QUANDO A CRISE FAZ O EMPREENDEDOR

QUANDO
A CRISE FAZ O
EMPREENDEDOR

Necessidade ou oportunidade? Entenda o que move
os brasileiros que, neste momento, decidiram se aventurar
no universo do empreendedorismo

Naiana Oscar

2

Eles pediram demissão
para empreender


ENQUANTO HÁ BRASILEIROS TENTANDO SE SEGURAR NOS
EMPREGOS, HÁ QUEM TENHA CORAGEM DE LARGAR
TUDO PARA MONTAR UM NEGÓCIO PRÓPRIO EM MEIO À CRISE


 Na rua. Rose e Pimentel participaram da Ocupa Food Park, na Vila Mariana, em São Paulo.   RAFAEL ARBEX/ESTADÃO

 

Quando começar a compreender as conversas dos adultos, Luca vai descobrir que nasceu praticamente com a empresa de seus pais. Vai poder contar aos amigos que já nas suas primeiras semanas de vida frequentava um dos programas preferidos dos paulistanos descolados daquela época, as feiras gastronômicas. No carrinho, embaixo do caixa, ele testemunhou, sem saber, o início da operação do Escondido do Portuga, um negócio criado do zero, em maio deste ano, por dois ex-funcionários de uma distribuidora de alimentos.

Neste caso, não foi a crise ou uma demissão inesperada que obrigou o casal Rose e Alexandre Pimentel a empreender, mas a sensação de que, apesar do momento ruim da economia, havia uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.

 

Ao mesmo tempo em que se tornaram pais, Rose e Pimentel foram atrás da papelada e viraram microempreendedores individuais – modalidade empresarial para quem trabalha por conta própria e fatura até R$ 60 mil por ano. É esse tipo de negócio que vem puxando os indicadores de abertura de empresas em 2015. Entre janeiro e junho, segundo dados do Serasa Experian, surgiram 748.371 novos microempreendedores individuais – 9,6% mais que os 683 mil do mesmo período do ano passado. “Hoje, quase oito em cada dez novos negócios estão enquadrados nessa modalidade. Em 2010, eram menos de cinco”, diz o economista do Serasa Luiz Rabi, que credita o aumento ao processo de formalização da economia. A abertura de sociedades limitadas e de empresas individuais, por sua vez, teve queda no primeiro semestre. “Se o quadro de recessão econômica se prolongar por muito mais tempo, é provável que mesmo essa tendência de alta do microempreendedor individual se enfraqueça.”

 

 

Por enquanto, ela tem empurrado para cima o índice geral de abertura de empresas no País mesmo em meio à crise, seja por necessidade dos empreendedores - que de uma hora para outra ficaram sem emprego, sem renda e sem perspectiva de voltar ao mercado de trabalho – ou pela coragem de quem, mesmo diante do cenário nebuloso, decidiu largar a carreira para empreender. “Nesse grupo, é possível identificar pelo menos dois perfis”, diz o professor de empreendedorismo da FGV, Marcelo Aidar. “Os funcionários que já vinham alimentando o sonho de mudar de vida e estavam insatisfeitos com a rotina corporativa e os que identificaram uma boa oportunidade de negócio, que não pode esperar para ser executada.” É unanimidade entre os estudiosos do empreendedorismo que o segundo caso tem chances maiores de sobrevivência e de sucesso, por ser, em geral, mais bem planejado. Hoje, 30% dos brasileiros empreendem por necessidade e 70% por oportunidade. Rose e Pimentel estão no segundo grupo.

 

Quando decidiram dar uma guinada na vida profissional, os dois já conheciam bem a matéria-prima com a qual iriam trabalhar: carne seca, batata, mandioquinha. Vendiam esses produtos, cozidos a vapor e embalados a vácuo, em restaurantes da Grande São Paulo, e ensinavam os clientes a aproveitá-los na cozinha. “Vi que eles só faziam o básico e eu tinha certeza de que era possível tirar mais proveito daquilo tudo”, lembra Pimentel. Com 25 anos de experiência na área comercial, mas sem formação em gastronomia, ele contratou um chef de cozinha e começou a testar as receitas no ano passado para vender em estabelecimentos comerciais. Não deu certo. “Eles não ofereciam o escondidinho para os clientes e, por isso, também não faziam novos pedidos”, conta. “Até o dia em que saí recomprando de todo mundo e cheguei em casa com um isopor cheio para vender por conta própria.” A notícia de que as feiras gastronômicas tinham se consolidado na cidade chegou quase com o positivo no teste de gravidez e o casal decidiu tocar as duas empreitadas ao mesmo tempo. A estreia nas feirinhas aconteceu uma semana antes da chegada de Luca. “Foi difícil, mas não queríamos perder esse bonde”, diz Pimentel.

