Das fronteiras do tráfico internacional à rota caipira

Nas cidades onde se instala como droga de alto consumo, o crack serve de combustível a dois tipos de violência: uma que vitima os próprios dependentes, determinada pelas regras do tráfico e por ações policiais repressivas, e outra que extrapola esse ambiente de criminalidade e atinge toda a sociedade. Como o usuário precisa de dinheiro para comprar seu prazer artificial, não raramente apela para a violência. Estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do ano passado, feito em pontos de consumo de crack, apontou que quase metade dos dependentes já foi presa pelo menos uma vez na vida.

Jimi (nome fictício) tem 32 anos, casa, família, filha e usa crack há 12 anos. Morador de São José do Rio Preto, quando entra em uso compulsivo, ele passa mais de um mês vivendo nas ruas, nos "buracos" e "mocós" de uma das regiões periféricas da cidade onde a droga circula abertamente, tanto para venda como para uso. E engrossa uma realidade muito estudada por especialistas. "Se eu usar uma pedra de crack de dia, estou me matando, estou me destruindo. Sou ciente: logo mais eu vou prejudicar alguém. Porque vai chegar o momento em que, se eu trombar com seu carro na caminhada, você de porta aberta ali, teus maquinários, eu vou prejudicar você. Você trabalha, faz seu negócio certinho. Se estiver marcando, eu vou pegar."

No escuro, Jimi conta com a ajuda apenas de pedaços de espuma que exalam um cheiro tóxico e que ele vai queimando para manter uma luz mínima, enquanto "fabrica" um cachimbo com isqueiro e canudo de antena para vender e conseguir mais algum dinheiro para a próxima pedra. Se não vender, ele dá para algum “noia” em troca de uma pitada. Para conseguir dinheiro, cata material reciclável e pede esmola. "Mas, se precisar, eu roubo."

Bem distante dali, no Leste do Estado, já quase divisa com Minas, Adriano Santos, de 34 anos, lembra em Campos do Jordão da cadeia e dos crimes que já cometeu para usar droga. "Conheci o crack com 10 anos de idade, em Salvador. Fumava todo dia, a toda hora. Tudo o que eu fazia era para a droga. Tudo era na droga", conta ele, que veio para São Paulo em busca da "pedra da cracolândia". "Diziam que era muito mais forte." Só a tuberculose, contraída na cadeia, não deve abandoná-lo pelo resto da vida. Ele é um dos pacientes do Hospital Leonor Mendes de Barros, cuja maioria dos atendidos já é dependente de crack.

"Todo dependente químico, quando está na dependência e não tem condições de suprir aquela necessidade, porque é uma necessidade, acaba partindo para outros crimes. Além do crime do tráfico, ele acaba partindo para outros crimes, como o furto", resume a diretora do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), Eliane Biasoli.

O envolvimento com o crime para sustentar o vício não é exclusivo de "noias" pobres da periferia. Michel, de 31 anos, tem pais ricos, nunca passou fome nem necessidade, fez faculdade, mas fazia de tudo para sustentar o prazer artificial. "Peguei esse hábito de viver pela rua e já não aparecia mais em casa. Esmolava, roubava, me prostituía. Assis, São José do Rio Preto. Trabalhando no tráfico à noite, dormia ao relento", conta ele, internado em uma clínica particular do interior, cujo tratamento custa R$ 4 mil por mês.

Como droga de comércio, o crack teve rápida expansão no Estado. Em 1993, dois anos depois de "ser fichado" na polícia paulista, foram feitas 204 apreensões da droga. Em 1996, esse número subiu para 1.906. Para popularizar a pedra e aquecer os negócios, traficantes passaram a oferecê-la como a única droga disponível em algumas "bocas" da capital. A pedido do Estadão, o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão aos Narcóticos (Denarc) fez um levantamento do total de apreensões nos três meses antes da entrevista para dimensionar o quanto a droga representa nas biqueiras. De dezembro do ano passado a 7 de abril deste ano, foi apreendido (exceto na cracolândia de São Paulo) um total de 11,9 quilos de crack no Estado e 142 quilos de cocaína refinada, com 300 presos. No mesmo período, só na cracolândia paulistana, foram 6,5 quilos de crack e 7,8 quilos de pó, com 138 detidos.

