Roberto Lameirinhas, enviado especial a Caracas
Motoristas apelam ao mercado negro até para peças de carros
Motoristas profissionais da Venezuela – que não se restringem aos taxistas – têm sofrido com a crise de abastecimento que atinge praticamente todos os setores sociais e econômicos do país. Aqui, a contratação de serviços de carros particulares por usuários é comum há décadas, muito antes do Uber, sem que haja tensão com os motoristas de táxi oficiais. A gasolina a US$ 0,04 o litro favorece a atividade, que reforça o orçamento doméstico de centenas de milhares de venezuelanos e ajuda a congestionar o irritante trânsito de Caracas.
Um desses motoristas é Oscar, de 64 anos, que nos bons dias fatura até 3 mil bolívares (quase a metade do salário mínimo nacional de 7 mil bolívares) trabalhando apenas para clientes que são seus conhecidos. Mas a situação de Oscar se complicou quando a bateria do Chevrolet Aveo 2009 pifou.
“Tive de enfrentar uma fila de cinco horas na maior revendedora de Caracas só para que eles verificassem se havia uma bateria que servisse para o meu carro”, disse o motorista. Não havia. O ritual da fila se repetiu todos os dias pelos sete dias seguintes até que Oscar partisse para o mercado negro.
Na revendedora, o preço da bateria já seria salgado, algo em torno dos 6 mil bolívares – levando-se em conta o tipo de câmbio fantasia de 6,3 bolívares por dólar (o mais baixo dos três que vigoram no país), quase US$ 1 mil. Pressionado pela necessidade de trabalhar, o motorista se dispôs a pagar 35 mil bolívares por uma bateria compatível fabricada na China. “Isso se aplica a tudo: pneus, peças de embreagem, componentes do sistema de freio... tudo”, afirma Oscar. “No caso de pneus, sempre que vejo algum par de pneus meia-vida em alguma borracharia, eu compro e guardo em casa”, diz. “Tenho dez empilhados na minha garagem, pois sei que em algum momento vou precisar deles.”
Escassez causa temor de retrocesso no combate à aids
Grupos de apoio a portadores do vírus HIV e de prevenção da aids estão preocupados com o possível retrocesso da Venezuela no combate à doença. Os últimos números, de 2013, indicavam que o país tinha 84 mil portadores do HIV e pouco mais da metade deles, 44 mil, se beneficiavam do tratamento público e gratuito fornecido pelo Estado. Entre 2009 e 2012, o número de casos novos estava estabilizado e o de mortes em decorrência da aids vinha diminuindo.
“Fizemos um grande trabalho até agora, mas a situação de escassez que afeta vários produtos no país pode por tudo a perder”, disse ao Estado um funcionário da Onusida Venezuela, ligado ao Ministério da Saúde. “Há alguns anos, os pacientes têm sofrido com a falta de medicamentos antirretrovirais e, nos últimos meses, estamos enfrentando o problema da falta de preservativo.”
O funcionário explica que os bons resultados na redução de novos casos foram consequência direta da política oficial de distribuição gratuita de camisinhas. Mais da metade desses casos novos se registram entre homens de 17 a 24 anos e uma campanha intensa pelo uso do preservativo vinha sendo realizada. Com a escassez do produto, teme-se um aumento significativo de novas infecções.
Nos primeiros meses de 2015, uma caixa com 36 camisinhas chegava a ser vendida em sites como o Mercado Livre a preços equivalentes a US$ 500. Hoje, a situação de abastecimento de preservativos melhorou, mas o preço ainda é alto, em torno de US$ 5.
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Os comprimidos que compõem os coquetéis que retardam a ação do HIV também tem desparecido das prateleiras das entidades oficiais de tempos em tempos. “A falta de continuidade no tratamento com antirretrovirais causa a piora no estado geral do paciente, o aumento da taxa de abandono da terapia e a maior exposição do doente às infecções oportunistas que podem levar à morte”, explica o funcionário da Onusida.
Outro fator de preocupação é a falha no combate à chamada transmissão vertical, uma vez que soropositivas grávidas têm ficado sem o tratamento.
Há ainda a falta de reagentes para testes do tipo Elisa, o que dificulta o diagnóstico de novos casos. “É possível que, caso sujam novos indicadores referentes a 2013 e 2014, seja constatado uma redução na detecção de infectados”, diz o agente de saúde. “Mas isso se deveria muito mais à redução do volume de diagnóstico do que ao sucesso da política de prevenção.”
A Venezuela tem a terceira maior taxa per capita de infecção pelo vírus HIV na América do Sul, atrás apenas de Brasil e Paraguai, segundo dados da ONU.
Estradas e voos que levam a Táchira estão interrompidos
Além da fronteira com a Colômbia estar fechada, os caminhos que levam à região venezuelana de Táchira estão bloqueados. San Antonio de Táchira, a cidade vizinha de Cúcuta – já do lado colombiano – fica a 850 quilômetros de Caracas. Três companhias aéreas operam voos diretos tanto para lá quanto para Santo Domingo de Táchira, local de interesse turístico a duas horas de carro da fronteira. Mas já não há nenhum assento disponível nesses aviões. A viagem por terra costuma demorar entre 10 e 12 horas, mas “chequeos” montados nas estradas que levam ao sul da Venezuela têm causado congestionamentos que atrasam a travessia em aproximadamente cinco horas.
