FAMÍLIA VAI PUBLICAR LIVRO INÉDITO DO INVENTOR

No início do século passado, Santos-Dumont escreveu à mão 312 páginas em francês que resgatam o início da história do voo humano, dos mitológicos Ícaro e Dédalo até outubro de 1901, quando ele deu a volta na Torre Eiffel e provou que a dirigibilidade dos balões era um sonho possível. O livro, porém, nunca foi publicado. Agora, a família do inventor busca patrocínio para fazer duas edições: uma de luxo, com a reprodução dos manuscritos originais, e outra tradicional.

“Santos-Dumont começa no sonho do homem de voar e vai até o dirigível. Não é um livro técnico, e sim conta a história dos primeiros que ascenderam com determinado tipo de balão”, conta Alberto Dodsworth Wanderley, sobrinho-bisneto do inventor que em 2004, logo após a morte de sua mãe, encontrou as folhas numa gaveta do arquivo de seu pai.

O material fazia parte do lote que passou décadas esquecido no porão do casarão da Praia do Flamengo, mas foi guardado separadamente dos documentos doados ao Centro de Documentação da Aeronáutica. Ao longo do tempo, 15 páginas se perderam.

Dividido em 13 capítulos, o livro inédito mostra que Santos-Dumont não só sabia o que outros pioneiros haviam feito antes dele como traz comentários sobre as descobertas mais importantes da aeronavegação. Curiosamente, o inventor não deu um nome ao livro, mas batizou os capítulos de maneira didática. No primeiro, Como me Tornei um Aeronauta, descreve poeticamente a influência do país natal sobre sua carreira:

“No Brasil, onde nasci em 20 de julho de 1873, o céu é tão belo, os pássaros voam tão alto e planam tão à vontade sobre as grandes asas estendidas, as nuvens sobem tão alegremente na pura luz do dia, onde se deitam tão languidamente, na atmosfera embalsamada das noites, que basta levantar os olhos para ficar amante do espaço e da liberdade. (...). Quando se pensa que basta elevar-se algumas jardas sobre o solo para estar acima de todos os obstáculos, ao abrigo de todos os perigos que ameaçam embaixo os pedestres, para visitar, sem fadiga, embalado em uma cesta, os panoramas infinitamente variados deste rico país, parece-me que se torna necessariamente um aeronauta. Esse foi ao menos meu caso.”

Pela ordem dos capítulos, depois vêm Aeroestação Mitológica, A Primeira Montgolfière, O Primeiro Balão a Hidrogênio, A Primeira Viagem Aérea, A Primeira Viagem em Balão de Hidrogênio, A Primeira Ascensão Marítima, Os Primeiros Balões Militares, Os Primeiros Mártires da Aeroestação, O Primeiro Balão Movido por uma Máquina a Vapor, O Primeiro Balão Acionado a Força Humana, O Primeiro Balão Acionado por um Motor Elétrico e As Primeiras Aeronaves a Petróleo.

Santos-Dumont não datou o livro, mas aborda fatos ocorridos do século 18 aos primeiros anos do século 20. Além de falar sobre o Prêmio Deutsch, de 1901, ele menciona conversa no ano seguinte nos Estados Unidos com Thomas Edison, inventor da lâmpada.

“No encontro que tive em abril de 1902, em Menlo Park, o grande inventor americano teve a graciosidade de me prometer o primeiro exemplar de sua bateria, aço e níquel, para a ignição do motor a petróleo de minha nova aeronave. Nessa ocasião, ele me disse que, apesar dos aperfeiçoamentos que recebeu a bateria, ela está ainda muito pesada para fornecer sob um peso aceitável a energia capaz de acionar praticamente um motor elétrico para a aeronave. ‘O senhor fez bem’, acrescentou ele, ‘de escolher o motor a petróleo; é o único com o qual um aeronauta pode sonhar, no estado atual da indústria. Os balões que foram experimentados nos últimos 20 anos não poderiam conduzir a nenhum bom resultado.’”