Desde a década de 1990, quando se consolidou a chamada rota caipira do tráfico internacional de drogas, as cidades por onde ela passava, via terrestre, ou chegava, via aérea, passaram a ser também destino final. Além de serem cidades ricas, com economia aquecida, a maior parte dessas metrópoles regionais tem grande concentração de eventos e universidades, o que atrai o tráfico.

Segundo o delegado Pablo Baccin, coordenador da Unidade de Contrainteligência e do Grupo de Operações Especiais do Denarc, essas cidades viraram também grandes polos consumidores, o que atrai o tráfico. "Será que o aumento dessas substâncias na cidade do interior não se dá em relação ao crescente número de pessoas usando drogas? Porque ela pode continuar na rota internacional, passando pelos Estados que você já conhece, chegar a São Paulo e voltar para o interior", diz ele, contrariando a ideia de que durante o transporte a droga acaba tendo frações deixadas ao longo do caminho.





Crack a granel. Embalagens com a droga apreendidas na Grande São Paulo

Nascido em Barretos, João (nome fictício) tem 29 anos e usa crack desde os 12. Em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) de Ribeirão Preto, ele conta que a maior dificuldade para parar de fumar é que a droga está em todo lugar e virou a mais pedida nas bocas. "Você vira uma esquina e tem um maluco fumando. De uns tempos para cá, está ganhando uma proporção maior. Vamos dizer assim: no mercado da droga, está dominando."

João serve para mostrar também um outro lado do vício: o da violência contra os próprios usuários, quase sempre determinada pelo tráfico. "Meu pai me internou depois de eu ter apanhado de oito caras, de oito traficantes, em um bairro de Barretos. Me acusaram de comprar e não pagar. Fiquei dois meses com a cara inchada."

Pesquisadoras da Unifesp, Luciana Ribeiro, Zila Sanchez e Solange Nappo estudaram o comportamento de usuários e constataram redução nas taxas de mortalidade por fatores externos, principalmente homicídio, nos últimos 20 anos. Em artigo publicado em 2010, elas apontam que o índice de mortes de dependentes entre os primeiros atendidos da rede de saúde, na década de 1990, era sete vezes maior do que o verificado entre a média geral da população de São Paulo, no mesmo período. Na década seguinte, o porcentual foi caindo, indicando uma adaptação a determinados riscos. "As estratégias desenvolvidas pelos usuários focam na tentativa de se autoproteger, principalmente dos episódios de violência, e no alívio de sintomas desagradáveis causados pela droga, principalmente fissura e sintomas paranoides transitórios."

Foi em 1995, também na Unifesp, que começou o primeiro estudo com dependentes de crack que buscaram internação na rede de saúde assim que a droga chegou ao Brasil. Ele mostrou que, depois de 12 anos da alta hospitalar, 20% haviam morrido – mais da metade por homicídio –, pouco mais de um quarto havia continuado no vício ou sido preso e 32% tinham conseguido se tratar. Os maiores riscos de morte ocorreram nos primeiros cinco anos após a alta.

Uma coisa que se observa nos "mocós" e outros pontos de consumo do interior é a presença frequente do traficante. Mas não se pode dizer se o local virou ponto de uso depois de a droga começar a ser vendida ou do vendedor ir ao encontro do cliente. "A gente nota quando é, além de traficante, dependente. Porque na cracolândia tem muito disso: o dependente também é usado pelo traficante maior para fazer o comércio na região", conta a diretora do Denarc.

Violência. Diretora do Denarc, Eliane Biasoli diz que compulsão leva usuário ao crime

Em São José do Rio Preto, na minicracolândia desmontada pela polícia no começo do ano, um grupo de usuários se concentra em um terreno baldio. Ao notar a chegada da reportagem, um deles avisa: "Pra filmar, tem de pedir autorização pra mim. Sou o senhor dos cachimbos". E mostra três deles na mão. "Aqui somos os NA – Noias do Paredão, Noias Anônimos do Paredão", brinca, zombando da própria situação. "Infelizmente nóis (sic) tá na rua, descabelado, no mundão. Nossa casa caiu, caiu, mas nóis tá vivo ainda, graças a Deus. O crack é luxo..."

