o outro lado da fronteira andina, o Peru também vê crianças e adolescentes na linha de tiro das disputas políticas pelo poder. Tentando reduzir os danos dos conflitos sobre a infância, o Ministério das Mulheres do país prepara um programa para receber em Lima e nas comunidades andinas crianças que o exército recupera nas zonas de ocupação do Sendero Luminoso, organização que mantém meninos, meninas e jovens em treinamento em seus acampamentos no vale do Vraem, área de forte atuação militar na região de Ayacucho e Apurímac.
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“Faz 15 dias levaram daqui para Lima 10 crianças resgatadas da guerrilha para tratamento de saúde", contou Luzmila Chiricente Ashaninka, presidente da Federação das Mulheres do Povo Ashaninka, que vive em Satipo, na região de combates na cordilheira andina. "Eles foram encontrados subnutridos, com tuberculose e malária", explicou. Luzmila Ashaninka conhece muito bem o tema. Em 1989, ela própria sentiu na carne a perda de um dos 4 filhos. O Sendero levou o indígena que à época tinha 15 anos, recrutado à força na própria comunidade. Junto, segundo Luzmila, levaram também sobrinhos dela - de 6, 8 e 9 anos. "Nunca mais vi meu filho. Não sei se está vivo ou morto", disse.
Estudo da antropóloga Mariella Cervello, publicado em abril, mostra que as comunidades indígenas andinas foram brutalmente atingidas no conflito armado peruano. Somente entre os ashaninka da região de Satipo, perto de Huancayo, cerca de 6 mil foram mortos. De acordo com Censo de 1993, diz o estudo da antropóloga, o total de ashaninka era de 52 mil.
A situação no Peru não é tão ampla e grave quanto a colombiana, mas o fantasma senderista voltou a ganhar força. Em agosto, o governo peruano divulgou fotos de um grupo resgatado de acampamentos, com 9 pessoas, entre elas três crianças. Eles foram encontrados em uma operação de combate entre tropas regulares e guerrilheiras em San Martín de Pangoa, província de Satipo. Também em enfrentamentos na mesma região, em 2012, quando foram mortos líderes do Sendero, a polícia disse ter retirado dos acampamentos da guerrilha 11 crianças, informou relatório do Ministério do Interior, datado de junho último.
Na capital peruana, que tem quase 10 milhões de habitantes, é comum encontrar migrantes (desplazados) que fugiram da área rural em busca de paz para criar os filhos em bairros e localidades à beira do Pacífico. Segundo Julio Bellido Flores, que vive no distrito de San Juan de Lurigancho, perto de Lima, a comunidade tem diversas famílias fugidas da guerra. Promotor de espetáculos culturais típicos dos Andes nas arredores da metrópole, como o "Toril" e a dança "Capitania", que ele leva para desfilar no centro histórico de Lima, Flores disse que o êxodo foi muito forte. “Mas já está controlado", argumentou.
Tedi Vásquez, 19 anos, integrante de um grupo do dança folclórica Jacuy Tusuy Perú (Vamos Dançar Peru), cuja família migrou de Ayacucho, a 8 horas de ônibus da Lima, porém, não desconversou. Para ele, a pressão ainda está presente nas montanhas. "Capturam os meninos para transformá-los em máquinas de matar", afirmou Vásquez, professor de dança, formado na Escola Nacional de Folclore do Peru.
Mostrando o tocador de tambor do grupo folclórico, Eulogio Almeida Chipana, 50 anos, Tedi contou que o músico é um dos chefes de família que fugiu do conflito armado depois de perder terras e ter filhos ameaçados. "O sequestro de crianças e adolescentes foi e ainda é uma preocupação muito grande no Peru", afirmou.
