Expedição

Identidade musical que só poderia dar filme

Sua forma de pensar música, cheia de imagens,
o levou para a criação de trilhas antológicas no cinema nacionals

Por Luiz Zanin Oricchio

E, além de tudo, ele foi um tremendo trilheiro de cinema. Não que Tom Jobim tenha feito dezenas e dezenas de trilhas sonoras para filmes, à maneira de Bernard Hermann ou John Williams. Mas, algumas das suas trilhas foram tão boas e marcantes que Tom merece lugar de honra no mundo do cinema brasileiro. Aliás, e nem poderia ser de outra forma, seu nome é verbetado na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Fernão Ramos e Luis Felipe Miranda, a mais confiável obra de referência sobre a nossa cinematografia.

A estreia de Tom no cinema faz parte de sua biografia, e também do anedotário da sua trajetória boêmia. Pianista da noite, foi apresentado ao poeta Vinicius de Moraes pelo crítico Lúcio Rangel. Vinicius procurava parceiro para musicar as letras da peça de sua autoria, Orfeu da Conceição, uma ambientação do mito de Orfeu aos morros cariocas. Em estado de perene precisão, Tom teria perguntado a Vinicius, “Mas tem um dinheirinho aí?”, para constrangimento de Lúcio, que assistia à conversa.

Com dinheirinho ou sem, a parceria foi selada aí, nesse encontro no Bar Villarino, no Centro do Rio, e se tornou uma das mais famosas (e produtivas) da música popular brasileira. A peça estreou em 1956 e depois foi transformada em filme por um francês apaixonado pelo Brasil, Marcel Camus. A dupla de compositores gravou um LP, com o título da peça e uma série de canções importantes, algumas das quais se tornariam eternas, como Se Todos Fossem Iguais a Você. No disco, ao violão, o incrível Luiz Bonfá, compositor de Manhã de Carnaval, incluída na trilha. Só restaria lembrar que os cenários da peça foram desenhados por Oscar Niemeyer para se ter ideia do nível artístico e mental do país naqueles anos.

O fato é que Tom, músico completo, capaz de imprimir climas e sensações à sua obra musical, revelou-se artista perfeito na escrita para o cinema. Musicou Pluft, o Fantasminha, de Romain Lesage, e, logo em seguida, deu início a uma bela e longa parceria entre música e imagem com Paulo César Saraceni.

Cena do filme A Luz do Tom. Divulgação

Porto das Caixas (1962), primeiro longa-metragem de Saraceni, é um filme belo e estranho. Em preto e branco (magnífico, do fotógrafo Mario Carneiro), trata de um crime passional numa localidade isolada do Estado do Rio, envolta em brumas e mistério. A trilha de Tom Jobim tem tudo a ver com a criação dessa história, baseada num argumento de Lúcio Cardoso. Ouça, por exemplo, a melancólica e dissonante Valsa de Porto das Caixas para conferir o ambiente hipnótico imposto pelos sons. Faz também parte do filme a canção Derradeira Primavera, gravada por quase todos os notáveis intérpretes nacionais, de Elizeth Cardoso a Nara Leão e Caetano Veloso. A trilha mostra o diálogo de Tom com a música erudita, Villa-Lobos em especial, mas também com Debussy e Ravel e, com suas linhas sonoras avançadas, dá corpo (e alma) à estranheza da história. Seria também com Saraceni a parceria naquela que é considerada a melhor trilha para cinema de Tom, a de A Casa Assassinada (1973), filme baseado no romance decadentista de Lúcio Cardoso, Crônica da Casa Assassinada. Parte dessa trilha, orquestrada por Claus Ogerman, está presente num dos grandes álbuns de Tom, Matita-Perê. Música sublime, que envolve em magia e melancolia o drama familiar imaginado por Lucio Cardoso no interior de Minas Gerais.

A parceria Tom-Saraceni foi tão forte que não se desfez nem mesmo com a morte do maestro, em 1994. Como Saraceni já planejava o fecho da sua “trilogia da paixão”, toda baseada em Lúcio Cardoso, Tom deixou composta a música Tiê Sangue, que acabou incorporada ao longa O Viajante, por fim rodado em 1999, também em Minas.

A história não acaba por aí. Deu-se com Tom o caso mais raro de uma música que induz a criação de um filme e não o contrário. Garota de Ipanema, uma das canções mais tocadas em todo o mundo, inspirou o engajado diretor cinemanovista Leon Hirszman a dirigir um filme homônimo, radiografia da juventude da Zona Sul do Rio de Janeiro. O próprio Tom, claro, assina a trilha do longa, de 1967.

Jobim colocou sua assinatura de peso em algumas outras obras, como Sagarana, o Duelo, Gabriela Cravo e Canela (a canção é lindíssima e ficou famosa), Brasa Adormecida, Fonte da Saudade e A Menina do Lado, além de um episódio (Final Call) do longa Erótique, uma coprodução internacional.

Se deu tanto ao cinema, o cinema também não se esqueceu de Antonio Carlos Jobim. O grande artista, Brasileiro até no nome, recebeu uma homenagem e tanto de outro mestre, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, sob a forma de um dos maiores (talvez o maior) documentário musical já feito neste país. A Música Segundo Tom Jobim (2012) é um passeio cinematográfico amoroso pela obra do compositor. Nenhuma palavra é dita ou qualquer análise é formulada. Há apenas imagens e sons, com a imensa obra jobiniana sendo exposta em seus desdobramentos pelo País e mundo afora. Vemos imagens da Copacabana dos anos dourados e assistimos a gente como Frank Sinatra, Errol Garner, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn interpretando suas canções.

Assistimos às mais famosas, em especial a mais conhecida, ela de novo, Garota de Ipanema, sendo cantada em inglês, francês, alemão, italiano e até em japonês, mostrando que se houve um brasileiro de fato universal, este foi Tom Jobim.

O filme é lindo, emocionante, sofisticado. Dá uma saudade danada de um país chamado Brasil.