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Guarani

A ambulância rasgava a manhã de sábado a toda velocidade em direção ao Hospital da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lá dentro, ia um jovem desacordado que capotara o carro momentos antes. Bateu tão forte que foi parar do lado de fora do veículo. Abriu os olhos e começou a conversar com o paramédico, meio grogue.

— Não dorme. Vamos conversar, disse o paramédico.

— Não, tudo bem. Onde a gente está?

— A gente está indo para a Unicamp.

— Faz outro caminho. Me deixa ali no Brinco de Ouro, que tem caravana. É só dar uma limpada aí no sangue e tal, porque tem a caravana e eu vou pro jogo.

Tobogã do Brinco de Ouro da Princesa interditado pelos bombeiros

Era dia de caravana para Ribeirão Preto e jogo importante contra o Comercial. O fato ocorreu em 2011. O paramédico ignorou a súplica, claro, e se concentrou na tarefa mais importante: remover as roupas do jovem de modo que a movimentação fosse mínima - e se houvesse alguma fratura? Já haviam cortado a bermuda e a cueca. Ao chegar na camiseta, o impasse. O manto verde e branco do Guarani era sagrado.

— Vocês cortam minhas pernas, mas não cortam a minha camisa, bradou o torcedor, com o máximo que sua semiconsciência permitia.

“Foi um auê dentro do resgate”, lembra o bugrino fanático Maique de Lima. No sofá de sua casa, em Campinas, ele exibe a camisa já meio amarelada do dia do acidente. Depois de um mês de internação com três pontos de fratura na bacia, quis porque quis ir ao estádio ver o time subir. Exigiu que a mãe o levasse à sede da organizada e lá que lhe dessem um ingresso para a partida. Nem mesmo o policial que o barrou na entrada por causa das muletas foi um empecilho. “Joguei as muletas fora e entrei amparado por dois amigos e vi o jogo. Graças a Deus, no ano seguinte, ainda vi meu time ir pra final.”

Não ficou com sequelas físicas, apesar de não poder se exercitar. O único esporte que pratica hoje em dia é a torcida pelo Guarani dentro da organizada Fúria Independente, na qual é vice-presidente. Mas está cada vez mais difícil. “Eu comecei na torcida organizada em 2003, então peguei todos os rebaixamentos do Guarani. A gente já está muito cansado disso. É difícil ver um clube como o Guarani nessas divisões inferiores”, lamenta. “O Guarani é um time grande que se apequenou.”

Presidente do Guarani, Horley Senna: “O Guarani pode ter de fechar as portas”

Do outro lado do balcão, o sentimento é o mesmo. O presidente do clube, Horley Senna, aclamado há apenas cinco meses, tem um cenário de nuvens carregadas à frente. Ele se orgulha de ser o “primeiro presidente saído das arquibancadas e de vivenciar o Guarani de segunda a segunda”. “Nós fizemos um raio-x do panorama financeiro quando assumimos. Até o fim de 2017, quando termina nosso mandato, o Guarani não teria mais patrimônio”, explica, em seu gabinete no “Queijo”, o prédio redondo onde funciona a parte administrativa do clube. De acordo com o mandatário, o bugre deve hoje R$ 240 milhões - até 2017 seriam mais de R$ 300 milhões.

Brinco de Ouro da Princesa foi a leilão duas vezes e não pertence mais ao Bugre

As contas mensais também não fecham: as despesas giram em torno de R$ 600 mil - era R$ 1,5 milhão antes dos “cortes da própria carne” - e as receitas, R$ 150 mil. A diferença é grande. Para completar o quadro, o clube está às voltas com duas arrematações do complexo do Brinco tramitando na Justiça comum e na Justiça do Trabalho.

Em março, uma decisão da Justiça do Trabalho colaborou para afastar empresários dispostos a investir no clube. “Todos os patrocinadores que angariei para o segundo semestre foram notificados de que se houvesse valores a serem pagos ao Guarani que fossem repassados diretamente à Justiça”, explicou o presidente. “Hoje, os mais cautelosos não têm interesse em renovar. Consegui terminar a Série A2 do Paulista com a venda de direitos econômicos de alguns atletas. Agora, a equipe para a Série C do Campeonato Brasieliro, não tenho receita para montar. Dependo única e exclusivamente da Justiça do Trabalho para continuar a vida do Guarani.” Enquanto isso, vê a rival Ponte Preta se destacar no Brasileirão.

Do lado de lá da mesa, Senna aparenta cansaço. Na noite anterior, uma reunião do Conselho se estendera até mais de uma hora da manhã. Um sono melhor depende da Justiça do Trabalho, que precisa dar parecer sobre qual das empresas interessadas em tratar do patrimônio bugrino vai levar a melhor: se a Maxion, antiga patrocinadora, ou a Magnum, produtora de relógios. “Se a decisão demorar, corre-se o risco de o Guarani fechar as portas.” Essa possibilidade é real. O clube também deve se desfazer de sua área social.