 

Filho de uma costureira e de um torneiro mecânico, o pai de Luca sempre quis ter o próprio negócio. Durante anos, idealizou vários projetos mas nunca teve coragem de colocá-los em prática. As vendas mais fracas na distribuidora onde trabalhava havia dez anos vieram para motivar sua decisão. “Vi colegas serem demitidos e percebi que mais cedo ou mais tarde seria minha vez.” Com o apoio de Rose, com quem está casado há sete anos, ele decidiu ir em frente. Rose se formou em Recursos Humanos e trabalhou em uma multinacional até eles se mudarem de São Paulo para Santos. Desde então, trabalhava com o marido na distribuidora.

 

 Perguntaram-me o que eu achava da recessão. Pensei a respeito e decidi que não participaria dela  Sam Walton, fundador do Walmart

 

Crise, para eles, é não ter um projeto de vida. “Não saber o que fazer, não ter um propósito, não ter um plano... isso é estar em crise”, diz o empresário. O que veem no noticiário econômico, Pimentel e Rose tentam reverter a seu favor. Costumam dizer que o brasileiro está cortando gastos, mas não vai deixar de comer. “Somos uma opção mais barata para quem deixa de frequentar restaurantes.”

 

Sob a perspectiva macroeconômica, eles são vistos também como um dos caminhos que podem ajudar o País a sair da recessão nos próximos anos. As pequenas empresas respondem hoje por 27% do PIB brasileiro e empregam 17 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE. “Não há nenhuma economia que saia da crise desconsiderando um segmento que é responsável por quase um terço do PIB”, diz Luiz Barreto, presidente do Sebrae. No início do mês, a entidade começou a promover uma campanha nacional para incentivar os consumidores a comprar em pequenos negócios. “Para que a gente volte a ter mercado, é fundamental dar suporte ao pequeno empresário e ao microempreendedor individual.” Quem está enquadrado nessa figura jurídica tem recebido atenção especial, já que são considerados uma porta de entrada para o empreendedorismo.

 

O plano do casal é, a partir do ano que vem, marcar presença em boa parte das 14 feiras gastronômicas da cidade de São Paulo, que estão recheadas de histórias como a deles. E, lá na frente, quando Luca começar a compreender as conversas dos adultos, Rose e Pimentel querem que o filho tenha uma boa história de sucesso para contar.

 

 

 

“Você é doido de largar um emprego na Vale”


CHRISTIANO MORENO PEDIU DEMISSÃO, FOI VIAJAR
E VOLTOU DECIDIDO A TER UM NEGÓCIO;
MAS O PAÍS QUE ELE DEIXOU  JÁ NÃO ERA MAIS O MESMO

 

Pós-sabático. Ex-executivo da Vale agora tem uma consultoria de RH e trabalha em escritório compartilhado.  NILTON FUKUDA/ESTADÃO

 

No dia 30 de julho do ano passado, quando Christiano Moreno embarcou com a mulher para um sabático, o dólar valia R$ 2,24, a taxa Selic estava em 11% e ainda havia perspectiva de que a economia poderia crescer 1,3% em 2014. Foram seis meses de viagem pela Suécia, Dinamarca, Noruega, Espanha, França, Alemanha, Japão, China, Nepal, Tailândia e Vietnã. Na volta, em janeiro deste ano, Dilma Rousseff havia acabado de tomar posse, depois de um ano em que o PIB avançou 0,1%, a taxa básica de juros já estava em 12,25%, e subindo, em um Brasil bem diferente daquele que ele deixou. Mas Moreno também já não era o mesmo.

 

No ano passado, quando pediu para sair da Vale, depois de dois anos em uma das maiores mineradoras do mundo, Moreno sabia que não queria mais enfrentar a rotina corporativa, com pouca autonomia e sem muita novidade. “Você tá doido, Chris? Sair de uma empresa como a Vale?”, era o que ouvia dos colegas e da família quando anunciou a decisão. “Eu estou buscando um propósito no meu trabalho”, era sua resposta. Com a carta de demissão e 11 países depois, o ex-executivo já tinha um plano desenhado para montar a Christiano Moreno Consultoria em RH. Aos 40 anos, sentia-se preparado para isso. Já havia passado por Tower Watson, ABN Real, Telefônica, Votorantim e, finalmente, pela mineradora, onde era responsável global pela área de expatriados.

 

 

O novo foco de Moreno é atender a pequenas e médias empresas, com a possibilidade de fazer projetos “transformacionais” que possam ir além do departamento de recursos humanos. Em seis meses, conseguiu, com muito suor, seis clientes. Os empresários têm levado mais tempo para assinar contratos e a negociação de preços é ainda mais desgastante. “Coloquei tudo na balança quando voltei e decidi arriscar mesmo assim”, diz. “Sei que se eu fizer com vontade e com disciplina, terei retorno.”