Santos-Dumont foi pioneiro no uso do motor a petróleo nos dirigíveis, prática considerada uma loucura por muitos na época já que o hidrogênio é muito inflamável e os motores soltavam fagulhas.

À medida que relata os fatos, o inventor dá sua visão sobre os episódios vivenciados pelos pioneiros. No capítulo A primeira Montgolfière, comenta que “no domínio das ciências experimentais não é raro que uma teoria falsa oriente o caminho para as mais belas descobertas, que quase sempre são fruto de uma pesquisa inteligente e obstinada mais do que uma interpretação rigorosamente exata dos fenômenos observados”.

“Foi assim que Galvani, apoiando-se numa teoria falsa, foi levado à descoberta da eletricidade dinâmica e vitoriosamente combatido por Volta, que, por sua vez, substituindo uma teoria falsa por outra não menos falsa, foi levado ao maravilhoso invento da pilha”.

Santos-Dumont também se preocupava em transcrever atas, correspondências e outros documentos que servissem como registros oficiais das primeiras ascensões. “Por meio dessas narrativas e transcrições, pode-se avaliar o quão heroico eram esses feitos numa época em que o conhecimento científico disponível era tão rudimentar”, analisa Alberto.

Um exemplo está no capítulo Os Primeiros Balões Militares.

“Para o enchimento dos primeiros aerostatos militares Contrelle construiu um enorme forno de tijolo cuja chama aquecia grossos tubos metálicos, fechados nas extremidades e cheios de limalha de ferro previamente desoxidadas. Um lavador esfriava o gás e um filtro contendo uma solução de cal absorvia o ácido carbônico proveniente da impureza do ferro. Um fogo vivo de gravetos aquecia os tubos até ficarem brancos. Uma caldeira fornecia o vapor que oxidava limalha nos tubos e o hidrogênio desprendido, depois de esfriado e depurado, se acumulava no balão... Para encher um balão de 19 pés de diâmetro era preciso carregar o aparelho com 2.200 libras de ferro para oxidar e esse processo exigia mais ou menos dois dias de trabalho incessante”.

Já no capítulo A Primeira Ascensão Marítima, Santos-Dumont reproduz parte da carta do americano John Joffries, que acompanhou o francês Jean-Pierre Blanchard numa ascensão com balão em janeiro de 1785:

“Quando estávamos a cinco ou seis milhas da costa francesa, como o aerostato se aproximava demais da superfície do mar, meu nobre pequeno capitão me deu ordem de aliviar ao máximo nossa nacele e, juntando palavra à ação, se pôs a arrancar os panejamentos e enfeites de seda que a decoravam. Como esse sacrifício não bastasse, primeiro jogamos fora um remo, depois o outro e posteriormente fui obrigado a desaparafusar nosso molinete, que também teve o mesmo destino. Como nos aproximávamos mais e mais do mar, os marinheiros que nos seguiam de navio começaram a gritar, parecendo alarmados com nossa situação e preocupados com nossa segurança. Decidimos nos desfazer de nossas duas âncoras. Meu pequeno herói tirou então seu paletó e jogou-o fora e não pude deixar de imitá-lo. Feito isso, ele também tirou as calças. Colocamos nossos cinturões de cortiça, achando que logo cairíamos no mar. Felizmente, nesse instante, notamos que o mercúrio do barômetro começava a descer e então nos elevamos a uma altura muito maior que aquela que havíamos atingido antes. (...) Certamente você teria rido ao ver-nos, sem roupas, ambos numa atividade febril ocupados em manobrar.”

Alberto conta que na edição de luxo que a família pretende publicar constará não só a reprodução dos manuscritos como a tradução completa das páginas feita por sua mãe, Sophia Helena. “Minha mãe traduziu todas as páginas e meu pai fez algumas correções técnicas à mão”, revela.

