Pérola em sessão de estimulação visual na Fundação Altino Ventura, em Recife

As viagens de Pérola

Moradora de Betânia, cidade no sertão pernambucano, menina precisa viajar 400 quilômetros para fazer tratamento, e ainda enfrenta a recusa da prefeitura em fornecer o transporte

Pérola tinha dois dias de vida quando os médicos descobriram que a infecção pelo vírus zika tinha prejudicado também os dois olhinhos da menina. Não bastasse ser uma das vítimas da microcefalia, confirmada pelos 30 centímetros de perímetro cefálico medidos logo após seu nascimento, em setembro de 2015, a bebê gordinha de cabelos arrepiados receberia meses depois o diagnóstico de hipermetropia, fotofobia e baixa visão. Teria que, desde cedo, usar óculos e passar por sessões de estimulação visual.

Mas para a dona de casa Marcione Gomes da Rocha, de 29 anos, pior do que descobrir que a filha pouco enxergava foi perceber que, até hoje, um ano depois do parto de Pérola, quem tinha a obrigação de se importar com a menina finge não vê-la.

Conheça os efeitos da infecção por zika na saúde da criança

A bebê parece ficar invisível toda terça-feira. É justamente quando ela precisa do transporte para levá-la de Betânia, cidade do sertão pernambucano onde a menina mora com os pais e os dois irmãos, até Recife, onde ela passa pelo tratamento de reabilitação necessário para minimizar os danos provocados pelo zika. Quatrocentos quilômetros separam as duas cidades.

Tão desgastante quanto a viagem de seis horas é a luta de Marcione para conseguir junto à prefeitura de Betânia um carro que a leve até a capital. Pelas regras do SUS, o município é obrigado a custear o transporte de moradores que precisam se deslocar para outras cidades em busca de tratamento. A norma, porém, não tem sido seguida à risca no caso de Pérola. “Eles fazem de conta que a minha filha não existe”, disse Marcione em abril, na primeira entrevista que deu ao Estado, já em tom de revolta e cansaço, sem saber muito bem a quem recorrer.

Em Betânia, município de 12 mil habitantes com um dos menores índices de desenvolvimento humano de Pernambuco, não há centro de reabilitação para pacientes com as condições de Pérola. Nas cidades vizinhas mais populosas, as unidades de saúde do tipo começaram a ser estruturadas meses depois do início da epidemia, quando Marcione já tinha ido à capital buscar tratamento para a filha.

maio/2016
Marcione e Pérola, aos sete meses, na rua de casa, em Betânia
outubro/2016
Já com um ano, a menina espera com a mãe sessão de fonoaudiologia na Fundação Altino Ventura, em Recife

Desde os quatro meses de vida, quando conseguiu uma vaga na AACD de Recife, Pérola precisa estar no centro médico todas as terças-feiras, pontualmente às 9 horas, para participar de sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapias em grupo com outras crianças. Se faltar e não justificar, pode perder a vaga.

Por isso, Marcione costuma ligar para a prefeitura de Betânia dias antes das consultas para confirmar se o transporte estará disponível. Do outro lado da linha, muitas chamadas não atendidas e outras tantas com respostas sem definição. “O responsável saiu”, “ligue mais tarde”, “vou ver com a prefeita” são algumas das frases ouvidas por Marcione toda semana. “Até agora, de tanto insistir, tenho conseguido carro para ir, mas, na volta, muitas vezes tenho que me virar”, contou ela, em maio, sem imaginar que a situação ainda iria piorar.

Em uma das viagens feitas na época, quando a menina estava com sete meses, o carro da prefeitura não apareceu para buscá-las em Recife. Marcione teve, então, que pegar um ônibus na capital até uma cidade próxima de Betânia - não há coletivo direto entre os dois municípios - e ficar esperando de madrugada, na beira da BR-232, com Pérola no colo, a chegada do marido para resgatá-las.

