Desafios do clima

Mais quente e seco

Giovana Girardi
Canarana (MT)

“Muita coisa por aqui está mudando. Não chove mais no dia certo. O rio está secando rapidamente. E mesmo quando chove muito, não está adiantando mais, está tudo bagunçado. E a quentura na aldeia tá demais. A gente toma banho três vezes ao dia. Em junho, julho, não tem mais aquela friagem, aquele vento forte que ficava quase três semanas. Antigamente os indígenas ficavam com o corpo vermelho de ficar perto do fogo. Não tem mais isso.”

O relato de Yakari Kuikuro, jovem liderança indígena, resume as impressões que tribos do do Parque do Xingu, localizado no norte do Estado de Mato Grosso, têm sentido nos últimos anos. Ele conta que tem uma ideia do que são as mudanças climáticas, e diz que desconfia que elas são em parte responsáveis pelo que está acontecendo no parque, mas suspeita que a principal causa seja um problema bem mais próximo, o desmatamento da floresta amazônica no entorno do Xingu.

Nas palavras de Yakari, o parque está virando uma ilha. De fato, entre 1997 e 2014, houve uma perda de 29 mil km², levando a uma redução de 33% na mata que existia na Bacia do Xingu (veja evolução da perda nos mapas abaixo), de acordo com dados do Instituto Socioambiental e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). E algumas observações dos indígenas estão ganhando respaldo da ciência. De acordo com uma pesquisa recém-divulgada, a conversão de floresta por pasto e soja tem elevado a temperatura local e diminuindo a quantidade de umidade que sobe para a atmosfera.

Este é um dos principais resultados de toda uma linha de investigação que vem, há mais de dez anos, analisando os impactos que a perda da floresta tem sobre o clima, a água, e, em última instância, sobre a sobrevivência da própria floresta – ou o que vai restando dela. O trabalho, realizado numa área de mata nativa dentro da Fazenda Tanguro, do grupo Amaggi (de Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do Brasil), ficou famoso por tocar fogo na floresta para descobrir justamente como o fogo a empobrece.

Parece meio paradoxal, e às vezes soar meio óbvio, mas o trabalho vem trazendo uma série de esclarecimento sobre com quanta destruição a floresta consegue lidar até atingir o seu limiar e também sobre como anos de seca extrema, como ocorreu na região Amazônica em 2005 e 2010, e as mudanças climáticas podem intensificar o poder de destruição dos incêndios.

5°C mais quente, 30% mais seco. Para chegar ao novo resultado, porém, os pesquisadores não precisaram destruir mais nada além do que já foi alterado por proprietários da região do Alto Xingu, onde fica a fazenda, entre os municípios de Canarana e Querência. Eles usaram apenas imagens de satélite e dados coletados por torres de medição de fluxo de gases, água e temperatura para traduzir em números uma sensação que não só os índios do Xingu estão relatando, mas também qualquer pessoa que saia de uma floresta para um campo de soja pode sentir.

“Quando converte floresta para soja, ocorre um aumento na temperatura da superfície de mais de 5°C. Quando transforma em pastagem, aquece cerca de 4°C. Além disso, ocorre uma redução na evapotranspiração, que é a quantidade de água que retorna para a atmosfera em forma de vapor, de 30% nos campos de soja. É essa água que vai se transformar depois em chuva”, afirma o ecólogo Divino Vicente Silvério, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), que fez a pesquisa em seu doutorado na Universidade de Brasília.

“Com as mudanças atuais, já existe uma redução na preciptação em alguns pontos dos País. A umidade que sai da Amazônia, desce em correntes de ar que vão para as regiões Centro-Oeste e Sudeste e lá vão cair em forma de chuva. Se tem menos umidade indo para a atmosfera aqui, pode estar resultando em mudanças no padrão de precipitação nessas regiões”, complementa.

O estudo, publicado no final de outubro na revista Environmental Research Letters, analisou as transições de uso da terra que ocorreram na Bacia do Xingu entre 2001 e 2010. Segundo Silvério, nesse período, a conversão de floresta para pastagem ou lavoura e também a transformação de pasto em agricultura fez com que 35 km³ de água deixassem de ir para a atmosfera em forma de vapor.