Segundo Fábia Schnoor, filha de Alberto e participante do projeto, o objetivo é aproveitar a comemoração dos 110 anos do voo do 14-Bis em 2016 para publicar o livro e dar mais acesso aos inventos, à memória e à história de Santos- Dumont. "Isso sempre esteve dentro dos propósitos dos meus avós na conservação e posterior doação da documentação sobre Santos-Dumont (ao Centro de Documentação da Aeronáutica)", explica.

Além desse livro ainda inédito, o inventor escreveu o Dans l’Air (traduzido no Brasil como Meus Balões ou No Ar), publicado na França em 1904, e O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos, lançado em 1918. Também datilografou em 1929 cerca de 20 páginas em francês com explicações sobre seu Transformador Marciano, ou Conversor Marciano, criação que supostamente facilitava a subida de montanhas por esquiadores. “Obviamente, com a introdução dos teleféricos, esse invento se tornou obsoleto”, lembra Alberto.

Esses escritos, que o inventor batizou de L’Homme Mecanique (O Homem Mecânico), também fazem parte do acervo doado pela família ao Centro de Documentação da Aeronáutica, mas uma tradução para o português foi publicada no livro Os Balões de Santos-Dumont (Capivara Editora), do tenente Rodrigo Moura Visoni.

Capa do manuscrito Homem Mecânico, escrito em francês e dedicado à posteridade. Parte do acervo Memória Itaú. REPRODUÇÃO No final de L’Homme Mecanique, chama a atenção o trecho em que Santos-Dumont revela o quanto lhe custava o ostracismo na época: “Eu peço somente uma coisa: um pouco de reconhecimento, um esquecimento um pouco menos rápido que aquele que sofri no passado. Foi, de fato – posso dizê-lo hoje –, uma prova um pouco dolorosa para mim ver, após meus trabalhos sobre o dirigível e o mais pesado que o ar, a ingratidão daqueles que me cobriam de louros algum tempo antes”.

Inventor colecionava reflexões filosóficas

Outro manuscrito praticamente inédito de Santos-Dumont está sob guarda do Museu Paulista. São 64 folhas soltas, divididas em quatro grupos numerados, escritas entre 1920 e 1921 com citações de filósofos. Há de provérbio árabe e pensamentos de Zoroastro, Cervantes e Luís XIV a reflexões de Diderot, Voltaire e Pascal, passando por Montesquieu, Nietzsche e outros pensadores.

“A maior parte das frases diz respeito a princípios, sabedoria, a uma busca de equilíbrio e ponderação”, analisa Heloisa Barbuy, uma das curadoras do museu. Em sua opinião, a coleta de frases literárias que contêm ensinamentos que possam guiar a vida é algo que pode ser identificado com o contexto cultural em que Santos-Dumont estava inserido. “É possível que isso se ligasse à personalidade dele, mas outras hipóteses também podem ser levantadas”, acrescenta. “Por exemplo, não poderiam ser também frases para se ter na ponta da língua e usar em conversas sociais? Ou simplesmente um exercício de escrita em francês?”

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Alguns exemplos transcritos por Santos-Dumont em 1920:
“Não são os diferentes gêneros de vida que adotamos, mas as diferentes disposições de nossas almas que tornam a vida mais ou menos feliz.” (Plutarco)
“O que quer que você faça, faça-o com um objetivo, faça-o com a extrema exatidão e jamais superficialmente.” (Chesterfield)
“A massa do gênero humano, por alternativas de calma e de agitação, caminha sempre, ainda que a passos lentos, para uma maior perfeição.” (Turgot)
“Somos todos escravos das leis, a fim de podermos viver em liberdade.” (Cícero)
“O trabalho afasta de nós três grandes males: o fastio, o vício e a necessidade.” (Voltaire)
“Uma das coisas mais preciosas e mais difíceis da vida é dar consolo.” (Alexandre Dumas Filho)
“Você se alegra com sua vida se fizer bom uso dela.” (Ernest Renan)
“A palavra que você retem entre seus lábios é sua escrava; aquela que você pronuncia de maneira inoportuna é sua mestra.” (Provérbio árabe)
“Não existe para o homem uma verdadeira infelicidade que é cometer uma falta e ter alguma coisa a se recriminar.” (La Bruyère)
“A preguiça é uma sereia perigosa , é preciso evitá-la.” (Horácio)
“O erro não é a cegueira; o erro é a covardia.” (Friedrich Nietzsche)
“A felicidade que não se modera destrói a si mesma.” (Sêneca)
“Não contente de ser justo, não permitas a injustiça.” (Focílides)
“Uma lealdade simulada é um punhal escondido.” (Luís XIV)