Na semana seguinte, em viagem acompanhada pela reportagem, a prefeitura até mandou um carro para buscar mãe e filha, mas o veículo só saiu de Recife cerca de duas horas depois do fim do tratamento de Pérola. A prefeita de Betânia, Eugênia de Souza Araújo (PSD), quis aproveitar a ida do motorista a Recife para receber um documento. A encomenda chega nas mãos do motorista perto das 19 horas, quando o prédio da AACD já estava trancado. Marcione, que tinha saído de casa de casa por volta das 2 horas de terça-feira, retornou à Betânia 24 horas depois, metade delas passadas na estrada.

Marcione espera por mais de duas horas a chegada do motorista da prefeitura de Betânia à AACD de Recife
Pérola e a mãe chegam em casa após sete horas de estrada

Os meses foram passando e o problema do transporte, que Marcione tinha esperança que se resolvesse rapidamente, piorou, principalmente com a chegada das eleições municipais. Problema comum em todo o Brasil, o pleito paralisou alguns serviços na cidade. No mês de setembro, Pérola faltou ao tratamento duas semanas porque não conseguiu carro nem sequer para a viagem de ida. Depois das eleições, com a derrota do grupo político da atual prefeita, a administração municipal ficou ainda mais desinteressada em atender Marcione.

No final de outubro, o Estado acompanhou uma das tentativas frustradas da mãe em conseguir o transporte para levar a filha para o tratamento. Marcione começou a ligar às 10 horas da segunda-feira para a prefeitura em busca de uma resposta. Ao longo do dia, foram mais de dez ligações. Até o celular da prefeita foi acionado, em vão. Só caixa postal.

“Se pelo menos me dessem uma resposta logo, de que não vai ter carro hoje, eu me programava para tentar ir de outro jeito, mas ficam enrolando”, reclamou.

Já à noite, sem nenhum retorno, até a reportagem entrou em contato com a prefeitura, tentando entender o porquê do problema que se arrasta há um ano. “Eu sempre tento ajudar a Marcione e ela ainda vem colocar jornalista para me ligar?”, respondeu ao Estado, num tom mal educado, um dos funcionários da administração, como se estivesse fazendo um favor para a família de Pérola quando fornece o transporte.

Marcione, Manoel e Pérola vão de moto para laboratório de Betânia realizar exame de sangue

Cada vez que a prefeitura deixa de dar carro para a menina, Marcione e o marido, o agricultor Manoel Fernandes Alves, de 42 anos, se veem num dilema: ou a menina perde o tratamento ou eles desfalcam ainda mais o orçamento para conseguir pagar os R$ 98 da passagem de ônibus até Recife, valor pesado para a família que tem pouco mais de salário mínimo como renda mensal.

Com a chegada de Pérola, a dona de casa deixou de trabalhar e, para sustentar a bebê e os outros dois filhos, Henzo, de 6 anos, e Clara, de 10 anos, a família conta apenas com os R$ 800 que o marido ganha com as atividades de motorista de van escolar e agricultor mais os cerca de R$ 200 que Marcione recebe pelo programa Bolsa Família. “Já teve vez que a gente teve que pegar dinheiro emprestado para eu poder voltar de Recife”, conta ela.

No mês de setembro, uma boa notícia. A família começou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), valor pago pelo governo federal a pessoas com deficiência cuja renda familiar per capita é de até R$ 220. Mas logo no primeiro mês, o dinheiro já teve de ser usado para tapar um buraco. Também por causa “dos rolos da política”, como eles chamam o processo eleitoral, Manoel deixou de receber o salário de motorista de van escolar. Contratado da prefeitura para transportar as crianças moradoras da zona rural para a escola, desde agosto ele não recebe o pagamento.

“Antigamente dava para viver só das coisas da roça, mas agora não dá mais, faz seis anos que não chove. De vez em quando a gente vende uns porcos, uns cabritos, mas é difícil os bichos vingarem sem água, eles ficam sem ter o que comer”, diz Manoel.

