Café, abolição, queda do Império: fim do século 19 começa a mudar o País

‘Ouro verde’ deslocou eixo econômico, abriu caminho à imigração e reforçou movimento republicano

Laurentino Gomes
ESPECIAL PARA O ESTADO

Há uma ironia estatística no nascimento do mais importante jornal da história republicana brasileira. Em 1875, ano da fundação de A Província de São Paulo, o Brasil era campeão mundial de analfabetismo. Três anos antes, o primeiro censo demográfico do Império apontava que só 17% da população de cerca de dez milhões de habitantes sabia ler e escrever o próprio nome. Entre negros e escravos, o analfabetismo passava de 99%. As 7,5 mil escolas primárias do País tinham apenas 300 mil alunos matriculados. Nas secundárias, havia 12 mil estudantes. Oito mil pessoas tinham educação superior. A agricultura respondia por 70% da riqueza nacional e oito entre dez brasileiros moravam na zona rural. Que chances de sucesso haveria para o novo jornal em um país sem leitores?

Seus fundadores, no entanto, pareciam vislumbrar razões de otimismo. São Paulo era a cidade que mais crescia no País. Sua população se multiplicaria por sete em 30 anos, chegando a 239.820 habitantes no censo seguinte, de 1891, já sob regime republicano. O crescimento era impulsionado em grande parte pelos estrangeiros que chegavam para substituir nas lavouras de café a mão de obra escrava, em vias de ser abolida em 1888 pela Lei Áurea. Principal riqueza paulista, a cafeicultura dominava a pauta de exportação. Sozinho, o Brasil fornecia 60% da produção mundial.

Impulsionada pelo café, a paisagem urbana de São Paulo se transformava rapidamente. Ruas centrais eram iluminadas por lampiões a gás, mais eficientes do que as lanternas a óleo de baleia. O telégrafo contribuía para a circulação mais rápida de notícias. Graças a isso, em 1876 já se publicavam 40 jornais na província. Mais recente, o telefone logo chegaria a São Paulo, Campinas e Santos. Outra novidade eram os serviços de locomoção. Em 1887, sete linhas de bondes transportavam 1,5 milhão de passageiros por ano.

O café produzira uma drástica alteração no eixo econômico do País. Nos 200 primeiros anos da colonização, a riqueza se concentrara no Nordeste, no chamado ciclo do açúcar. Depois, migrara para Minas Gerais na corrida do ouro e diamante que marcou a primeira metade do século 18. Nessa época, o paraense Francisco de Melo Palheta roubou de um viveiro da Guiana Francesa as primeiras mudas de café, planta da Etiópia até então cultivada em segredo pelos franceses. Levadas a Belém, as mudas logo chegariam ao Vale do Paraíba, entre o Rio e São Paulo. Começava a febre do “ouro verde”. O produto, que na Independência representava 18% das exportações brasileiras, em 1889 já alcançava 68%. O total de sacas exportadas saltou de 129 mil em 1820 a 5,5 milhões em 1889.

Duas grandes mudanças demográficas marcaram o ciclo do café. A primeira foi a transferência maciça de escravos do Nordeste para o Sul e Sudeste. Essa migração forçada começou por volta de 1850, após a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu definitivamente o tráfico de escravos da África ao Brasil. Como a lavoura canavieira estava em crise no Nordeste, senhores de engenho passaram a vender a mão de obra cativa ociosa.

O segundo fenômeno foi a chegada dos europeus, um projeto ainda da época de dom João que tinha sido adiado por causa da abundância de mão de obra escrava. Entre 1886 e 1900, São Paulo receberia 1 milhão de europeus – quase o dobro da população escrava no País no ano da abolição.

Foi nesse ambiente que nasceu o mais bem organizado movimento republicano brasileiro, que, por sua vez, estaria na raiz da criação de A Província de São Paulo. A Convenção de Itu, de 1873, marcou a fundação do Partido Republicano Paulista (PRP), cuja atuação seria decisiva na queda do Império e consolidação do novo regime.