Para o jornalista e consultor de segurança peruano Pedro Yaranga, que estuda o Sendero Luminoso, o grupo não faz mais recrutamento de crianças como no passado, mas se mantém ativo na selva. De acordo com o especialista, a principal investida do Sendero sobre recrutamento de crianças e jovens ocorreu entre os anos 1989 a 1991, na área do Rio Ene. Preparando um livro sobre mais de 15 anos de ações do Sendero no país, Yaranga explicou no último mês de agosto os senderistas sofreram mais um golpe ao perderem, em conftonto com as forças armadas peruanas, dois dos seus principais líderes. "O segundo na hierarquia militar e o quinto homem da área política", contou Yaranga.
O pesquisador afirmou que atualmente o Sendero trabalha na aplicação do ações previstas em um manual guerrilheiro, desconberto no primeiro semestre, que orienta ações contra a Polícia e as tropas do Exército que desde 2008 estão de volta ao Vraem. No governo de Ollanta Humala, o Peru voltou a combater o Sendero e a fazer tentativas de ocupação cívica das áreas de atuação da guerrilha. O próprio Humala coordenou a implantação de abrigos para jovens e crianças resgatados ou fugitivos da guerrilha na região de Satipo.
O Sendero nasceu nos anos 70 no debate interno do Partido Comunista do Peru. Os senderistas, à esta época, eram menos de uma centena de militantes maoístas que disputavam poder com marxistas leninistas do PCP, como mostram documentos publicados no site www.cedema.org. O site é uma plataforma de divulgação de movimentos de esquerda e da luta armada na internet, fonte de informação de pesquisadores da história da esquerda latinoamericana.
Mas foi somente dez anos mais tarde, em maio de 1980, que a luta armada apareceu com força com atentados em Lima, no distrito de San Martin de Porres. A esta altura, o principal líder radical, Abimael Guzmán, já estava no comando. E diante das dezenas de prisões e tortura de militantes comunistas, e do massacre de presos em 1986, começou o trabalho de doutrinamento ideológico e partidário dentro das prisões de Lima e Callao, nas quais o governo misturou militantes políticos com presos comuns.
Foi nas cadeias que surgiu a expressão "Luminoso", que devia funcionar como uma chamada aos presos para que transformassem "as masmorras escuras da prisão" em "luminosa trincheira de combate", reforço da militância.
A prática de recrutar crianças e adolescentes para a guerra, considerado internacionalmente um crime de lesa-humanidade e muito conhecida atualmente nos conflitos armados do Oriente Médio e África, ocorre também na América Latina sem que os governos sul-americanos evitem a tragédia. A opinião é de Mariella Villasante Cervello, antropóloga, pesquisadoras associada ao Instituto de Democracia e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Peru. "Os meninos são preparados para serem futuros combatentes, enquanto que as meninas são usadas como objetos sexuais", afirma a pesquisadora. Segundo ela, a prática já foi denunciada pela Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) do Peru, mas governos nada fizeram para combater os crimes. "A guerra civil no Peru já matou pelos menos 70 mil pessoas e os índios ashaninka, da região do Vraem, são os mais afetados", afirma. "Milhares de crianças e adolescentes foram recrutados e pelo menos 6 mil indígenas foram mortos em campos de reeducação e morte na região", declara a pesquisadora. De acordo com ela, nos últimos três anos, o exército do Peru tem conseguido localizar e libertar crianças da guerrilha, que são transferidas para hospitais e abrigos. Mas, de acordo com Cervello, os senderistas continuam mantendo suas "escolas populares que seguem modelos de extremistas como al-Qaeda e Estado Islâmico", em locais nos quais o Estado continua ausente.
