O INVENTOR DO AVIÃO, E SÓ

Alberto Santos-Dumont é um nome que muitos brasileiros conhecem, mas a maioria da população pouco sabe sobre ele além de que inventou o avião. Para especialistas, a criação da figura do pai da aviação, do herói que levou o nome do País para o mundo, acabou mais o distanciando do que o aproximando dos brasileiros.

“O Santos-Dumont que chegou à escola brasileira foi fabricado pela política fascista do Estado Novo. Aí o mito do pai da aviação pegou e ficou desinteressante e chato”, diz o escritor Márcio Souza. “Mas Santos-Dumont não teve nada de chato. Ele foi do playboy que tirava racha de automóvel no Bois de Boulogne ao aileron (peça inventada pelo aviador brasileiro que, instalada na asa, ajuda a controlar o movimento da aeronave e até hoje é usada). Criou o check-in, o hangar, o nome aeroporto.”

“Santos-Dumont não foi herói, não foi pai da aviação. Ele era um cientista, autodidata, pioneiro do design”, completa o artista plástico Guto Lacaz, curador da exposição Santos=Dumont Designer em 2006 e 2009 e integrante de um fã-clube do aviador.

Sobrinho-bisneto do inventor, Marcos Villares Filho lembra que não é só Santos-Dumont que sofre de um certo desconhecimento. “Acontece isso com outros brasileiros importantes também. O País não cuida muito de sua história. É contraditório: hoje com a internet você tem todas as informações à mão, mas as pessoas continuam não sabendo, ou sabem muito superficialmente.”

Para Henrique Lins de Barros, um dos maiores especialistas em Santos-Dumont, esse desconhecimento tem de ser revertido com um trabalho de longa duração. “Não se muda com uma entrevista ou um livro uma opinião sedimentada por vários livros e várias entrevistas”, acredita.

Henrique vê com bons olhos, no entanto, a divulgação de documentos que em sua opinião desmistificam a figura do pai da aviação. “Cria-se no governo Vargas essa figura do herói que é puro, não tem erros e além disso tem nome Santos. Não era nada disso: além das qualidades, ele também tinha defeitos e trabalhava como um louco como a maioria das pessoas. Essa humanização pode reaproximar Santos-Dumont dos brasileiros.”

A tecnologia é outra arma. “A digitalização permite disponibilizar os diferentes acervos para pesquisadores e para o público em geral. Acredito que a gente vá ter surpresas, associado a um movimento de redescoberta da história nos últimos anos.”

Irmãos Wright. Com argumentos e sem radicalismos, Henrique também acha possível e necessário resgatar a primazia do voo de Santos-Dumont em relação ao dos irmãos Orville e Wilbur Wright. E o argumento é simples: enquanto o brasileiro decolou sem auxílio externo em 1906 diante de centenas de pessoas e de uma comissão do Aeroclube da França previamente convocada para atestar a legitimidade do voo e segundo regras estabelecidas pela Federação Aeronáutica Internacional, criada um ano antes, os americanos dizem ter voado em 1903, mas sem testemunhas credenciadas e com auxílio de trilhos, ventos e catapulta. Preocupados em serem copiados antes de ganharem dinheiro com sua máquina, eles se recusavam a mostrá-la à imprensa, ao contrário de Santos-Dumont, que sempre teve todos os seus inventos registrados.

O próprio Santos-Dumont falou do tema em seu livro O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos: “Em 23 de outubro, perante a Comissão Científica do Aero Club e de grande multidão, fiz o célebre voo de 250 metros, que confirmou inteiramente a possibilidade de um homem voar. (...) Um público numeroso assistiu aos primeiros voos feitos por um homem, como tais, reconhecidos por todos os jornais do mundo inteiro. Basta abri-los, mesmo os dos Estados Unidos, para se constatar essa opinião geral. Podia citar todos os jornais e revistas do mundo, todos foram, então, unânimes em glorificar ‘esse minuto memorável na história da navegação aérea’. No ano seguinte o aeroplano Farman fez voos que se tornaram célebres; foi esse inventor-aviador que primeiro conseguiu um voo de ida e volta. Depois dele, veio (Louis) Blériot e só dois anos mais tarde é que os irmãos Wright fazem os seus voos. É verdade que eles dizem ter feito outros, porém às escondidas”.

O aviador brasileiro continua: “Eu não quero tirar em nada o mérito dos irmãos Wright, por quem tenho a maior admiração; mas é inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos. Logo depois dos irmãos Wright, aparece (Léon) Levavasseur com o aeroplano Antoinette, superior a tudo quanto, então, existia (...) O que diriam (Thomas) Edison, Graham Bell ou (Guglielmo) Marconi se, depois que apresentaram em público a lâmpada elétrica, o telefone e o telégrafo sem fios, um outro inventor se apresentasse com uma melhor lâmpada elétrica, telefone ou aparelho de telefonia sem fios dizendo que os tinha construído antes deles?!

