RECEITAS E RECIBOS MÉDICOS DÃO PISTAS SOBRE ENFERMIDADE DE INVENTOR

A redescoberta de documentos de Santos-Dumont reacendeu a discussão sobre o diagnóstico de esclerose múltipla dado para o inventor pouco antes de ele abandonar suas experiências com dirigíveis e aviões, em 1910. O Estado enviou duas listas de medicamentos comprados por Santos-Dumont em farmácias europeias e um recibo médico de consulta para três psiquiatras ligados à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Eles consideram impossível chegar a um diagnóstico definitivo, mas concordam com a possibilidade de transtorno mental.

Nessa avaliação, pesam sobretudo o fato de Santos-Dumont ter se suicidado em 1932, a exemplo da mãe, que se matou 30 anos antes em Portugal, e o fato de ter procurado clínicas e psiquiatras em uma época em que pacientes enfrentavam muito preconceito.

Um dos profissionais com quem Santos-Dumont se consultou foi Juliano Moreira, que, conforme recibo sob guarda da Aeronáutica, dava consultas sobre “doenças do systema nervoso e syphilis” às terças, quintas e sábados, das 8 às 9 horas, na Praia da Saudade, 288, no Rio. O documento, assinado pelo especialista e com data de 3 de outubro de 1925, diz: “Recebi do Exmo. Sr. Santos Dumont a quantia de cem mil por uma visita médica feita a seu chamado em Maio”.

Recibo do médico Juliano Moreira. ACERVO CENDOC “Transtornos de humor, como depressão e transtorno bipolar, são de longe as doenças mentais mais associadas ao suicídio e também têm influência genética”, explica Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e colaborador do portal estadão.com.br e da Rádio Estadão>. Segundo ele, os números variam um pouco, mas se acredita que 90% das pessoas que cometem suicídio têm algum transtorno mental e, delas, perto de 40% têm transtorno de humor.

Em sua opinião, porém, não é possível dizer com certeza se Santos-Dumont tinha depressão ou transtorno bipolar, apesar de biógrafos e reportagens de jornais relatarem alguns momentos de maior euforia do inventor. “Às vezes uma pessoa ativa deprime e, quando sai da depressão, fica um contraste, que pode ser confundido com mania”, explica Barros.

De qualquer forma, lembra, o que leva uma pessoa a se suicidar é a sensação de que não existe mais esperança, de ausência de qualquer vislumbre de saída. Ao longo das décadas, cristalizou-se a história de que a gota d’água para o inventor desistir da vida foi ver sua invenção, o avião, sendo usada na guerra, particularmente de brasileiros contra brasileiros na Revolução Constitucionalista de 1932. Para o psiquiatra, esse foi um dos elementos, mas creditar tudo a isso endossa o mito do herói.

“Não é possível falar de uma causa, mas de um conjunto de fatores: grande probabilidade de ter transtorno mental, associado a uma sexualidade conflitante – ele pode ter vivido um conflito, por exemplo, de não aceitar a própria sexualidade – , associado ao mau uso de sua invenção.”

A psicóloga Angela de Padua Schnoor cita outras hipóteses que podem ter contribuído para o suicídio. Santos-Dumont enfrentava um momento particularmente difícil. Além de várias pessoas próximas a ele terem morrido em sequência, ele sofria com a falta de reconhecimento e função. “O mundo estava desenvolvendo rapidamente o que ele havia começado e ele acabou alijado desse processo. Qualquer profissional que vai ficando idoso e sentindo que está sendo ultrapassado e esquecido vai ficando inseguro. Ele rejeitava grandes homenagens, mas quando se perde tudo também é muito ruim.” Para completar, tinha visto sua conta bancária diminuir com os gastos sem reposição em meio à crise econômica mundial, agravada pela quebra da bolsa de Nova York em 1929, e sofria com o uso bélico de sua criação. “Ele não fez família, sua família era o avião e o avião passou a ser usado para coisas que ele não concordava”, destaca a especialista, que é casada com Alberto Dodsworth Wanderley, sobrinho-neto do inventor.

Certamente também pesou para o desfecho trágico na biografia de Santos-Dumont o atraso da Psiquiatria no começo do século 20. “Na época, o tratamento para esse tipo de doença não era eficaz”, confirma o psiquiatra José Gallucci Neto, também do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. “Só a partir da década de 1950 é que se começou a avançar. O primeiro remédio eficaz em Psiquiatria, a clorpromazina, é desse tempo.”

O problema começava no diagnóstico. Uma das hipóteses era de que Santos-Dumont sofria de neurastenia, um termo que ainda existe, segundo Barros, mas não é utilizado por ser muito etéreo, apesar de ligado a sintomas depressivos e de ansiedade. Na caligrafia de difícil compreensão das receitas da Pharmacie Moderne e da Pharmacie Casteignau prescritas para Santos-Dumont, Gallucci Neto conseguiu identificar o brometo, um sal que ele define como curinga para a época, pois era prescrito para diferentes finalidades, inclusive calmantes.

Carta em exposição na Encantada na qual Santos-Dumont comenta sobre diagnóstico de neurastenia, que o fez pensar que 'estava ficando louco'. REPRODUÇÃO Em relação à hipótese de que o estado depressivo de Santos-Dumont decorreu do avanço de uma esclerose múltipla, Gallucci Neto é enfático: “A presença de uma doença neurológica realmente aumenta muito o risco de a pessoa ter depressão e depois cometer suicídio”.