Os grupos armados necessitam sempre recrutar crianças e adolescentes para assegurar a continuidade de suas ações subversivas. São os "meninos-soldadoss". No Peru, os primeiros que iniciaram esse tipo de recrutamento foram os membros do Partido Comunista do Peru, Sendero Luminoso (PCP-SL). Depois da prisão de Abimael Guzman, em 12 de setembro de 1992, o grupo se dividiu entre os que queriam continuar a guerra (em Huallaga e no Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro, o Vraem). É preciso lembrar que esta longa guerra civil peruana, que ocorreu entre 1980 e 2000, e que é ainda muito pouco conhecida na América Latina, já produziu mais de 70 mil mortos, segundo projeções da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR), que entregou seu informe em agosto de 2003 ao então presidente Alejandro Toledo. Toledo e Alan Garcia não adotaram as recomendações da CVR e abandonaram a região da selva central, onde ficaram centenas de senderistas. Em 2008, as Forças Armadas voltaram à zona, que foi declarada em estado de emergência até hoje. O grupo de Huallaga foi desmantelado há dois anos. O único que continua é o grupo Sendero Rojo (vermelho), no Vraem, dirigido pelos irmãos Quispe Palomino. Se sabe que eles continuam treinando meninos e adolescentes em "escolas populares", que seguem o modelo comunista inventado na Rússia, sobretudo na China, mas que também se observa nos movimentos islamitas atuais (al-Qaeda, Estado Islâmico).
Os governos têm de intervir de maneira internacional na luta militar e social contra a existência de grupos armados, nos quais se recrutam meninos e adolescentes com diferentes funções: os meninos são preparados para serem futuros combatentes, enquanto que as meninas são usadas como objetos sexuais. No Peru, a CVR recolheu dezenas de testemunhos sobre estas práticas bárbaras tanto no PCP-SL, como no MTRA (Movimento Revolucionário Túpac Amaru) e mostrou também o uso de adolescentes nas Forças Armadas. O governo de Ollanta Humala tem sido o primeiro a levar a sério o desmantelamento dos acampamentos senderistas. Há três anos se conseguiu encontrar e libertar algumas dezenas de "meninos-soldadoss". A estratégia foi e continua sendo eminentemente militar, mas faz dois anos que se instaurou programas de desenvolvimento e ações civis no Vraem. As táticas militares seguem como as que usam os senderistas, o que é mais sensato que atacá-los em combates regulares. O problema central é que os subversivos trabalham em aliança com os narcotraficantes e obtêm recursos para alimentar suas "escolas populares". De maneira muito esquemática se pode dizer que a violência contra as crianças é parte da bagagem ideológica das guerrilhas comunistas e em consequência os governos devem compreender que o único modo de lutar contra ela é incentivar o desenvolvimento local, aportar serviços do Estado nos rincões. E justamente porque em países como Peru, Colômbia ou Paraguai, o Estado não está presente em vastas zonas que as guerrilhas e grupos de narcotraficantes têm podido instalar-se e se desenvolver com o apoio voluntário ou forçado das populações rurais. No caso do Peru, Abimael Guzman conseguiu instalar seu movimento armado maoísta, o único em todo o continente americano, no centro e sul dos Andes, e também na amazônia central, todas zonas abandonadas pelos governos desde sempre, extremamente pobres e com uma presença importante de jovens. Os militantes senderistas foram os primeiros a considerar que as crianças, seus próprios filhos, deveriam ser entregues à "guerra popular". E Guzman repetiu em muitos discursos a necessidade de contar com uma "reserva infantil", que seriam os futuros "novos homens da revolução". Portanto, aos senderistas foi encomendada a "tarefa revolucionária" de ter filhos destinados à revolução. E, de forma paralela, os militantes raptaram milhares de meninos, meninas e adolescentes dos Andes (Ayacucho, Junín) e da selva (ashaninka, nomatsiguenga e andinos) destinados a serem também os futuros revolucionários.
As negociações de paz entre guerrilhas colombianas e o Estado são muito complexas, pois os subversivos pretendem obter a anistia e assim evitar o castigo para seus crimes. No entanto, sem Justiça Penal não se pode pretender chegar a uma reconciliação nacional. No Peru, temos a sorte de processar os principais responsáveis pela violência terrorista e a repressão igualmente bárbara (Fujimori, Hermosa Rios, Montesinos...), mas falta ainda terminar muitos processos de massacres cometidos sobretudo por militares contra a população acusada de "terrorismo".
O uso de "meninos-soldadoss" é um crime de lesa-humanidade e os responsáveis devem ser julgados e condenados. Principalmente em uma negociação de paz, a impunidade não pode garantir que a paz seja alcançada entre populações que tenham sofrido abusos de guerrilheiros ou soldados.
