À espera do regresso
A cada 2 dias, sete policiais são afastados do serviço em São Paulo
Anderson Lino do Nascimento fez sinal para o policial na guarita. Estava voltando ao quartel após sete meses. Um acidente de moto a caminho do trabalho fez o policial passar por duas cirurgias, mais de uma centena de sessões de fisioterapia, provocando seu afastamento. Acidentes com veículos – carros e motos – e atropelamento estão entre as principais causas de licenças médicas concedidas pela Polícia Militar aos seus homens. Tiros e facadas também provocam dezenas de vítimas. De janeiro de 2015 a maio de 2017, a cada dois dias a corporação registrou o afastamento de sete policiais feridos no Estado, de folga ou no serviço.
Quando o policial é ferido
Juntas médicas da PM registram os casos
A violência enfrentada pelos policiais militares fez com que a Diretoria de Saúde da PM mudasse o treinamento de médicos e dos policiais de batalhões e de unidades de elite. Eles passaram a receber instrução para atender casos de traumas causados por armas de guerra (Prehospital Trauma Life Support ou PHTLS, na sigla em inglês). “Ele precisa saber fazer um torniquete corretamente em um ou dois minutos para controlar a hemorragia”, afirma o tenente-coronel-médico Cezar Angelo Galletti Junior, da diretoria.
A ideia é que toda equipe policial tenha pelo menos um integrante com um torniquete no uniforme para salvar vidas. “Nosso objetivo é devolver o homem no fim da carreira nas mesmas condições de quando ele ingressou na corporação”, diz o coronel-médico Roberto Rodrigues Junior, diretor de Saúde da PM. “O policial chega cada vez mais cedo na ocorrência e os bandidos estão com armamento cada vez mais pesado”, explica.
De acordo com dados das Juntas Médicas da PM, 249 policiais ficaram incapacitados para o trabalho de 2015 a junho de 2017 – são 7,9% do total de 3.131 homens que obtiveram licenças médicas, principalmente em razão de acidentes, ferimentos com armas de fogo e armas brancas. “Uma minoria é reformada, normalmente os pacientes da fisioterapia neurológica”, conta a tenente-coronel Soraya Corrêa Alvarez, que chefiava o Centro de Reabilitação (CR), da corporação.
Além de manter hospital próprio, a PM tem um CR para tratar desses policiais feridos. Em 2016, o CR fez 57,1 mil atendimentos, quase a mesma quantidade do ano anterior (56,3 mil). A fisioterapia ortopédica foi responsável por 17 mil desses atendimentos no ano passado e o serviço de condicionamento físico, por 11 mil, ocupando o primeiro e o segundo lugares dos atendimentos mais procurados. É no CR que Lino fez seu tratamento. No seu caso, foram os exercícios da fisioterapia ortopédica. Assim como o sargento Wagner Leite da Silva – ambos voltaram ao serviço. Pelo centro também passaram a soldado Adriana da Silva Andrade e o soldado Gilson Ribeiro. Baleados por bandidos, Ribeiro e Adriana são atendidos pela fisioterapia neurológica. Ribeiro teve de ser reformado e Adriana deve seguir o mesmo caminho.
“Muitos dos policiais militares chegam com lesões que não permitem que eles voltem ao serviço policial. Nesses casos há muitas vezes um abalo psicológico. Então é preciso tratar o policial de forma multidisciplinar”, afirma a tenente-coronel Soraya. Em média, os afastamentos por acidentes deixaram os policiais de 30 a 90 dias longe do trabalho. Já entre os que foram vítimas de disparos de armas de fogo, a média de afastamento é de 45 dias. Os casos neurológicos são tratamentos longos. “Invariavelmente, com esses pacientes nós cuidamos do luto”, afirma Soraya. A tenente-coronel explica que no “luto” em questão acontecem “perdas de capacidades e de possibilidades”. “Os policiais militares, desde o começo de sua formação, têm o treinamento voltado para a resolução de problemas.” Soraya conta que, então, o policial passa a se ver como “o problema”, porque deixou de ter a autonomia das atividades diárias, passando a depender de alguém. “Isso é muito complicado para o policial administrar.”
Normalmente, segundo ela, as pessoas nessa situação são policiais muito jovens. O sargento Marcos Alves Marçal é um dos psicólogos que atendem os feridos em recuperação. “O policial quer voltar logo ao trabalho. Ele não aceita o estado em que está”, conta. Nos casos mais graves, o sargento luta para que o paciente não desista do tratamento. “Alguns pacientes chegam com depressão. A atenção a eles é essencial”, diz. Os grandes incapacitados começam pela hidroterapia. “Conforme a evolução, eles são encaminhados para outros setores”, conta a fisioterapeuta Simone Aparecido da Silva. “É preciso trazer esses pacientes de volta para vida.”
O capitão Helder Octávio Rodrigues Borges, de 49 anos, foi um desses pacientes. Filho de portugueses, Borges entrou já com 29 anos na PM. Fez a Academia de Oficiais do Barro Branco e saiu aspirante em 2002. Foi trabalhar no 26.º Batalhão da PM, na região de Franco da Rocha. Estava ali no dia 13 de julho. Deu preleção para tropa na cidade vizinha de Caieiras, quando foi chamado pelo rádio. Havia uma briga no quartel de Franco da Rocha. Era um dia chuvoso.
Decidiu ir ver o que estava acontecendo. O soldado Juarez “havia aloprado”. Bêbado e de arma em punho, ameaçava matar todo mundo. Um sargento tentava impedi-lo. “Quando entrei, ele disse ao sargento: ‘Vou matar o tenente (Borges então era tenente)’. E atirou”, conta Borges. A bala acertou o abdome do oficial, logo abaixo do colete à prova de balas.
O sargento correu e o aspirante caiu. O soldado disparou duas vezes em direção ao sargento. Errou. Caminhou em direção à vítima e atirou novamente antes de ser preso. Desta vez, na direção da sua cabeça. Estava com uma pistola calibre 380. O impacto não foi direto, mas um fragmento do projétil arrebentou-lhe o crânio. “Perdi 15% de minha massa encefálica”. Borges se levantou e disse aos colegas que ia para casa descansar, antes de desmaiar.
O capitão acordou somente no dia 25 de agosto. Estava no Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Vi minha mãe e perguntei o que estava fazendo ali. Disse que estava bem e queria ir patrulhar, comandar minha tropa. Só 2 dias depois que minha mulher e minha mãe me contaram tudo. Entrei em um estado catatônico”, lembra o oficial. Começou então sua reabilitação. Em 6 de setembro recebeu alta. Passou ainda quatro meses em uma cadeira de rodas. “Não falava. Era um trauma psicológico. Um dia você tem completo domínio dos seus atos e, no dia seguinte, você fica dependente. Fui percebendo as deficiências aos poucos.” Borges passava dias sem dormir. Sua família adoeceu ao seu lado. “Levei seis meses para perceber que havia perdido a visão periférica direita.” Foram quatro anos de tratamento para o capitão recuperar os movimentos do braço direito. Nesse tempo, quis continuar trabalhando. Recebeu autorização para voltar, mas não podia nem mesmo usar farda. Tinha todas as restrições de trabalho. Primeiro trabalhou no disque-denúncia, depois no próprio Centro de Reabilitação. Foram nove anos de tratamento psicológico para que Borges aceitasse a ideia de que deveria se aposentar por invalidez. Ainda pôde vestir a farda uma vez antes de se retirar. Viu que jamais voltaria ao patrulhamento apesar de ter voltado a falar e a andar. Borges só não deixou de lado o CR. Ele ainda frequenta o centro para manter seu condicionamento físico.