A convenção foi realizada na casa do fazendeiro Carlos de Vasconcelos de Almeida Prado, onde hoje funciona o Museu Republicano. Presidida pelo fazendeiro João Tibiriçá Piratininga, reuniu a fina-flor da agricultura cafeeira na região. Dos 133 participantes, 78 se declaravam agricultores. Entre os outros 55, havia de tudo um pouco, incluindo dez advogados, oito médicos, cinco jornalistas, farmacêuticos, dentistas e alguns comerciantes de escravos. Uma das presenças de maior destaque foi a de Campos Salles, futuro presidente. Outro futuro presidente, Prudente de Morais, teve seu nome incluído mais tarde, embora não tenha comparecido nem fosse republicano à época.

A cerca de 100 quilômetros da capital, Itu foi escolhida porque refletia as mudanças ocorridas na economia nos anos anteriores. O eixo da produção do café havia se deslocado rapidamente do Vale do Paraíba às terras férteis do Oeste Paulista, dominadas pelos republicanos.

Contraste. O cultivo no Vale do Paraíba pautava-se por técnicas rudimentares. A produtividade era baixíssima. A abundância de terra e mão de obra escrava desobrigava os barões de investir na melhoria de técnicas de produção. Situação bem diferente do Oeste Paulista, onde cafeicultores foram pioneiros na substituição de escravos por europeus. Outras mudanças ocorreram no beneficiamento do café. Máquinas como despolpadores faziam a tarefa de até 90 escravos. Além de aumentar a produtividade das fazendas, elevavam a qualidade do produto, que passou a ter preços melhores.

A forma como fazendeiros do Oeste Paulista viam o Brasil e seu futuro também era bem diferente da dos barões do Vale do Paraíba. Para eles, a monarquia já não se encaixava no modelo de país que almejavam.

Em 1874, participantes da Convenção de Itu se reuniram em Campinas para angariar fundos e criar um jornal que ecoasse as propostas do novo PRP. Seu “plano de ação”, redigido por Américo Brasiliense e datado de 2 de outubro de 1874, defendia a “descentralização completa” do Estado brasileiro, liberdade de ensino e aprendizagem obrigatória, separação entre Igreja e Estado, casamento e registro civil de nascimento e mortes, secularização dos cemitérios, Senado temporário e eletivo, “eleição direta sob bases democráticas’ e, como meta particularmente desejada pelos paulistas, “presidentes de províncias eleitos por estas”. Embora o novo jornal evitasse, ao menos no início, declarar-se confessamente favorável à queda da monarquia, seus 17 donos eram conhecidos chefes republicanos, incluindo os sócios principais, Francisco Rangel Pestana e Américo de Campos.

Nos anos seguintes à Convenção de Itu, republicanos enfrentaram um dilema que se revelaria insuperável: a escassez de votos. A campanha republicana não encontrava ressonância nas urnas. Nas eleições de maio de 1889, ano da proclamação da República, a soma dos votos republicanos em todo o País não chegou a 15% do total.

Os republicanos também estavam divididos. Sobretudo quanto à fórmula de república a ser implantada no Brasil. Cafeicultores do Oeste Paulista e parte dos jornalistas, professores, advogados e intelectuais do Rio autores do Manifesto Republicano de 1870 sonhavam com uma democracia liberal e federalista, semelhante à dos Estados Unidos, com sufrágio universal e liberdade de expressão, que resguardasse, porém, os direitos de propriedade e o livre-comércio. Na ala mais radical, estavam os jacobinos, defensores da instalação da república mediante insurreição popular. Um terceiro grupo era formado pelos positivistas, que pregavam uma ditadura republicana.

Os republicanos divergiam até sobre o tratamento que deveria ser dado à família imperial. Os mais radicais, como Silva Jardim, pregavam fuzilamento. Os mais moderados, como Quintino Bocaiuva, preferiam até esperar a morte de Pedro II para trocar de regime. Benjamin Constant achava que a revolução teria de ocorrer o mais rapidamente possível, mas a família imperial deveria ser tratada com todo o respeito.