“Para comparação, esta quantidade de água seria suficiente para abastecer São Paulo (aproximadamente 12 milhões de pessoas consumindo em média 175 litros de água por dia) por 45 anos”, calcula.

O trabalho buscou medir, ainda, o papel das terras indígenas no clima local, considerando cenários hipotéticos com a existência do Parque do Xingu e sem ele. “Apesar de essas áreas protegidas corresponderem somente a 19% da bacia do Xingu, elas respondem por 30% da evapotranspiração da região. Se as terras indígenas tivessem sido desmatadas na mesma proporção das propriedades no seu entorno, a temperatura regional seria hoje 0,5°C mais quente.”

Clima global. Mas o que realmente pode se dizer que já está acontecendo no Brasil que seja provocado pelas mudanças climáticas? Faça essa pergunta a um climatologista e espere uma careta. É que essa é uma questão complexa, que não tem exatamente o exemplo A, B e C. Mais comum é ouvir: A mudança climática não vai trazer nenhum problema novo que a gente nunca viu, mas vai agravar aqueles conhecidos de todos nós e com os quais a gente ainda não sabe lidar muito bem, como secas e inundações. E vai aumentar a variação e a frequência desses extremos.

VÍDEO

Clima global

Confira no videográfico algumas mudanças já observadas.

Na semana que passou, a Organização Meteorológica Mundial anunciou que, faltando pouco mais de um mês para o ano acabar, 2015 já bateu o recorde de ano mais quente da história. Com a elevação, provavelmente o planeta já atingiu a marca de temperatura média 1°C mais quente que a observada em períodos pré-Revolução Industrial.

“É normal que exista variabilidade entre anos de seca e de chuva, mas coloque 1°C a mais sobre isso. Se muda a média, aumentam os extremos”, resume Brando. Ele cita como exemplo as secas históricas na Amazônia de 2005 e 2010. “Não necessariamente foram causadas pelas mudanças climáticas, mas o clima mais quente provavelmente deixou esses eventos mais intensos”, complementa.

O mesmo vale dizer, por exemplo, sobre a seca inédita que atingiu o sistema Cantareira no último verão, ou a seca que já dura quatro anos no Nordeste (leia mais sobre ela no capítulo 3).

“O que ocorre a cada cem anos, como a seca do Sudeste em 2014, no futuro vai ser mais comum. Não sabemos qual será a frequência de repetição, mas teremos mais rapidez de alternância para os dois lados, seco e chuva, e vamos ter de aprender a lidar com isso”, afirma o climatologista Carlos Nobre, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

As modelagens climáticas para o Brasil apontam também um risco de intensificação do processo de desertificação pelo qual passam hoje cinco regiões do Nordeste: em Pernambuco, Piauí, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. É o que explica o climatologista José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “A desertificação é um processo de degradação ambiental, que pode ser agravado pela mudança de clima. Por exemplo, pela redução ou sumiço das chuvas. Os núcleos de desertificação estão em áreas semiáridas, onde as projeções dos modelos mostram condições futuras de aridificação, ou seja, evapotranspiração maior que precipitação e isso eventualmente pode levar a desertificação.”

Algumas ondas de calor – evento que ganhou as notícias neste ano na Índia e na Europa –, também já foram observadas no Brasil. Em fevereiro de 2010, uma mistura de temperaturas acima de 39°C e umidade do ar abaixo de 21% levou à morte 50 pessoas na Baixada Santista.

A referência é que dias seguidos com temperaturas acima de 35°C, em que a mínima não baixa a menos de 21°C, e com umidade de 100% podem aumentar os riscos de enfartes, especialmente em quem tem problemas cardíacos e em idosos. No futuro, as modelagens climáticas apontam que regiões Norte e Nordeste devem ser as mais afetadas por ondas de calor.

“Assim como vários outros eventos, esse também acontece de vez em quando, é normal. Mas com o planeta 1°C mais quente, tende a ficar mais grave”, explica Nobre. As metas que os países estão levando para a Conferência do Clima de Paris deixam o mundo no trilho de ficar pelo menos mais uns 2°C mais quente, além desse 1°C, até o final do século. “Isso vai diminuir o limiar que as pessoas poderão suportar ao ar livre.”, complementa.

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