Não há dados precisos sobre o recrutamento de crianças no Peru. Se sabe somente que foram e ainda são milhares, como aparece no Informe da CVR, que explicita também o uso de crianças como vanguarda dos ataques senderistas como "meninos-bomba" contra os militares. Ronald Gamarra escreveu um informe sobre o tema para o CIDH (Comitê Interamericano de Direitos Humanos) sobre o recrutamento e alistamento de meninos, meninas e adolescentes.
É muito difícil determinar uma estratégia de recuperação de crianças e adolescentes habituados durante anos com o discurso da violência, que cresceram no ódio e na barbárie, que também sofreram na carne a violência de subversivos, incluindo mulheres (como a sinistra Camarada Olga). Provavelmente, o caminho mais adequado seja uma internação de vários meses em hospitais psiquiátricos onde possam receber tratamento médico adequado. É preciso notar que se trata de crianças que têm vivido sempre no sofrimento físico e moral. Que têm traumas importantes e que o processo de cura pode ser muito longo. A maioria dos adultos que sobreviveram à guerra civil no Peru segue vivendo mal. Escrevi um pouco sobre as sequelas da guerra entre os ashaninka e o panorama é desolador. O povo ashaninka e seus parentes nomatsiguenga - estimados em 50 mil a 55 mil em 1990 - são os que mais sofreram durante a guerra civil peruana. A CVR estima que 6 mil morreram no que foi chamado de "campos de reeducação e de morte", instalados por senderistas na selva central. Lembremos que também existe uma comunidade ashaninka no Brasil, instalada no Rio Amonia há 30-40 anos. A existência destes campos, que seguiam o modelo comunista, na versão maoísta, é totalmente desconhecida no Peru e no mundo. Porém, foram os únicos campos totalitários do continente. Até hoje se descobre fossas comuns nas quais foram enterrados milhares de ashaninka, e os responsáveis por estes massacres de massa não foram ainda identificados, enquanto as famílias das vítimas e associações de defesa de direitos humanos estão apoiando as buscas por restos mortais e identificação, como ocorre na região de Ayacucho. Atualmente, a violência dos homens se volta contra as mulheres e os filhos, que sofrem com a violência doméstica cotidiana. Por outro lado, o alcoolismo é corriqueiro, as violações de mulheres e meninas, que antes eram muito raras, se tornaram frequentes. De maneira geral, a desordem e a perda de referências morais caracterizam a maioria dos grupos familiares deste povo. A violência contra a mulher se tornou o principal problema enfrentado pela Defensoria Pública. Esta situação implica que estamos vivendo um período de pós-guerra que ninguém quer reconhecer como tal. A sociedade peruana prefere viver na negação do passado de violência e na negação do presente desestabilizador, que caracterizam as zonas que estiveram no centro da guerra: Ayacucho e a selva central. É preciso acrescentar que toda a América Latina enfrenta diversos tipos de violência social ou política, seja subversiva, do Estado, ou criminal, mas nenhum governo se mostra capaz de enfrentar as causas profundas: o subdesenvolvimento, o abandono pelo Estado das maiorias pobres que vivem em situação de subnutrição, com problemas de saúde, sem educação e sem ajuda social. A pobreza e a ignorância predominam e facilitam a instalação da violência entra as pessoas, que preferem crer que lançando bombas e educando crianças para a luta armada contra o "inimigo" estatal se poderá melhorar a vida no futuro próximo. O discurso dos governos em países como Peru e Colômbia segue fora da realidade e as sociedades preferem viver na ignorância, fechando os olhos também para os excessos repressivos de militares e polícias, seja tratando-se de terroristas, seja tratando-se de criminosos comuns. Considera-se que a morte e a tortura destas gentes marginais é o "preço da paz" social...
Tedi Vásquez, 19 anos, filho de família que migrou de Ayacucho para Lima, ensina dança folclórica peruana