Com salário de motorista atrasado há três meses, o pai de Pérola vende porcos e cabritos para conseguir sustentar a família

Foi também na época das eleições que a prefeitura de Betânia resolveu fechar a casa de apoio que mantinha em Recife para pacientes da cidade que faziam tratamento na capital e precisavam de um alojamento. Desde junho, quando Pérola iniciou tratamento também às quintas na Fundação Altino Ventura, ela e a mãe se hospedavam no local. Com o fechamento da casa, as duas têm ficado na casa de conhecidos.

Marcione não é de desanimar, mas sua rotina tem sido complicada. Além de todo o desamparo governamental e das dificuldades financeiras, a dona de casa foi descobrindo, aos poucos, todas as limitações e problemas trazidos pela síndrome congênita do zika.

Pérola teve a parte motora, visual e auditiva prejudicadas. Aos sete meses, começou a apresentar também os primeiros indícios de crises convulsivas. “Ela dava umas tremidinhas, eu até achava que ela podia estar querendo fazer graça, mandar beijinho, mas, conversando com outras mães, percebi o que estava acontecendo”, conta Marcione. Desde então, Pérola passou a tomar um medicamento antiepilético cuja caixa custa R$ 296 e que está em falta há cinco meses nas farmácias da Secretaria Estadual da Saúde de Pernambuco, que diz estar negociando a compra com o laboratório farmacêutico responsável. Enquanto isso, é a família que tem que bancar.

Os problemas no sistema digestivo, também consequência da microcefalia, exigem que os pais da menina comprem mais remédios. Pérola tem refluxo e prisão de ventre, queixa comum entre famílias com crianças com a má-formação. A deglutição da bebê também precisa ser treinada nas sessões de fonoaudiologia, caso contrário ela tem dificuldades de engolir e pode engasgar. A audição se desenvolve com atraso. Com um ano, Pérola ainda está na fase de detecção de sons do ambiente, habilidade que, em bebês saudáveis, é conquistada antes dos seis meses.

Localizada no sertão nordestino, Betânia, cidade da família de Pérola, está há seis anos sem registrar chuvas significativasGabriela Biló/Estadão
Pérola, aos sete meses, em intervalo da sessão de estimulação precoce na AACD de RecifeGabriela Biló/Estadão
Pérola chora após banho frio, costume em áreas quentes como o sertãoGabriela Biló/Estadão
Manoel cria animais no sítio para conseguir renda extraGabriela Biló/Estadão
Falta de chuva na região dificulta alimentação dos bichosGabriela Biló/Estadão
A microcefalia afetou principalmente a parte motora de PérolaGabriela Biló/Estadão
Henzo, de 6 anos, brinca com a irmã na redeGabriela Biló/Estadão
Filha mais velha de Marcione, Clara, de 10 anos, ajuda a mãe nos cuidados com a bebêGabriela Biló/Estadão
Com um ano, Pérola chora em sessão de estimulação visual na Fundação Altino VenturaGabriela Biló/Estadão
Com dificuldade de deglutição, a criança se alimenta principalmente de leite ou algum alimento bem amassadoGabriela Biló/Estadão

Aos poucos, Marcione foi se acostumando ao tempo da filha, e qualquer avanço, que mal seria notado por pais de crianças saudáveis, é comemorado. Pérola vem melhorando o controle do pescoço, mas ainda não senta nem engatinha. “Antes ela caía para os lados, para frente e para trás. Agora ela já não cai mais para frente, já é uma diferença, né? Eu também ficava triste porque ela não sorria, mas agora ela já consegue”, orgulha-se a mãe, sem deixar de lamentar quantos avanços poderiam ter sido comemorados neste primeiro ano de vida se as condições de tratamento fossem melhores.

“Se eu tivesse dinheiro, ia pagar um plano de saúde para ela poder fazer fisio três vezes por semana, em casa mesmo, sem depender de ninguém, para não quebrar muito a rotina dela”, sonha a mãe, enquanto prepara a mochila para mais uma jornada rumo a Recife.


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