‘Os Sertões’ nasce como reportagem

Enviado do ‘Estado’ para cobrir a Guerra de Canudos, Euclides da Cunha escreveu clássico da literatura

Lourival Sant’Anna

Assim Euclides da Cunha começou sua cobertura da Guerra de Canudos, em telegrama enviado de Monte Santo, na Bahia, no dia 6 de setembro de 1897, e publicado na edição do dia seguinte do Estado: “Chegamos hoje bem a esta cidade. Encontramos os batalhões 4.º, 29.º, 38.º e 39.º e os batalhões de polícia do Pará e do Amazonas, que seguirão brevemente para Canudos. A artilheira Canet chegará amanhã ou depois”. Nem ele sabia que tinha início ali a criação de um dos maiores clássicos da literatura brasileira, Os Sertões.

Mas Canudos reservava mais imprevisibilidades para esse engenheiro militar convertido em repórter. Nascido em Cantagalo, no Estado do Rio, Euclides, então com 31 anos, chegou à Bahia trazendo consigo os esquemas mentais de um homem urbano do Centro-Sul do Brasil, e ainda por cima ardente republicano, acerca do sertanejo nordestino e daquele exército de maltrapilhos seguindo cegamente um líder messiânico, alucinado e monarquista. Ao longo da cobertura, sua visão sobre os revoltosos de Canudos e sobre a geografia humana que os emoldurava foi se transmudando à medida que o repórter se expunha àquela guerra, àquele povo e lugar.

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, elogiaria mais tarde em seu livro. “Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte (...). Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil.”

Seguidores de Antônio Conselheiro, detidos pelo Exército em Canudos, na Bahia (ACERVO/ESTADÃO)

Depois de observar o arraial revoltoso, Euclides o descreve, em carta ao jornal: “Canudos está militarmente construído e uma estampa que por aí anda nada traduz, absolutamente, da sua feição característica. As casas, aparentemente em desordem, dispõem-se umas relativamente às outras, de modo tal que de qualquer das quatro esquinas, o inimigo, sem mudar de lugar, rodando apenas sobre os calcanhares, atira para os quatro pontos do horizonte”.

O espanto diante da condição humana e do engajamento daqueles civis no levante de Antônio Conselheiro é manifesto em outra carta, enviada de Monte Santo: “Acabam de chegar, há meia hora, nove prisioneiras; duas trazem ao seio crianças de poucos meses, mirradas como fetos; acompanham-nas quatro pequenos de três a cinco anos. O menor de todos chama-se José. Assombra: traz à cabeça, descendo-lhe até os ombros, um boné de soldado... A boca é uma chaga. Foi atravessada por uma bala”.

Em sua investigação exaustiva daquele espaço, Euclides se dedica a esquadrinhar a vegetação e a topografia: “Encontrei na volta um novo espécime desta flora agressiva – a favela, cuja folha sobre a pele, ao mínimo contato, é um cáustico infernal, dolorosíssimo e de efeitos prolongados”. A planta emprestou seu nome ao morro ao lado de Canudos. Mais tarde, se incorporaria ao vocabulário nacional, designando as ocupações irregulares nas cidades.

Em sua cobertura da guerra, de 6 de setembro a 1.º de outubro, Euclides enviou telegramas e cartas. Os telegramas, publicados no dia seguinte, eram curtos e noticiosos. As cartas, que vinham com emissários a cavalo e de trem, levavam uma semana ou mais para chegar e ser publicadas. O jornal ia publicando tudo, na primeira página, à medida que ia recebendo, de tal maneira que as cartas, muitas delas fazendo parte de uma série chamada Diário de uma Expedição, narravam momentos anteriores aos telegramas. O primeiro diário acabou publicado depois do segundo, tal a dificuldade logística. Os diários seriam o embrião de Os Sertões, publicado em 1902, cinco anos depois da guerra.

Infográfico Confira especial do 'Estado' sobre o Euclides da Cunha

Sua descrição de Antônio Conselheiro, a partir do relato de padres que o haviam visitado, equivale a um retrato minucioso e denso: “Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente impressionaram grandemente os recém-vindos”.

Em seu mergulho nos sertões, que Euclides apresentou ao restante do País, o leitor é levado a fazer o percurso do repórter: o de se livrar dos estereótipos e fantasias e colocar no seu lugar a realidade, com tudo o que ela tem de tosco e admirável, de espantoso e de deslumbrante.

É JORNALISTA DO ‘ESTADO’