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‘Ficamos prisioneiros de uma
visão obsoleta’

Entrevista
Fernando Haddad (PT)

Prefeito de São Paulo

Por Bruno Ribeiro

Faixas de ônibus, ciclovias, parklets, redução de velocidade nas Marginais, criação de Zonas Corredores (ZCor) dentro dos Jardins, desativação do Minhocão são todos temas que colocam o prefeito Fernando Haddad (PT) entre o amor e o ódio dos paulistanos. Diante de protestos e elogios, ele diz que “mudou o conceito de cidade”. “Um lugar onde você tem transporte público, ciclovia, arborização, calçadas largas”, afirma o prefeito, sobre sua concepção de cidade. Aos críticos, diz: “Ficamos prisioneiros de uma visão obsoleta.”

Estado - O senhor toca uma série de ações com impacto na mobilidade urbana, como ciclovias, faixas exclusivas de ônibus e até parklets. Por que o senhor quis executar essas medidas?

Fernando Haddad: São Paulo, na sua construção, foi marcada por uma visão rodoviarista, a ideia de que seria possível construirmos uma malha viária para o transporte motorizado individual. Isso se mostrou uma ficção, não só no Brasil, mas em locais com uma malha metroferroviária maior, como Moscou, Paris, Nova York, Londres. O mundo todo migrou para uma visão de ‘desrodoviarizar’ as cidades, transformá-las tanto quanto possível em um parque. Um lugar onde você tem transporte público, ciclovia, arborização, calçadas largas. Ou seja, mudou o conceito de cidade. Em São Paulo, isso não aconteceu. Ficamos prisioneiros de uma visão obsoleta, um pouco também influenciados pelos interesses corporativos de grandes obras, túneis, viadutos, que demonstraram ser ineficazes.

Estado - Duas ações recentes tentaram dar essa cara de “parque” à cidade: o fechamento da Avenida Paulista na inauguração da ciclovia e o fechamento do Minhocão aos sábados. Não existe um conflito entre as atividades de lazer e a função dessas vias como rotas viárias importantes?

Haddad: A demanda que cresce na cidade de São Paulo é por áreas de lazer. Se pudermos ter ao menos uma área de lazer por subprefeitura, penso que vai melhorar a convivência das pessoas. Os espaços comunitários precisam ser fortalecidos. As pessoas precisam se encontrar mais. O que fizemos? São 120 praças com Wi-Fi. Não é só o acesso à internet que é importante, porque isso ela pode fazer de casa. É para ela ir ao lugar. Qualidade de vida, interação, encontro entre as pessoas. Vejo praças que estavam abandonadas sendo frequentadas. A velha praça não é mais interessante. A nova praça tem food truck, rede Wi-Fi, aparelhos de ginástica.

Estado - Por que há descontentamento por parte da população? Não faltou diálogo com os moradores antes da instalação das ciclovias?

Haddad: Instalamos um Conselho Municipal de Transporte e Trânsito para avaliar a evolução disso e os ciclistas participaram das decisões. Foram apresentados em audiência pública os planos da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) que datam dos anos 1980. Agora, o pessoal só parou de criticar a faixa exclusiva de ônibus por causa da ciclovia. Mudou de assunto, na verdade. Senão, iriam continuar criticando as faixas exclusivas de ônibus. Foi um ano, de julho de 2013 a julho de 2014, sobretudo os meios de comunicação não pararam de criticar as faixas exclusivas de ônibus. Bastou a gente começar as ciclovias para mudar de assunto. Vamos inventar alguma coisa agora para ver se o pessoal esquece as ciclovias um pouco (risos). Acho que é uma etapa vencida de discussão da cidade.

Estado - As pesquisas de demanda mostram que as bicicletas são um modal importante na periferia, mas a Prefeitura começou a instalar as ciclovias no centro. Por quê?

Haddad: Hoje, há ciclovia em M’Boi Mirim, Sapopemba, São Miguel, Itaim Paulista. Nós estamos inaugurando ciclovia em todo canto da cidade. A malha cicloviária de 400 quilômetros praticamente integrará os 96 distritos. Com 460 quilômetros, você começa a ter uma malha bastante razoável.

Estado - Mas não falta integração com os demais modais? A CPTM e algumas estações de Metrô têm bicicletários. Mas os terminais de ônibus, não.

Haddad: Está sendo feito. Estamos fazendo 18 bicicletários, fora os paraciclos.

Estado - Existe a demanda por esse convívio? O paulistano é conhecido por preferir o conforto do condomínio, o lazer no shopping. O senhor acha que vai mudar isso?