A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar? Às experiências dos irmãos Wright, feitas às escondidas (eles são os próprios a dizer que fizeram todo o possível para que não transpirasse nada dos resultados de suas experiências) e que estavam tão ignoradas no mundo, que vemos todos qualificarem os meus 250 metros de ‘minuto memorável na história da aviação’, ou é aos (irmãos Richard, Henri e Maurice) Farman, (Louis) Blériot e a mim que fizemos todas as nossas demonstrações diante de comissões científicas e em plena luz do sol?”

Para Lins de Barros, um termo é crucial na discussão: o de que Santos-Dumont voou primeiro “dentro dos critérios da época”. Ou seja: decolando por meios próprios, sem ajuda externa, num voo agendado com antecedência, diante de uma comissão idônea. Realizar curvas no ar e pousar sem acidentes também eram desejáveis.

“Isso depois foi retirado. Até o fim da 2.ª Guerra, as literaturas francesa, inglesa e americana falavam de um jeito de Santos-Dumont. O voo de 12 de novembro de 1906 é o primeiro recorde da aviação reconhecido pela Fédération Aéronautique Internationale (FAI) que tinha representantes de vários países – França, Inglaterra, Estados Unidos. Depois, os americanos passaram a dizer que ele foi o primeiro a voar na Europa e com uma máquina feia e estranha”, conta.

VÍDEO Cenas do voo do 14-Bis. ACERVO MUSEU AEROESPACIAL

Em A História do Brasil nas Ruas de Paris (Casa da Palavra), Maurício Torres Assumpção defende em seu capítulo sobre “Le Petit Santôs” que “nada se inventa, tudo evolui” e Santos-Dumont foi um colaborador na evolução da navegação aérea, assim como Clément Ader, o conde Zeppelin, os irmãos Wright e todos os outros que participaram da aventura. “Ele fez parte de uma geração de bravos que botava a cabeça para funcionar e arriscava o pescoço testando suas ideias na prática. Mais importante do que debates pueris sobre a paternidade deste ou daquele invento, Santos-Dumont fez pela imagem do Brasil no mundo o que, até então, nenhum outro brasileiro jamais sonhara: associou o nome “Brasil” à engenhosidade, à audácia e à perseverança.”

Le Petit Santôs na Paris de hoje

Um ano após sua morte, Santos-Dumont virou nome de rua no 15.º arrondissement de Paris e nela moradores do prédio número 5 pintaram um afresco em homenagem ao inventor. O aviador brasileiro também dá nome à praça em Saint-Cloud onde o Aeroclube da França construiu um Ícaro sobre um pedestal de granito com a efígie do “pioneiro da locomoção aérea”. Derretida pelos nazistas durante a ocupação da França na 2.ª Guerra Mundial, a estátua teve uma réplica reinstalada no local anos depois do fim do conflito. Outro monumento em homenagem ao inventor brasileiro permanece em Paris no lado sul do Campo de Bagatelle. Um monólito de quatro metros de altura comemora em francês o histórico voo do 14-Bis. “Aqui, em 12 de novembro de 1906, sob o controle do Aeroclube da França, Santos Dumont estabeleceu os primeiros recordes da aviação mundial. Duração: 21 segundos. Distância: 220 metros.”

Segundo o livro A História do Brasil nas Ruas de Paris, de Maurício Torres Assumpção, todo fim de semana pais e filhos prestam uma homenagem involuntária a Santos-Dumont. “São aeromodelistas que fizeram do espaço em frente ao monólito o campo de provas dos seus pequenos aviões. Naquele gramado, eles decolam e aterrissam aos saltos e solavancos, como fez o 14-Bis há mais de cem anos.” O hangar onde o brasileiro construiu o “mais pesado que o ar” ganhou uma placa de mármore comemorativa. Instalado no número 85 do Boulevard du Général-Koening, em Neuilly-sur-Seine, no subúrbio de Paris, lê-se: “Foi aqui que Santos-Dumont criou seu aeroplano 14-Bis”.

Já o restaurante La Grande Cascade, onde Santos-Dumont aterrissou algumas vezes com seu dirigível número 9, a Baladeuse, para almoçar com amigos, continua aberto no Bois de Boulogne. Assim como o Maxim’s, na Rue Royale, onde ele bateu cartão por muitas noites.

Também com a Baladeuse, o inventor causou furor em Paris ao estacionar perto de seu apartamento, na Avenue des Champs Elysées, para tomar café. Foi na madrugada de 23 de junho de 1903. Com 12 metros de comprimento por 5,5 de diâmetro e 220 metros cúbicos de hidrogênio, o dirigível acabou cercado por curiosos tão logo o dia clareou. “Cem anos depois”, diz Maurício em seu livro, “inaugurou-se ali a placa de mármore que celebra essa escala de Santos-Dumont para tomar um cafezinho em casa”.


