Esporte | basquete

Legado continua vivo 30 anos depois

Por Marcius Azevedo
Jogadores da seleção comemoram o ouro conquistado no Pan de 87. Arquivo CBB

Vitória improvável mudou história do basquete

Estilo de jogo da seleção de Oscar, Marcel e Cia, que conquistou o Pan de 87 ao derrotar os Estados Unidos, estava à frente do seu tempo

"(...)Sonhar mais um sonho impossível...Lutar quando é fácil ceder...Vencer o inimigo invencível (...)". O poema de Fernando Pessoa, cantado em verso e prosa por Chico Buarque, reflete o acontecimento do dia 23 de agosto de 1987. Nesta data, o Brasil superou os Estados Unidos por 120 a 115, em Indianápolis, impôs aos americanos o primeiro revés em casa na história do basquete e conquistou o ouro nos Jogos Pan-Americanos. Trinta anos depois, o legado da geração de Oscar, Marcel e Cia continua vivo.

O estilo de jogo da seleção brasileira, com velocidade na transição, jogo coletivo e os arremessos de três como arma letal, se mostrou à frente do seu tempo e é praticado atualmente por diversas equipes pelo mundo, incluindo o Golden State Warriors, campeão da NBA. Cenário que enche de orgulho os personagens daquela histórica vitória sobre uma equipe que contava com jogadores que, anos depois, seriam dominantes na maior liga de basquete, como o pivô David Robinson.

O mapa de arremesso do Golden State é idêntico ao nosso. Ou é arremesso de fora ou lá de dentro. A gente já fazia isso"
Marcel

"O mapa de arremesso do Golden State é idêntico ao nosso. Ou é arremesso de fora ou lá de dentro. A gente já fazia isso", comentou Marcel, que anotou 31 pontos na final. "A vantagem do arremesso de três é que você abre o campo. Se você não marcar o arremesso de três qualquer time te arrebenta atualmente, porque até o pivô acerta bola de três. Se marcar, você joga lá dentro", completou.

Armador titular daquela seleção, Guerrinha concorda com Marcel. "Ali tivemos uma mudança de conceitos no basquete. Antes era apenas jogo interno. A bola de três mudou tudo. Hoje é uma tendência na NBA. O Golden State abusa da bola de três como fazíamos."

Gérson e Pipoka carregam Guerrinha ao lado de Silvio e com Rolando ao fundo. Arquivo CBB

Reserva imediato de Guerrinha, Cadum, que teve uma atuação fundamental na decisão do ouro contra os EUA, faz uso das estatísticas para comprovar o legado. "O mapa daquele jogo mostra que chutamos 25 bolas de três e atualmente uma equipe da NBA que não chuta 25 bolas de três não tem sucesso. Essa comparação é importante, são 30 anos de diferença. Deixamos alguma coisa para o basquete", discursou.

Atualmente, o time que mais arrisca bolas de três pontos na NBA é o Houston Rockets. A franquia texana fez 3.306 disparados nos 82 jogos da temporada regular, uma média de 40,3. "Não tínhamos consciência na época de que isso seria um jogo aceito atualmente. Ficamos felizes de ver que esse jeito de jogar basquete surgiu lá atrás, com o nosso time."

Para Paulinho Villas Boas, outro que foi importante ao sair do banco na decisão contra EUA há 30 anos, reforça que aquele time poderia atuar desta maneira pela característica do grupo. "Oscar era um chutador nato, Marcel era um chutador nato, eu, Cadum, Guerrinha, Maury, Rolando também arremessávamos. Gérson arriscava, Pipoca também. O segredo foi ter uma filosofia que dava liberdade para ser criativo, ter ousadia, jogar com velocidade", comentou.

Não tínhamos consciência na época de que isso seria um jogo aceito atualmente. Ficamos felizes de ver que esse jeito de jogar basquete surgiu lá atrás, com o nosso time."
Cadum

Naquela final, o Brasil acertou dez bolas de três pontos em 25 tentativas, um aproveitamento de 40%. Os americanos converteram apenas dois de 11 arremessos da linha de três. "Sem contar as bolas que sofremos faltas no ato do arremesso e chutamos três lances livres", relembra Marcel.