 

O retorno ao qual ele se refere não é financeiro. Se isso fosse prioridade, diz, não teria deixado a Vale e o salário parrudo da mineradora. Moreno está em busca de satisfação e de qualidade de vida. Depois de fazer as contas, ele viu que tem como segurar as pontas na empresa de consultoria por dois anos, sem uma boa remuneração.

 

 O executivo que decide empreender precisa estar preparado. No dia seguinte, ele estará numa salinha pequena, eventualmente sozinho, sem suporte de TI, sem área administrativa e financeira  Luiz Valente, diretor da consultoria de recursos humanos Talenses

 

Ter uma reserva financeira torna a guinada menos angustiante, já que uma série de outros dilemas virão à tona quando a carreira corporativa ficar para trás. “O executivo precisa estar preparado para, da noite para o dia, perder o cartão e a representatividade da companhia”, diz Luiz Valente, diretor da consultoria de recursos humanos Talenses. “No dia seguinte, ele estará numa salinha pequena, eventualmente sozinho, sem suporte de TI, sem área administrativa e financeira.”

 

Moreno trocou a sede da Vale por um escritório compartilhado, na região da Avenida Faria Lima, em São Paulo, a uma distância que consegue percorrer a pé ou de bicicleta de sua casa. Por enquanto, sou só eu mesmo e minha vontade de dar certo.

 

 

As lições de quem já
empreendeu na crise


EMPREENDER DURANTE PERÍODOS DE DIFICULDADE
ECONÔMICA FOI, NA VERDADE, O QUE MAIS OS BRASILEIROS
FIZERAM ATÉ AGORA; OS IRMÃOS, DONOS DA FÁBRICA DE FORNOS
PRÁTICA, "FRACASSARAM" SETE VEZES ANTES DE DAR CERTO

 

Entre empresas pelas quais passou e negócios que criou, o mineiro André Rezende conta já ter experimentado sete fracassos na vida. Assim que se formou como engenheiro de Produção, em 1982, ele  foi trabalhar na Engesa, uma fabricante brasileira de veículos militares que quebrou na década de  90. Depois passou pela Brascom, uma companhia inovadora que fazia microcomputadores, mas que perdeu todo o sentido com o advento da Microsoft.

 

Desiludido com a carreira profissional, tentou, com o pai, montar uma empresa de exportações – mas nenhum dos dois conhecia do assunto e eles fecharam as portas antes mesmo de assinar contrato com um cliente. Em Pouso Alegre, onde a família vivia, Rezende, os pais e os irmãos montaram uma loja de conveniência com padaria. Também não vingou. “Pegamos hiperinflação, confisco, tudo o que se pode imaginar”, diz o empresário. “Não estávamos preparados para lidar com a complexidade do cenário econômico naquela época e também não tínhamos vocação para ficar de segunda a segunda, atrás do balcão”, lembra o irmão Luiz Eduardo, hoje sócio do André em uma fábrica de fornos de Pouso Alegre (MG), que há um mês pediu na Comissão de Valores Mobiliários o registro de companhia aberta.

 

SETE FRACASSOS ATÉ DAR CERTOClique e assista ao videoLá atrás, com o dinheiro da venda do terreno da padaria, a família Rezende abriu  uma serralheria. Não durou muito. “Era commodity, não tínhamos diferencial para disputar mercado com grandes concorrentes”, percebeu depois. André Rezende tentou mais um pouco e usou o espaço para produzir estantes de aço. Chegou a fazer peças coloridas para vender em grandes varejistas, mas nunca conseguiu atingir a escala necessária para crescer com lucro.

 

Antes de ter a ideia que mudou o rumo da sua vida, o engenheiro de produção chegou a trabalhar numa fábrica de veículos fora de estrada, que havia acabado de se instalar em sua cidade natal. Era a JPX, de Eike Batista. O negócio durou três anos e o engenheiro teve, mais uma vez, de se virar.

 

No fim dos anos 90, André teve a sacada de produzir   para padarias fornos que consumissem  menos energia elétrica. Desenvolveu, como ele gosta de dizer, um produto com tecnologia alemã, desde o início: feito, improvisadamente, com vidro de Kombi e ventoinha de Fusca. Quando o negócio começou a engrenar, veio o apação em 2001. “Foi como se um meteoro tivesse atingido a empresa.” Os dois irmãos só conseguiram seguir adiante porque desenvolveram, noites a fio, um forno   a gás.

 

Hoje, a Prática emprega 400 pessoas e fatura cerca de R$ 120 milhões por ano. Com 180 produtos no portfólio, a empresa está abrindo neste ano uma filial nos Estados Unidos, que será tocada por um executivo americano. “Nós crescemos em meio à restrição”, diz André. “E agora queremos estar entre os maiores do mundo no nosso setor.”

Capítulo 1

DESEMPREGADO, NÃO. EMPRESÁRIO