O pai da aviação nas salas de aula

Mudar a forma como se ensina sobre Santos-Dumont nas escolas também é fundamental, na opinião de especialistas. O Estado conversou com alunos do 5.º ao 9.º ano que visitaram no dia 7 de julho a Encantada, casa que o inventor construiu em Petrópolis e hoje funciona como museu. A maioria menciona o 14-Bis, alguns o relógio de pulso, mas a confusão é regra entre as declarações.

“O que eu sei de Santos-Dumont? Que ele inventou o 14-Bis. Fez 13 tentativas antes de conseguir e na 14.ª deu certo”, diz Yasmin, uma aluna carioca de 10 anos. “Sabia do 14-Bis, daquele balão que ele fez e eu esqueci o nome”, conta Aline Soto, de 18.

As monitoras da casa-museu já estão acostumadas. “Sempre tem um aluno mais interessado, mas infelizmente a grande maioria não tem noção da grandiosidade da vida dele. O que a gente recebe na escola é muito superficial, não se conta em detalhes a rica história de Santos-Dumont, não se diz que ele resolveu o problema da dirigibilidade dos balões, que ele ganhou um prêmio importante, que com a Demoiselle impulsionou a aviação, que fez o motor de cilindros opostos até hoje usado na aviação”, lamenta a animadora cultural do museu, Andrea Almeida.

Na geração do vídeo e das selfies, a visita ao museu inclui tirar várias e várias fotos. Para captar a atenção dos jovens, é preciso investir em recursos visuais e interativos. “Ao ver o vídeo sobre a história de Santos-Dumont, alguns às vezes se emocionam. Esse momento é gratificante, quando você vê que está conseguindo mostrar a vida de Santos-Dumont”, diz Andrea. “Às vezes a pessoa vem só para visitar, mas quando você explica ela se interessa”, completa Ana Carolina Maciel Vieira, museóloga da Fundação de Cultura e Turismo de Petrópolis.

“Eles estão mais ligados na questão visual. O vídeo gerou bastante interesse, prestaram mais atenção nele do que dentro da casa”, confirma Maria Fernanda Müller, professora de História da Escola Modelo do Grajaú, do Rio, que foi com 40 alunos do 6.º ao 9.º ano visitar Petrópolis. Além da Encantada, eles conheceram outras atrações da cidade.

Segundo Maria Fernanda, os alunos ouvem sobre Santos-Dumont em sala de aula quando estudam “o período da 1.ª e da 2.ª Guerras”. Ela também aborda nas aulas a “rixa com os Estados Unidos, a questão da disputa sobre quem criou o avião, se Santos-Dumont ou os irmãos Wright. “A gente fala mais de questões militares e de tecnologia e acaba falando dele”, conta. Em seguida, emenda: “Ah, vou ficar numa saia-justa: não falo muito dele”.

Na visita à Encantada, Maria Fernanda diz que notou um sentimento de orgulho nos alunos quando ouvem que foi um brasileiro que inventou o avião. “Eu como professora de História sinto muito nas aulas uma síndrome de vira-lata”, diz. “Fiquei pensando que talvez seja mais importante falar desses heróis. Não vou ficar jogando confete em Dom Pedro II, em políticos. Mas há personagens populares – não só inventores – que fizeram a história do Brasil. É importante essa valorização, mas não só com a visão tradicional da história.”

Professora de História e Português do Colégio Alemão Cruzeiro, também do Rio, Luiza Helena Diogo Ramos visitou a Encantada com 73 alunos do 5.º ano e outros docentes. “Estamos trabalhando o período imperial e o início da República e eles estão conhecendo Petrópolis”, conta. “Ensinamos sobre Santos-Dumont no início da República. Falamos da educação mais refinada, dos costumes da época, das inovações dele.”

VÍDEO Professora fala sobre o ensino de Santos-Dumont na sala de aula

Segundo a Assessoria de Imprensa do Ministério da Educação, não há nenhuma orientação sobre como falar de Santos-Dumont em sala de aula e as redes de ensino têm autonomia para decidir de que maneira esse e outros temas específicos devem ser ensinados aos alunos.

No exterior. Para o brigadeiro Márcio Bhering Cardoso, diretor do Museu Aeroespacial, que guarda réplicas da Demoiselle e do 14-Bis e uma sala dedicada a Santos-Dumont, um desafio ainda maior do que o de aumentar o conhecimento dos brasileiros sobre o pai da aviação é torná-lo conhecido no exterior.

“O Brasil tem DNA de aviação porque Santos-Dumont nasceu aqui. Acredito que dentro do País ele é muito conhecido. Talvez não com detalhes, mas todas as crianças sabem, existem praças, escolas, aeroporto. Nós precisamos divulgar fora do Brasil.”

Segundo ele, foram feitas algumas doações de réplicas do 14-Bis para instituições de outros países, como o Musée de l’Air et de l’Espace, da França, e o Museu do Ar, de Portugal. “A questão é nossa”, continua o brigadeiro. “Temos de usar a mídia para divulgar os feitos de Santos-Dumont.”

Brigadeiro Márcio Bhering Cardoso, diretor do Museu Aeroespacial, fala sobre Santos-Dumont e os irmãos Wright

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