Vanessa Amaral, de 32 anos, gerencia a loja do Guarani desde março; na memória, guarda a vitória de 3 a 1 sobre a Ponte Preta, a eterna rival dos bugrinos

Entre as duas, ele fecha com a Magnum. “Eu tenho de pensar no clube. A Magnum faria um patrocínio de 10 anos e 11 meses, com R$ 350 mil por mês. O Brinco de Ouro seria demolido e construídas torres comerciais e residenciais. Desse valor, o Guarani teria 14%, de onde sairiam o clube, um centro de treinamento e uma arena. O Guarani vai respirar a partir do momento em que a Justiça der uma decisão favorável à Magnum.”

TORCIDA

Para lá da Rodovia Anhanguera, num bairro de loteamentos de médio padrão fora do sistema nervoso campineiro, o risonho consultor de sistemas Marcos Hirata preenche com a tradição bugrina a casa recém comprada. Quem melhor define a importância do time para a família é a esposa dele, Adriana. “O Guarani é como se fosse um membro da família: se ele está mal, o Marcos também está mal”, ri a moça de olhos azuis destacados no mar alviverde.

Torcedor fanático do Guarani não deixou os médicos cortarem camisa do Bugre depois de acidente “Vocês podem cortar minhas pernas, mas não cortam minha camisa”, disse ele aos paramédicos:


A última dele foi no dia do tropeço do Guarani frente ao Veloclube. “A gente não foi ao estádio, estávamos num casamento em São Bernardo. Fiquei doido porque queria ter ido ao jogo”, lembra Marcos. “Eu batia de raiva no volante do carro.” Adriana entregou: “nós erramos o caminho três vezes para a festa”. Naquele dia, “não teve Waze” que o levasse para a comemoração.

O filho Murilo, que ainda nem chegou aos 10 anos, já incorporou o verde e branco na rotina. Com uniforme completo do Guarani, ele observava, desconfiado: “Todo jogo que dá ele vai junto. Já bateu foto com mascote, está aprendendo a falar palavrão. Você anda aqui pelo condomínio e só vê a molecada com camisa do Barcelona para cima e para baixo. Acho que do Guarani ele é o único”, orgulha-se o pai. A pequena, que vai fazer três anos, ainda não teve coragem de levar ao Brinco.

Nas lembranças mais fortes, além dos cachorros-quentes patrocinados pelo pai, está a final de 1978, quando a equipe bugrina derrotou o Palmeiras em Campinas por 1 a 0 e sagrou-se campeã brasileira. Com apenas oito anos na época, lembra com vivacidade da chegada ao estádio na Kombi paterna e, no fim da partida, da invasão do campo, agarrado a uma bandeira alviverde. “A gente se perdeu do meu pai, foi pra festa e chegou muito tarde em casa. Ele ficou bravo com a gente naquele dia.”

O fanático Maique de Lima que impediu os paramédicos de cortarem sua camisa do Guarani depois de um acidente de carro

Essa força da torcida dá os três pontos na luta do Guarani pela recuperação. “Na atual situação, nós fomos, durante o campeonato inteiro, a maior média de público dessa Série A2”, calcula Maique. “Nós só perdemos para a Ferroviária.” Apesar disso, as escolinhas de futebol dos grandes times de São Paulo têm se multiplicado interior afora e “roubado” torcedores mirins.

“Hoje, (para alguns) o futebol do Interior não existe mais. Não existe. São cotas (pagas pela Federação Paulista de Futebol - FPF) completamente desproporcionais. O futebol do Interior não tem calendário”, lamenta o torcedor que não abandonou o Guarani nem com múltiplas fraturas.

COTAS

Sobre as cotas, o presidente do Guarani diz ter procurado a Federação e conversado com o mandatário da entidade, Reinaldo Carneiro Bastos. Senna propôs a criação de uma associação de clubes do Interior e o descolamento dos times da capital paulista. O comentário não foi muito bem visto, segundo ele. “Não é justo um Corinthians com R$ 18 milhões, um São Paulo com R$ 16 milhões e os outros times com R$ 2,7 milhões. Isso na Série A1 do Estadual. Essa demonstração tem certa complacência com os times da Capital e desconsideração com os do interior.”

Marcos Hirata e o filho Murilo, o único a vestir a camisa bugrina no condomínio: “A molecada aqui é só Barcelona”

Apesar do riso fácil, Marcos Hirata assume um semblante sério e chateado quando fala do lugar onde foi parar o clube do pai, e do pai do pai. “Eu ia no campo para ver o Guarani ganhar. Nunca, jamais imaginei que a gente ia temer a Ferroviária ou o Veloclube. Vi Amoroso, Luizão, Djalminha, Edilson Capetinha, Ricardo Rocha... Tanta gente boa que o Guarani revelou... e está nessa situação agora. Não dá para entender.”