Outro foco de divergências era a escravidão. No Manifesto Republicano de 1870 e no documento aprovado na Convenção de Itu, defensores do novo regime passaram ao largo do tema. A abolição, diziam fazendeiros paulistas, deveria ser tratada “mais ou menos lentamente”, segundo as possibilidades de substituição do escravo pela mão de obra livre e levando em conta o “respeito aos direitos adquiridos”. A resolução de Itu foi aprovada contra o único voto do abolicionista Luís Gama.

O motivo da omissão era óbvio: muitos signatários, incluindo Campos Salles, eram senhores de escravos. Com 10.821 habitantes, Itu tinha na época 4.425 escravos – de cada dez ituanos, quatro eram cativos.

Mudança. Como resultado dessas divergências, até 1889 os diferentes grupos republicanos agiam de forma isolada. Todos, porém, adeririam rapidamente na madrugada de 15 de novembro ao golpe do marechal alagoano Manuel Deodoro da Fonseca que derrubou a monarquia. Deodoro até então não se identificava com nenhuma das facções republicanas. Segundo evidências, nem republicano era. “República no Brasil é coisa impossível porque será uma verdadeira desgraça”, escreveu ao sobrinho Clodoaldo Fonseca um ano antes. “O único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia. Se mal com ela, pior sem ela.”

Antes de ser assinada pela princesa Isabel, Lei Áurea foi aprovada pela Câmara Geral (REPRODUÇÃO)

Aparentemente, Deodoro ergueu-se contra a monarquia mais por ressentimentos pessoais que por convicções ideológicas. Por força das circunstâncias, coube a ele assumir a liderança da chamada “Questão Militar”, série de conflitos entre as Forças Armadas e o governo imperial surgida após a Guerra do Paraguai. E foi em nome dela que liderou o golpe republicano de 1889.

Sem ressonância nas urnas, o Partido Republicano passou a enxergar no Exército um instrumento para acelerar a mudança de regime. Cabia-lhes fomentar ao máximo as divergências entre militares e autoridades imperiais. Em razão disso, a troca de regime, em vez de percorrer um caminho mais suave e institucional, veio por um golpe executado na calada da noite.

A facilidade com que se derrubou a monarquia e se proclamou a República, sem reação popular, troca de tiros ou protestos, parecia confirmar o mito de que transformações políticas brasileiras se processam de forma pacífica. Essa imagem, porém, desfoca-se por completo quando se avança um pouco no calendário. Derrubada a monarquia, o sonho de liberdade e ampliação de direitos rapidamente se dissipou. Em alguns anos, o país estava mergulhado na ditadura de Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”.

Conflitos. O sangue que deixou de correr em 1889 verteu em profusão nos dez anos seguintes, resultado do choque entre as expectativas e a realidade do novo regime. Duas guerras civis, somadas à Revolta da Armada, deixariam marcas profundas. No Sul, os três anos da Revolução Federalista custaram a vida de 12 mil pica-paus e maragatos. No sertão da Bahia, o sacrifício épico de Canudos testemunhado por Euclides da Cunha, repórter do Estado, resultou em 25 mil mortes.

As feridas desses conflitos marcaram profundamente a primeira fase republicana, na qual militares tentaram organizar o novo regime mediante censura à imprensa, parlamento fechado mais de uma vez, prisão e deportação de opositores.

Assim a República permaneceria no século seguinte, definido por golpes e rupturas entremeados por breves e instáveis períodos de democracia. Forte, autoritária e centralizada, seria muito diferente da sonhada pelos fazendeiros do Oeste Paulista na Convenção de Itu. E esta seria outra grande ironia na história do jornal improvável de 140 anos atrás, nascido num país de analfabetos. Fundado com a missão de defender princípios liberais num ambiente de democracia e liberdade de expressão, o Estado passaria a maior parte de sua existência se batendo contra a censura e tentativas, à esquerda e à direita, de controle da informação. Mesmo hoje, seus princípios fundadores se mantêm como direitos que a República ainda não conseguiu assegurar plenamente.

SEIS VEZES GANHADOR DO PRÊMIO JABUTI DE LITERATURA, É AUTOR DE 1808, 1822 e 1889.