No caminho até os ‘mocós’, buracos do poder público

O Brasil fabrica o crack que consome. Mas não produz coca. A matéria-prima que vira pedra em laboratórios caseiros ou de facções criminosas para depois parar nas mãos de dedos queimados e sujos dos "noias" em "bocas", "bocadas", "mocós", "biqueiras", casas de consumo, praças, vielas e bueiros do interior paulista vem do mesmo lugar de onde sempre veio a cocaína (refinada ou não). A questão é de polícia e de fronteira. Não há trabalho de atendimento de saúde e assistência social para dar conta dos aproximadamente 350 mil dependentes químicos de São Paulo se a droga não parar de brotar nas grandes e pequenas cidades.

Autoridades e profissionais que atendem dependentes acreditam que, se houvesse um combate mais efetivo nas fronteiras contra a entrada da pasta-base da cocaína (matéria-prima da pedra), o problema seria reduzido. Para o principal articulador da política sobre drogas do governo estadual, Ronaldo Laranjeira, também existe omissão das autoridades ao deixar "o pequeno tráfico florescer". "É um certo medo das autoridades municipais de enfrentar esse problema. A oferta de droga é grande e a rede de distribuição, eficiente."

Em Botucatu, o prefeito João Cury (PSDB), que ajudou o Estado a abrir seu primeiro hospital especializado para drogas no interior, cobra da União uma atuação mais forte. "O governo federal tem de melhorar a segurança da fronteira. Não é um discurso maniqueísta para dizer que a culpa é do fulano... Nós vamos só ficar abrindo clínica?"

O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, que em 2011 teve reservados R$ 4,5 bilhões da União para combater o crack até este ano, afirma que o governo aposta em uma ação combinada para enfrentar o tráfico, "seja por ações de fronteira ou nos pequenos, médios e grandes municípios", seja tratando dependentes. "Não basta acreditar que teremos bons resultados somente combatendo o tráfico. Isso é estratégico, é importante e necessário, mas, por outro lado, temos cada vez mais de aumentar os serviços de saúde, de cuidados, de serviços de reinserção social. Chamamos isso de equilíbrio entre redução de oferta e redução de demanda."

Os primeiros estudos americanos que apontaram a ineficácia do modelo de guerra às drogas são do começo dos anos 1990. No Brasil, eles passaram a ser incorporados por políticas públicas no fim da década, quando o crack já circulava em larga escala, embora mais restrito a grandes centros urbanos. "Se você começa a utilizar modelos comprovadamente descartados, você está atrasado e é isso que o Brasil tem feito. Agora, é muito mais vendável esse modelo porque ele diz muitas mentiras, tipo vamos acabar com a droga da face da Terra, livrar a população desse martírio", diz Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Maximiano garante que o governo federal tem se esforçado para evitar esse combate ao terror. "Estamos empenhados em virar essa página no País, para que saia de cena em relação aos usuários e dependentes o sistema policial e entre o sistema de saúde e assistência social."

Primeiro negro a conquistar uma cátedra na universidade de Columbia, em Nova York, Carl Hart foi criado em um bairro americano onde a droga dominava. No mês passado, ele veio ao Brasil lançar seu livro Um Preço Muito Alto (Editora Zahar). E disse acreditar que a questão do crack e da cocaína no País está fora de controle, assim como ocorreu na década de 1980 nos Estados Unidos. Não pelo elevado consumo, mas sim pela adoção de políticas que autorizam ações policiais contra usuários para eliminar uso em locais públicos, sem efetivamente atacar o problema.

O exemplo que ficou mais famoso e virou tema de debate nacional foi a ocupação por policiais militares, em janeiro de 2012, da cracolândia na Luz, em São Paulo. Por vários dias, houve confrontos entre a PM e os usuários de crack, com uso de bombas de efeito moral e balas de borracha. Um dos representantes do governo explicou que a estratégia era causar "dor e sofrimento" aos dependentes para que eles se vissem forçados a buscar tratamento. Em poucas semanas, a operação – que espalhou craqueiros por vários bairros da cidade e foi deflagrada sem conhecimento do governador Geraldo Alckmin e do próprio comando da polícia – acabou suspensa.



Confronto. Repressão a usuários na região central de SP foi alvo de críticas. NILTON FUKUDA/ESTADÃO - 13.01.2012