Haddad: Tudo o que estamos fazendo tem a ver com a necessidade de se pensar na cidade como local de encontro. É a partir do encontro que se produz conhecimento, política, arte. É a partir da interação das pessoas. Qual é a vantagem de eu morar em uma cidade e ficar isolado? As grande metrópoles do mundo, à noite, são agitadas. As pessoas saem às ruas, porque tem segurança e iluminação. Tudo o que está sendo feito está sendo pensado para construir essa cidade que se encolheu nos últimos 30 anos. Agora, para tudo isso, obviamente precisa de uma mudança de mentalidade para acontecer.

Estado - Falando, então, das Zonas Corredores, como o senhor espera garantir os benefícios desse seu plano sem degradar os bairros com o aumento do barulho?

Haddad: Ninguém aqui está negando a legitimidade dessa preocupações. A ideia é sentar à mesa e estabelecer regras. Temos de buscar a convergência. Mas tem gente que está disposta a buscar a demarcação, como se não fosse possível resolver as contradições. Nosso objetivo tem sido de conciliar interesses que parecem contraditórios, mas não são.

Estado - O senhor, porém, vem sendo visto como uma pessoa que estimula conflitos, com atitudes e declarações que fomentam a ideia de “nós versus eles”, “elite versus periferia”.

Haddad: Pelo contrário. Vejo a cidade de uma forma só, integrada. Obviamente, dando o que cada um precisa, porque a periferia precisa mais do que o centro.

Estado - Sua gestão reduziu a velocidade máxima nas Marginais. Como garantir segurança no trânsito sem interferir na fluidez dos veículos?

Haddad: Existe uma confusão entre velocidade média e velocidade máxima, que é comum entre o público leigo. A velocidade média aumenta com a redução da velocidade máxima. Aquele trânsito de soluço, em que você acelera e freia, dá uma velocidade média menor do que um fluxo que flui de maneira mais natural. Então, não é verdade que a velocidade média vai cair com uma velocidade máxima menor. Nova York liderou esse processo. Não foi nenhum esquerdista, foi o (Michael) Bloomberg (prefeito entre 2002 e 2013) que fez. A área 40, hoje, é padrão no mundo. Melhora a fluidez, não piora. É o contrário do que o senso comum sugere. É como a faixa exclusiva de ônibus. Melhora o trânsito. Mas isso contraria sua intuição.

Estado - O plano diretor que o senhor aprovou no ano passado prevê a desativação do Minhocão em até 15 anos. Por que o senhor acha que o Minhocão deve ser desativado?

Haddad: Foi uma emenda na Câmara, aprovada por larga margem, e que, penso, vai ao encontro de resgatar um pouco a visão urbanística da cidade. Ninguém faria aquela obra hoje. Não conseguiria licença ambiental. Isso é fruto de um momento ainda da visão que prevaleceu no Brasil até os anos 1970, 1980. Hoje, todo o dinheiro disponível tem de ser investido em transporte público. Essa é a visão moderna. No mundo inteiro, esses viadutos estão passando por transformação. Então, a Câmara entendeu que também era o caso de estimular o pensamento criativo da cidade a encontrar uma solução. Me pareceu adequado.

Estado - Mas já há estudos sobre o que é melhor, desmontar ou repaginar?

Haddad: Nesse momento, estamos lidando com o canteiro central da marquise. Alargamos o canteiro central, vamos ocupá-lo com outros elementos. Alguns engenheiros estão estudando a possibilidade de abrir fendas no Minhocão, uma espécie de respiradouro, porque eu entendo que, se a população frequentar aquele espaço, as ideias vão amadurecer naturalmente. Para ter a discussão, tem de existir interesse pelo assunto. E, para ter interesse, é necessário motivar as pessoas a ocupar aquele espaço. Não dá para ser uma decisão arbitrária nem tecnocrática. Tem de ser uma decisão coletiva. Mas, para ser efetivamente coletiva, não basta só uma reunião. Temos de nos reapropriar daquele espaço, como vai acontecer a partir da inauguração da marquise, e vamos passar a fazer uma discussão mais ampla.

Estado - A população que vive ao redor do Minhocão é mista. Há muita gente que mora ali de aluguel. Como evitar que parte da população seja expulsa com essas mudanças todas, que certamente vão valorizar o entorno?