Oscar Schmidt foi o cestinha da decisão contra os EUA ao anotar 46 pontos. Arquivo CBB

Para o ex-jogador, ver o estilo de jogo daquela seleção sendo praticado atualmente corrige um erro histórico. "Fomos criticados durante muito tempo até aparecer o Golden State. Agora o mesmo jogo é visto como coletivo", afirmou. "No primeiro tempo, nós fizemos 52 pontos e eu e o Oscar anotamos apenas 22. E os outros 30 pontos quem fez? Não tem jogo coletivo?", questionou.

O problema, segundo Marcel, é que faltava treinamento aos jogadores que tentaram seguir os passos da geração de 87. "Todo mundo quis arremessar de três sem ter o treinamento que tínhamos, sem acertar mil arremessos por dia. Eu fazia 90% nos treinos para acertar 45, 43% no jogo, quando você está cansado, marcado..."

Oscar Schmidt celebra ponto na vitória do Brasil sobre os EUA no Pan de 87. Mark Duncan/AP

Cestinha daquele jogo com 46 pontos, Oscar, além de dizer que o "Golden State joga igualzinho sua geração", vê outro legado importante da conquista do Pan de 87. A histórica vitória, segundo o 'Mão Santa', foi determinante para que os EUA fizessem pressão para que os profissionais da NBA passassem a atuar no basquete Fiba.

Aquela vitória mudou o basquete mundial. Os americanos perceberam que tinha alguém jogando bem fora dos EUA, entraram em contato com o pessoal da Fiba e, em 1992, entrou em ação o Dream Team, o melhor time que já vi jogar na vida. Tudo por causa daquela vitória"
Oscar

"Aquela vitória mudou o basquete mundial. Os americanos perceberam que tinha alguém jogando bem fora dos EUA, entraram em contato com o pessoal da Fiba e, em 1992, entrou em ação o Dream Team, o melhor time que já vi jogar na vida. Tudo por causa daquela vitória", afirmou.

Para Guerrinha, o revés no Pan foi o primeiro golpe. "Foi um soco no queixo, ficaram tontos. Em 1988, perderam os Jogos Olímpicos em Seul (eliminados na semifinal pela União Soviética). Depois o Mundial, em 1990, quando levaram um banho da antiga Iugoslávia", enumerou o ex-armador, atualmente técnico do Mogi das Cruzes.

Trinta anos depois o legado daquela vitória improvável continua vivo.

Campeões panamericanos falam da conquista de 87

Campeões panamericanos falam da conquista de 87

Brasil conquista o ouro com virada incrível sobre os EUA

Capa do Jornal da Tarde no dia seguinte ao ouro conquistado no Pan de 87. Daniel Teixeira/Estadão

A festa estava pronta. A execução do hino americano foi testada diversas vezes no Market Square Arena, em Indianápolis, antes da partida deste domingo. Só faltou combinar com o time brasileiro. Liderado por Oscar e Marcel, o Brasil conseguiu uma virada incrível no segundo tempo, venceu 120 a 115, faturou o ouro dos Jogos Pan-Americanos e deixou os favoritos atônitos.

O desempenho ofensivo da equipe do técnico Ary Vidal foi determinante para o resultado. A dupla de alas combinou para 77 pontos na partida. Oscar terminou o jogo com 46 pontos, sendo 35 apenas no segundo tempo. Marcel contribuiu com 31.

A partida em Indianápolis começou com os americanos pontuando sem qualquer resposta do Brasil. David Robinson e Danny Manning lideravam o ataque. A seleção brasileira, aos poucos, equilibrou o jogo, mas o time do técnico Denny Crum mantinha uma boa vantagem. O primeiro tempo terminou com 14 pontos de diferença: 68 a 54.

Os EUA voltaram para o segundo tempo para terminar o trabalho que começaram, mas o Brasil não desistiu. Oscar e Marcel, que haviam anotado apenas 11 pontos cada, passaram a acertar uma bola atrás da outra. Na defesa, os brasileiros passaram a provocar os americanos, que erravam bastante.

A seleção brasileira tirou a diferença rapidamente. Uma bola de três de pontos de Oscar colocou o Brasil em vantagem por 83 a 80, quando o cronômetro apontava pouco mais de dez minutos para o fim da partida.