Exposições inéditas lembrarão Santos-Dumont em 2016

Pelo menos duas grandes exposições vão falar sobre Santos-Dumont em 2016, data em que o histórico voo do 14-Bis completa 110 anos. Em São Paulo, o Instituto Itaú Cultural vai apresentar pela primeira vez peças que pertenceram ao inventor e fazem parte da Coleção Brasilianas. No Rio, o Museu do Amanhã, que deve ser inaugurado em novembro deste ano, apresentará Santos-Dumont – O Grande Visionário Brasileiro.

A exposição do Museu do Amanhã terá curadoria de Gringo Cardia e abordará o caráter inventivo e futurista do inventor. A ideia é fazer o público mergulhar no percurso de criação e desenvolvimento dos aviões, do 14-Bis à Demoiselle. Para isso, ambientes audiovisuais interativos, projetos e desenhos originais, réplicas de inventos, reconstituições cenográficas, filmes do aviador e centenas de fotografias vão tomar parte do espaço do museu projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Em construção no Píer Mauá, região portuária da cidade, é uma iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro em parceria com a Fundação Roberto Marinho, responsável por sua concepção e realização.

“Santos Dumont é um inovador no sentido mais atual do termo. Um homem que sempre esteve à frente do seu tempo, não somente no aspecto técnico, mas também politicamente. Além de seus projetos, ele orientou a política aeronáutica no Brasil. E tinha uma visão de mundo abrangente”, lembra a gerente-geral de Patrimônio e Cultura da Fundação Roberto Marinho, Lucia Basto.

No caso da exposição do Itaú Cultural, o trunfo será o acervo de cerca de 600 peças adquiridas pelo banqueiro Olavo Setúbal do colecionador Pedro Corrêa do Lago e nunca mostradas ao público. São livros, documentos pessoais, correspondências, objetos. Chama a atenção, entre outros itens, a edição em francês das Viagens Extraordinárias, de Julio Verne, o escritor predileto de Santos-Dumont quando menino. Dizem os biógrafos que foi por meio de aventuras como Cinco Semanas em um Balão e Viagem ao Centro da Terra que ele tomou gosto pela ciência e pela aeronavegação.

Galeria: Papéis e Inventos

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O acervo ainda reúne luneta, binóculo, declarações de rendimentos, cópias de discursos e Impostos de Renda, documentos sobre a compra de jazigo familiar no Cemitério São João Batista, no Rio, e um telegrama da princesa Isabel, apresentada como condessa d’Eu, felicitando Francisca, mãe de Santos-Dumont, pelos feitos do filho.

A analista do acervo do Itaú Cultural Angélica Pompilio de Oliveira lembra que também estão no Memória Itaú patentes de duas invenções curiosas de Santos-Dumont: o Conversor Marciano – ou Transformador Marciano –, criado para ajudar esquiadores a subir as montanhas numa época pré-teleférico, e um dispositivo a ser usado em corrida de cachorros.

De acordo com Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, a ideia é celebrar os 110 anos do 14-Bis com uma exposição que começará em São Paulo e depois passará dois anos viajando por diferentes regiões do Brasil. “O plano é que seja interessante tanto para pesquisadores e pessoas que já conhecem a obra de Santos-Dumont quanto para um jovem que só ouviu falar dele na escola e poderá vivenciar suas invenções.”

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