Haddad: Tivemos um primeiro dilema com a própria construção da ciclovia na marquise, no canteiro central. Porque ali viviam 78 moradores de rua. Pensamos: ‘Vamos fazer a obra ali e para onde esse povo vai?’ Nós alojamos todos antes de começar a obra. Lá mesmo, na região. Não houve gentrificação. Ocupamos um espaço nas imediações, acolhemos as pessoas que estavam na marquise. Temos de pensar nisso desde o começo. Acho a PPP (Parceria Público-Privada) que o Estado e a Prefeitura lançaram um passo muito importante na direção de impedir a gentrificação do centro, para o qual o mercado imobiliário já acordou. Tem muita gente desenvolvendo projetos no centro e a PPP mitiga os efeitos da especulação imobiliária. É bem-vinda a classe média no centro. Mas vamos trazer também parte da população de baixa renda para que o centro seja representativo da cidade. Não seja um gueto e não seja um bairro chique. Que seja a expressão da diversidade da cidade. Estamos buscando essa visão de centro. Ele tem de exprimir a diversidade de São Paulo. Aí, vai ser um centro em que todos se reconheçam. Todo morador tem de se reconhecer no centro da sua cidade. O pobre, o rico, o classe média. Esse é o desenvolvimento que buscamos.

‘O prefeito não conhece
a cidade’

Entrevista
Andrea Matarazzo (PSDB)

Presidente da Comissão de Administração Pública

Por Edison Veiga

Líder da oposição na Câmara Municipal, o vereador Andrea Matarazzo (PSDB) critica o modo como projetos da gestão Fernando Haddad (PT) - como as vias exclusivas para bicicletas - estão sendo implementados na cidade sem estudos necessários. “Da maneira como vem sendo feito, corremos o risco de gastar dinheiro e estragarmos uma boa ideia que são as ciclovias.” Na opinião do tucano, a administração petista esquece dos problemas da cidade para investir em propostas que dão visibilidade.

Estado - Como o senhor avalia as ações da atual gestão voltadas à mobilidade, especificamente as ciclovias e as faixas exclusivas de ônibus?

Matarazzo: São as duas únicas ações voltadas à mobilidade desta gestão, já que os corredores de ônibus, por exemplo, são uma iniciativa anterior que acabou paralisada pela administração atual. Sem dúvida nenhuma, a bicicleta é um modal de transporte importante em qualquer cidade do mundo, mas as ciclovias precisam ser planejadas e ter suas instalações precedidas de um estudo básico, como qualquer outro modal: o estudo de origem-destino das pessoas, ou seja, de onde elas saem e para onde vão. Da maneira como vem sendo feito, corremos o risco de gastar dinheiro e estragarmos uma boa ideia que são as ciclovias. Em São Paulo, elas estão sendo feitas como cartão-postal, como factoide, e não como modal de transporte, efetivamente. Ao mesmo tempo, a Prefeitura poderia ter investido em outra questão fundamental, mas que não daria tanta notícia porque não é algo tão moderninho e descolado como as ciclovias: a melhoria das calçadas. Trinta por cento dos trajetos dos paulistanos hoje são feitos a pé, portanto, as calçadas são uma via fundamental para a cidade e deveria ser de responsabilidade da Prefeitura. A calçada é a via pública do pedestre, assim como a ciclovia é a via pública do ciclista e o corredor é a via pública do ônibus. Quanto às faixas de ônibus, poderia ser uma boa ideia. Mas é como remédio, se você exagera na dose, pode matar o paciente. O que aconteceram com as faixas que foram implementadas? Nada. Os ônibus continuam trafegando nas mesmas velocidades. No entanto, elas criaram problemas grandes para o comércio em determinados lugares. O prefeito não conhece São Paulo, a gente sabe e tem de desculpar isso. Ele não anda pela cidade. A periferia não tem comércio de shopping center, mas comércio de rua. A cada vez que ele proíbe estacionamento e coloca faixa de ônibus, todo o comércio naquela região, que gera os poucos empregos da periferia, acaba morrendo. Repito: por falta de planejamento, estragam as boas ideias.

Estado - Nota-se que há, em curso, um conflito pelo espaço público, principalmente no que tange aos transportes. O motorista incomodado com o ciclista e vice-versa. Como conciliar os interesses de todos os modais, uma vez que as vias continuam as mesmas e com os mesmos tamanhos?

Matarazzo: O mundo inteiro concilia pedestres, bicicletas, carros, metrôs de superfície. O objetivo é conciliar. Ou deveria ser, porque a Prefeitura, atualmente, tem o objetivo de perturbar o motorista. O mote parece ser esse, para desestimular o carro. No caso das ciclovias, por que deixá-las segregadas em toda a cidade? Exemplos do mundo todo mostram que, em determinadas vias, com baixo fluxo de trânsito, é possível colocar uma placa indicando que se trata de rota de bicicletas e aí ciclistas e motoristas compartilham, com atenção, a mesma via. Em outros lugares, onde há tráfego menos intenso de pedestres e ciclistas, a calçada pode ser compartilhada entre os dois modais, ou seja, em alguns pontos, vias compartilhadas são possíveis. Mas a maneira da atual Prefeitura é esta, ciclovia atrapalhando o trânsito. Porque não se trata de uma política pública, mas de uma política de relações públicas para a imprensa.

