédio. Chego à casa do casal para o aniversário da dona da casa e encontro um motoboy de tênis, camiseta surrada, calça de moletom e um capacete que cobria todo o rosto. Nas mãos, um buquê de flores. O entregador tinha tocado a campainha e esperava pacientemente alguém abrir a porta. Do lado de fora, uma scooter azul tinindo esperava o “motoboy”. A porta se abre, ele entrega as flores, recebe a gorjeta e, sem dizer palavra, dirige-se a sua moto, com aquele andar de Chico Buarque, meio desengonçado. “Chico, é você?” Ele monta na scooter, curvando-se de rir, e sai em disparada, divertindo-se com a própria molecagem.
Chico tinha quase 60 anos quando se deu o episódio descrito, época em que rodava pelo Rio incógnito, com capacete preto e scooter azul, despistando a fama. Mas a idade nunca foi impedimento para as brincadeiras, observações espirituosas e invencionices do cantor, compositor e escritor que o Brasil celebra. Prestes a fazer 70, Chico conserva o traço marcante do lado B da sua personalidade: o humor afiado que o acompanha desde sempre.
Chico sempre gostou de inventar histórias e entra na pele de seus personagens não apenas nas letras de suas músicas ou nos enredos de seus livros. Ele próprio vira personagem. O mais famoso deles foi Julinho da Adelaide, um saboroso e divertido truque que inventou para escapar da censura às suas músicas na época da ditadura militar. Uma vez, quando fazia uma turnê pelo Uruguai, inventou mais uma. Rodava por Montevidéu ao lado do motorista do táxi que, encafifado, não parava de olhar para Chico. Disse que sabia que o conhecia de algum lugar. “Não, não, o senhor conhece o meu pai”. “E quem é ele?”, perguntou o taxista. “Eu sou filho do Manga.” Feliz por transportar o filho do famoso goleiro do Botafogo, que jogou em 1967 no time Nacional uruguaio, o motorista nem cobrou a corrida. Piadas, Chico faz também com suas mazelas. O medo de subir no palco foi amenizando ao longo da vida, mas o pânico o perseguiu durante um bom tempo e rendia até sonhos engraçados. Uma vez contou que sonhou ter passado um show inteiro cantando apenas uma música: Bolero Blues. Quando voltava para o bis, cantava de novo a mesma coisa.
Já mais adiante e mais à vontade nos palcos, ao chegar a uma cidade para fazer um show, perguntou para Ricardo Tenente, seu produtor e diretor de palco:
– Você conhece algum psicólogo ou psiquiatra na cidade?
– Por quê?
– Porque enlouqueci. Eu estou doido para entrar no palco.
E já que estamos na Copa, vale lembrar uma historinha que revela a rapidez e o senso de humor nas suas respostas. No documentário Edu Lobo: Vento Bravo, Chico e Edu, parceiros entrosadíssimos, respondiam às perguntas da diretora. “Dizem que vocês são como uma dupla em perfeita harmonia, como Pelé e Coutinho. Como funciona essa parceria?”. No mesmo instante, Chico vira-se para Edu e fala: “Diz aí, Coutinho”.
Esse Chico engraçado e sagaz, que conta com seriedade histórias absurdas e inventa ser outros, pode aparecer a qualquer momento, em qualquer situação. Portanto, se passar por você um motoboy zunindo numa scooter, ou se encontrar um gaiato que se faz passar por filho de jogador de futebol, fique alerta, ele pode ser o Chico Buarque.