Os americanos chegaram a tomar novamente a dianteira (96 a 95). Foi então que Marcel brilhou. O ala converteu uma cesta de três pontos e mais uma de dois com falta. Apesar do erro no lance livre, o Brasil abriu quatro pontos (100 a 96), restando seis minutos e controlou o jogo até fechar o placar com uma vitória por 120 a 115.

A comemoração foi emocionante, com o herói Oscar caído de costas na quadra, chorando copiosamente. Marcel era outro que estava aos prantos, assim como boa parte da equipe, que não acreditava no tamanho da façanha. Do lado derrotado, desolação. Os americanos colocavam até toalhas na cabeça para se esconder após o vexame em casa. A vitória certa se transformou em um duro golpe.


Ficha Técnica

EUA 115 x 120 BRASIL
23 de agosto de 1987
Local: Market Square Arena, em Indianápolis
Público: 16.408 pessoas
EUA: Pooh Richardson (7 pontos), Rex Chapman (17), Ricky Berry (2), Danny Manning (14) e David Robinson (20); Jerome Lane (16), Willie Anderson (16), Pervis Ellison (13), Keith Smart (12), Jeff Lebo (7), Dean Garrett (4) e Fennis Dembo (3)
Técnico: Denny Crum
BRASIL: Guerrinha (2 pontos), Marcel (31), Oscar (46), Israel (12) e Gérson (12); depois Cadum (8), Paulinho Villas Boas (7), Pipoka (2) e Rolando Ferreira; não jogaram: Maury, André e Silvio
Técnico: Ary Vidal

Onde andam os campeões

Confira o que estão fazendo atualmente os jogadores que fizeram história ao derrotar os EUA
Oscar
Aos 59 anos, o 'Mão Santa', que travou uma dura batalha contra um câncer no cérebro, mora nos Estados Unidos e faz palestrantes motivacionais.
Marcel
Depois de atuar como treinador - o último trabalho foi no Pinheiros, em 2014 -, o ex-jogador, aos 60 anos, voltou a exercer a medicina, em Jundiaí.
Israel
Aos 57 anos, o ex-pivô continua próximo do basquete. Após um período ensinando o esporte, ele atua no time de veteranos da Hebraica, em São Paulo.
Gérson
O ex-pivô atualmente trabalha como dirigente no Ginástico, clube de Minas Gerais, em que começou sua trajetória no basquete. Está com 57 anos.
Guerrinha
O ex-armador continuou no basquete como treinador, com passagens por Ribeirão Preto, Campos, Rio Claro e Bauru. Aos 58 anos, ele comanda o Mogi das Cruzes.
Cadum
Atualmente tem uma agência de turismo em São José dos Campos. Aos 57 anos, ele também atua na equipe de veteranos da Hebraica ao lado de Israel.
Paulinho Villas Boas
Depois de trabalhar no Comitê Olímpico do Brasil (COB) por 12 anos, o ex-armador de 54 anos faz atualmente projetos para Fiba e busca desenvolver o basquete pelo Brasil.
Pipoka
O ex-pivô é professor na Unieuro, em Brasília, ministrando aulas de basquete no curso de Educação Física. Aos 53 anos também faz parte da ONG Atletas pelo Brasil.
Rolando
Aos 53 anos, é coordenador do curso de Educação Física da Universidade Tuiuti do Paraná, onde ministra quatro disciplinas. Também é técnico do Clube Duque de Caxias.
Maury
Irmão de Marcel, o ex-armador de 55 anos, que contraiu sarampo antes do início daquele Pan, é cirurgião dentista e tem consultório em Jundiaí.
André
Aos 57 anos, o ex-pivô mora em Nova York, nos Estados Unidos, e tem uma empresa de turismo, que faz tours para brasileiros pela cidade.
Silvio
O ex-pivô, aos 57 anos, mora em Santo André e trabalha na DNVGL, certificações de sistema de qualidade, na coordenação de certificação automotiva do México, Brasil e Argentina.
Ary Vidal
Faleceu no dia 23 de janeiro de 2013, por decorrência de problemas renais e cardíacos crônicos.
José Medalha
Aposentado, mora atualmente no Guarujá, litoral de São Paulo. Tem 73 anos.