O 'futebol científico' não assusta Mané Garrincha (1950-1958)
A mistura entre futebol russificado, intercâmbio de ideias com países europeus e métodos modernos de treinamento fazem os soviéticos, após o ouro olímpico, a querer a Copa do Mundo. Faltou combinar com Garrincha
Os soviéticos já tinham se ligado, desde 1933, que o esporte servia também como uma ferramenta poderosa e de uso político, e que vencer os países capitalistas nas competições era um recado muito claro de que o que se produzia na URSS era melhor. No futebol, este esquema tático da diplomacia foi ganhando forma entre os anos 1930 e 1940, e chegou ao ápice na década de 1950. Em 1956, a seleção soviética, que ainda era uma novata em megaeventos esportivos (participara dos Jogos de 1952), faturou a medalha de ouro em Melbourne, na Austrália.
A euforia no bloco socialista, que já contava com as 15 repúblicas, estimulou os soviéticos a sonharem com voos maiores, afinal, eles tinham como um dos trunfos poder recrutar os melhores jogadores de cada nação pertencente à União Soviética. É como se os países do Mercosul, hoje formado por Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai, pudessem juntar numa seleção só um ataque formado por Lionel Messi, Luiz Suárez e Neymar, numa reedição do trio MSN, mas agora dentro de uma Copa do Mundo. Vencer o Чемпионат мира по футболу, em 1958, agradava muito aos líderes do Partido Comunista, em especial por ser na Suécia, um país de muitos conflitos anteriores com a Rússia, como na disputa territorial da região onde hoje fica a cidade de São Petersburgo, conquistada por Pedro, o Grande, em 1703.
A seleção criada em laboratório parece imbatível
Outros aspectos, não só no campo, davam confiança de que a URSS venceria fácil a Copa. Já nos anos 1950, a seleção soviética se utilizava de métodos e tecnologias que parecem coisas atuais, mas que vem de bons anos no universo do futebol, como exames de detecção de lesões, acompanhamento fisiológico e treinamentos específicos por posição. Os vermelhos também se utilizavam de “espiões”, observadores técnicos que viajavam para observar e fazer relatórios sobre os adversários que eles enfrentariam na Suécia.
O Brasil, chefiado por Paulo Machado, chegou a trocar algumas vezes o horário do treino, em cima da hora, para escapar dos olhares meticulosos dos soviéticos, que se instalavam em uma colina com visão total ao campo de treino dos brasileiros.
Um pouco antes de a bola rolar, a crônica esportiva definiu o futebol praticado pelos soviéticos de “científico”, uma mistura dos melhores esquemas táticos da Europa com o mistério de laboratório de na época uma das partes do mundo mais fechadas a estrangeiros. Para o escritor e jornalista Ruy Castro, que biografou a vida de Mané Garrincha, o futebol soviético era assombroso para os outros países pelo fato de “os jogadores estarem preparados para correr 180 minutos e, depois, sapatear balalaikas sobre os bofes dos adversários. Também se dizia que em dia de jogo eles faziam quatro horas de ginástica pela manhã, e que a KGB espalhara espiões pelo mundo, filmando partidas e que seus computadores eletrônicos haviam produzido um sistema perfeito para derrotar qualquer equipe”.
Só que como a máxima do “treino é treino, jogo é jogo” quase sempre funciona, a URSS começou com o freio de mão puxado em terras suecas, com um empate de 2 a 2 com a Inglaterra, e uma vitória modesta de 2 a 0 sobre a Áustria. O Brasil, próximo adversário, também havia empatado com os ingleses e vencido os austríacos. Quem ganhasse, passava em primeiro às quartas de final.
A mágica pode ganhar da lógica
O time brasileiro convivia com o fantasma da Copa de 1950 e o sentimento de “vira-lata” que Nelson Rodrigues inventou após a perda do título mundial para o Uruguai, em pleno Maracanã. Os soviéticos, cheios de confiança e seus “corpos-máquinas” nunca tinham ouvido falar em Garrincha, lá da cidade de Pau Grande, que detestava seguir esquemas táticos e orientações do treinador, e que jogava bola com suas pernas tortas e gagueira incontrolável. Pois em três minutos, eles tiveram um cartão de visitas que ficou para a história.
Em 180 segundos, Garrincha e Pelé, que jogaram pela primeira vez juntos nesta partida, meteu duas bolas na trave, driblou vários marcadores, os “Joães” e um passe perfeito para Vavá fazer 1 a 0. Garrincha ainda participou da jogada do 2 a 0, gol de Vavá, além 36 chutes a gol, 18 deles com perigo, que perturbaram a vida do goleiro Lev Yashin, o Aranha Negra, considera uma lenda do futebol soviético e mundial, e que, em 2018, estampa o cartaz da Copa do Mundo, além de uma nota especial de 100 rublos, lançada especialmente para o Mundial.
Por ter se classificado em segundo da chave, a seleção soviética teve de enfrentar os suecos, que os despacharam com prazer de volta a Moscou, com um 2 a 0 no placar, e que também valeu de troco, três séculos depois, pela perda de parte do Golfo da Finlândia. O projeto de vencer a Copa do Mundo havia naufragado, mas não pense que o Sputnik, no desenrolar da Guerra Fria, deixaria o plano de potência esportiva esfriar.
O mundo em 1950 a 1958
1950
O Brasil sedia sua primeira Copa do Mundo e perde a final para o Uruguai. O 2 a 1, em pleno Maracanã, entra para a história como o Maracanazzo.
1952
Os soviéticos estreiam em Jogos Olímpicos, em Helsinki, e logo de cara, ficam no segundo lugar geral, ao conquistar 1/3 das medalhas (76) e só perder dos americanos em número de ouros (40 a 22).
1953
A Guerra das Coreias marca um dos primeiros conflitos que mergulharam o mundo na Guerra Fria, que entre os anos 1950 até o início dos anos 1990, dividiria a geopolítica entre o bloco capitalista (EUA) e o socialista (URSS).
1954
Copa do Mundo da Suíça. Os alemães vencem o primeiro de seus quatro títulos, no chamado “Milagre de Berna”, ao derrotar a então imbatível seleção húngara.
1956
O presidente Juscelino Kubitschek assume o poder no Brasil e inicia um período de grandes transformações na economia e na cultura. Os “50 anos em 5” terminam com a inauguração da nova capital, Brasília, em 1961. Na Austrália, os soviéticos vencem a primeira de suas seis Olimpíadas, e acirram a disputa com os EUA.