Estado - O senhor acha que é possível conciliar a necessidade óbvia de ocupar as vias com o fluxo de carros e, ao mesmo tempo, dar espaços para que atividades de lazer também ocupem as vias?

Matarazzo: Cá entre nós, São Paulo é muito mais parecida com Nairóbi do que com Nova York. O prefeito acha que está administrando uma Paris ou uma Nova York, mas os problemas paulistanos estão muito mais para uma Nairóbi. Não faz o menor sentido a gestão atual se preocupar em transformar isso em uma questão central. Mas, tudo bem, a Prefeitura tem, no momento, uma política de ‘boulevarização’ da cidade, quer transformar São Paulo em um grande boulevard. É que fechar a Paulista aos domingos sai no jornal. Já fechar a Avenida Tiquatira aos domingos, não. Por que fechar uma via que está perto do Parque do Ibirapuera? Não há um estudo de outros espaços. Por que não fechar avenidas na periferia, em regiões onde não há um metro quadrado de área de lazer para os jovens, idosos, para as pessoas caminharem aos fins de semana? Porque a gestão está preocupada em criar factoides e não políticas públicas. Política pública seria discutir: ‘Vamos fechar x metros quadrados de áreas em toda a cidade, considerando os lugares que não têm espaços públicos para a população’.

Estado - Como o senhor acha que a Prefeitura deve agir para equilibrar o conflito entre a garantia de segurança de um trânsito menos violento, com a redução das velocidades, mas sem perder a fluidez do viário?

Matarazzo: Fui secretário de Coordenação das Subprefeituras por um período e conheço bem essa realidade. Para reduzir os acidentes nas Marginais, não é preciso diminuir os limites de velocidade. O prefeito deixou voltar os moradores debaixo dos viadutos, dentro das pistas da Marginal. São eles que acabam sendo atropelados nas travessias que fazem para ter acesso a água, comida, etc. Na altura da Vila Leopoldina tem uma fábrica de casinhas de cachorro. Os carros param para fazer compras no meio de uma via expressa. Os motoboys continuam usando a via expressa com suas motocicletas mal arrumadas e de baixa cilindrada. Os ambulantes jogam pregos e pedras na Marginal para furar pneu. Aí, o motorista precisa parar o carro, e um veículo parado por cinco minutos ali cria 10 quilômetros de fila. A Prefeitura precisa cumprir seu papel, fiscalizar as Marginais, tirar os moradores de debaixo da ponte, tirar os ambulantes que vendem produtos, tirar as motocicletas de baixa cilindrada da via expressa. Se resolver isso e botar sinalização, reduz o número de acidentes. Sem paralisar a cidade, que é o que o prefeito vai conseguir fazer.

Estado - Apresentada à Câmara, a minuta da nova Lei de Zoneamento da cidade tem provocado intensas discussões entre associações de moradores, sobretudo por causa de corredores comerciais em Zonas Estritamente Residenciais. Como o senhor avalia essa questão?

Matarazzo: É um absurdo total. Em vez de considerar as Zonas Estritamente Residenciais como um caso urbanístico, o prefeito transformou a questão em um caso ideológico. Não há ZERs apenas nos Jardins, mas em 20 subprefeituras. Quem seriam os principais interessados em corredores comerciais nessa zonas, se os moradores desses bairros não querem o comércio perto? A alegação oficial é de que o comércio local viria para facilitar a vida do morador, mas o morador não considera que o comércio esteja longe dele. Portanto, o prefeito vai acabar estragando um modelo urbanístico que dura quase 100 anos. São áreas preservadas, tombadas e, principalmente, um grande pulmão, um grande parque que a cidade tem sem precisar gastar dinheiro, já que quem paga, e paga caro, são os proprietários de imóveis ali, com seus IPTUs. Essa medida só interessa àqueles que têm imóveis hoje com uso irregular e querem transformar a lei como forma de anistia. Isso é um erro. As ZCors propostas têm o objetivo de adensamento das regiões. Antes de tal medida, seria muito importante, e deveria ser obrigatório, o estudo da capacidade do suporte. Tem de saber se onde vai adensar há galerias pluviais e bocas de lobo suficientes, se a largura da rua é adequada ao volume de trânsito novo e ao uso determinado para a região. Sem fazer tais estudos, pode-se continuar criando o caos em uma cidade como São Paulo.

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