Coordenador do Grupo de Neuropsiquiatria do Instituto de Psiquiatria da USP, o psiquiatra Renato Luiz Marchetti lembra que a esclerose múltipla é mais conhecida pelo comprometimento motor, mas também tem um componente hereditário e pode ter manifestações psíquicas associadas, que vêm e vão. “Não dá pra descartar. Podem ser compatíveis com o problema que ele tinha”, afirma.

O médico explica que a esclerose múltipla é uma doença autoimune do sistema nervoso com causa biológica “grosseira”, que aparece em exames, diferentemente de outras enfermidades psiquiátricas que apresentam sintomas, mas não são visíveis numa ressonância magnética do cérebro ou num eletroencefalograma, por exemplo. “Na esclerose múltipla é possível ver uma placa que se deposita em determinada região do cérebro. Qual? Qualquer uma. Dependendo do lugar onde estiver, o sintoma vai ser diferente. Podem ser sintomas visuais, ou de deglutição, ou de dificuldade de equilíbrio, ou uma apresentação psíquica. Transtornos de humor também podem ocorrer em pacientes de esclerose múltipla.”

Relação de medicamentos encomendadas para Santos-Dumont na Pharmacie Moderne. REPRODUÇÃO Marchetti explica que, com o passar dos anos, a tendência é de que as manifestações se agravem, mas hoje existe um conjunto de drogas que modulam a reação imunológica do corpo da pessoa para evitar essa progressão. “Na época de Santos-Dumont, no entanto, ainda não havia tratamento psiquiátrico nem neurológico.”

Sem alternativas concretas de cura, o inventor recorreu a várias clínicas na Europa, como a de Valmont, na Suíça. O embaixador Camillo de Oliveira narra em seu Diário que em dezembro de 1926 foi passar férias no local e encontrou o inventor. “Achei-o envelhecido. Via-se que estava pagando o preço do grande desgaste nervoso que lhe custaram as suas arriscadas experiências”, relata, acrescentando que nos dias de mau tempo, sem paciência para bridge ou xadrez, Santos-Dumont costumava dedicar-se à encadernação. “Montou para isso uma espécie de oficina, num quarto junto ao seu dormitório. Ali se distrai, já com perícia, fazendo encadernações em ‘marocain’ ou vitela. Vê-se que as suas aptidões manuais continuam intactas. É muito popular no sanatório, onde todos lhe querem bem e lhe chamam de Monsieur Santôs.”

Galeria: Na clínica de Valmont

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Em 1927, Camillo de Oliveira voltou à clínica e deparou-se novamente com o aviador. “Estou de novo em Valmont, onde ainda encontro Santos-Dumont, que já vai ao que parece pelo segundo ano nesta clínica. Ontem, tive uma visita inesperada. O chefe da clínica, professor Wittmer, veio procurar-me e me disse: ‘Sabemos que o senhor faz boa liga com M. Santôs. Será talvez o único homem em condições de dar-lhe conselhos, sem suscetibilizá-lo. Nós entendemos que é de sua conveniência sair daqui por algum tempo. Se bem a presença dele nos seja muito grata, acreditamos ser nosso dever observar que a sua longa clausura aqui pode lhe ser prejudicial, ao criar nele um sentimento de temor da vida lá fora. Afinal M. Santôs não é um inválido. Mais tarde, se quiser voltar, será bem vindo’.”

Camillo de Oliveira fala então da sugestão que fez a Santos-Dumont de sair para rever Paris e aproveitar a “season” de teatros, concertos e exposições de arte. “Eu, em seu lugar, meu caro amigo, chamaria o Jorge e iria ver se, por acaso, o Arco do Triunfo continua na Étoile. Pense que está aqui há muito tempo e já descansou bastante.” Santos-Dumont não comentou a proposta, mas dois dias depois disse ao embaixador que escreveria ao sobrinho para ir buscá-lo.

De acordo com documentos da clínica, Santos-Dumont permaneceu em tratamento no local por três períodos: entre 20 de julho e 29 de setembro de 1925, de 27 de julho a 22 de dezembro de 1926, com uma breve interrupção no dia 29 de setembro, e entre 22 de janeiro e 4 de abril de 1927.

Na opinião de Gallucci Neto, esse tipo de internação longa denota uma dependência grave. “Quando você não trata uma doença psiquiátrica, que era o que acontecia na época, ela fica crônica e a pessoa pode ficar incapacitada”, resume.

Carta enviada por Santos-Dumont à irmã Virgína contando que havia tentado se suicidar a bordo do Lutetia em 1931. REPRODUÇÃO Santos-Dumont se matou na terceira tentativa. A primeira teria ocorrido numa clínica na Europa; a segunda aconteceu a bordo do vapor Lutetia, quando voltava ao Brasil. Em 3 de junho de 1931, horas após ser impedido de cometer suicídio pelo sobrinho Jorge Dumont Villares, que o acompanhava na viagem, ele escreveu sobre o assunto numa carta dramática aos parentes:

“Minha irmã Virgínia et minha família. Ainda hoje de manhã eu quis me suicidar e foi o Jorge que me salvou. Esta é a pura verdade. Se em uma próxima vez eu me suicidar a culpa é toda minha. Eu não posso mais com esta vida. Seu irmão
Alberto Santos Dumont”

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