A população venezuelana é marcada por uma forte imigração colombiana, que costuma utilizar a Ponte Internacional Simón Bolívar para atravessar de San Antonio a Cúcuta com alguma frequência, para visitar parentes e fazer negócios. No entanto, vários desses imigrantes colombianos estavam desistindo da viagem no terminal rodoviário do Parque del Este, na capital venezuelana, segundo mostraram emissoras de TV do país.
Como praticamente qualquer área de fronteira da América Latina, San Antonio de Táchira abriga o submundo do contrabando. Produtos vendidos a preços subsidiados na Venezuela acabam atravessando a fronteira e sendo negociados pelo dobro – em alguns casos, o triplo – do preço no lado colombiano.
Jornalistas de Caracas afirmam que até mesmo itens vendidos no mercado negro na capital, como medicamentos e produtos de limpeza, são desviados para Cúcuta, onde mesmo assim chegam a preços mais baixos do que os do mercado colombiano.
Além da venda ilegal de produtos comuns, a fronteira em Táchira é considerada também um entreposto para o escoamento da cocaína produzida na Colômbia.
Entre 2006 e 2012, a reportagem do Estado fez várias incursões à região e constatou a forte presença de grupos armados colombianos na região de Táchira. Comerciantes locais eram forçados a pagar “imposto de guerra” tanto para bandos de paramilitares de direita quanto para supostos rebeldes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que disputavam o controle da região.
Nos anos seguintes, o enfraquecimento das organizações armadas colombianas e a forte militarização da fronteira por parte do governo venezuelano acabaram por reduzir significativamente a extorsão de dinheiro e as atividades do narcotráfico. Mas a área ainda é considerada um dos principais “ninhos” de “sicários” – como são conhecidos os pistoleiros de aluguel na Colômbia e na Venezuela – do continente americano.
Descontrole cambial afeta até o famoso ‘índice big mac’
As intervenções do governo de Nicolás Maduro para tentar controlar o câmbio na Venezuela conseguiram complicar um dos mais indicadores econômicos já criados para estabelecer a relação entre divisas nacionais e o dólar: o “Índice Big Mac”. Publicado pela primeira vez pela revista The Economist em 1986, a ideia era indicar o preço em dólar do sanduíche padronizado internacionalmente, algo que os economistas chamam de poder de paridade de compra.
O Big Mac hoje custa na lanchonete do Centro Comercial El Recreo, centro-leste de Caracas, 300 bolívares. Para o fantasioso tipo de câmbio que segue sendo a cotação oficial para a compra de alimentos e medicamentos, de 6,3 bolívares por dólar, o produto passa a ser, de longe, o mais caro do mundo, US$ 47,6. Por outro lado, se for levado em conta o câmbio paralelo, em torno de 100 vezes mais do que o oficial, o sanduíche se torna o mais barato do planeta, menos de US$ 0,50. Excetuando a Venezuela, o Big Mac mais caro está nas Noruega e o mais barato, na Índia.
Para tentar reduzir a confusão, a revista britânica passou a usar outra cotação, reconhecida pelo governo de Maduro, para estabelecer o preço do Big Mac em dólar: o Simadi, usado por viajantes e pelo setor de turismo, que flutua em torno dos 200 bolívares por dólar.
Mas essa não é a única distorção que compromete o índice. A questão é que, na Venezuela, o Big Mac não é o mesmo produto cuja receita é cantada nos comerciais da lanchonete que o produz em praticamente todos os demais países do mundo. O hambúrguer tem muito menos do que os 100 g que deveria ter, o pão é menor e o queijo chedar quase não aparece.
O gerente da loja disse ao Estado que esse era o Big Mac padrão da Venezuela desde sempre e afirmou que o sanduíche maior, mais parecido com o comercializado internacionalmente, é o chamado “cuarto de libra”.
Outro produto da lanchonete que destoa da versão padrão é a batata frita. Em Caracas, ela é mais clara, menos macia e mais fibrosa. O encarregado da loja apresenta aos clientes que se queixam das fritas um comunicado da empresa Arcos Dorados, que administra a franquia, no qual ela se desculpa pela falta do produto usado em outros países.
Em janeiro, a falta de batatas fritas importadas já havia levado os restaurantes da rede a substituir o produto por mandioca frita e “arepitas”, versões em miniatura da arepa, um dos quitutes mais consumidos da culinária venezuelana. Na ocasião, a Arcos Dorados atribuiu o problema a uma greve de portuários nos EUA.
Governo e opositores travam ‘guerra de versões’
A mais de 800 quilômetros da fronteira em Táchira, a guerra de versões toma conta da política em Caracas. O ponto alto desta disputa chegou por meio de imagens da TV colombiana NTN24, reproduzida por alguns canais privados da Venezuela, que mostravam soldados venezuelanos demolindo uma grande casa cor-de-rosa em San Antonio de Táchira.
De acordo com a NTN, a residência pertencia a uma grande família de colombianos que se radicara na região, onde prosperou à custa de trabalho duro no comércio local, havia muito tempo. Depois de mostrar o edifício de longe, a emissora exibiu imagens de um soldado venezuelano desenhado a letra “D” na frente da casa, numa indicação de que ela seria demolida.
A resposta chavista viria minutos depois. Câmeras da emissora estatal Venezolana de Televisión (VTV) entraram no imóvel e gravaram imagens de seu interior, onde havia mesas, cadeiras, balcões e paredes decoradas com quadros de mulheres nuas. Segundo o governo venezuelano, tratava-se de um prostíbulo usado por paramilitares que atuam na área e onde menores de idade eram submetidas à escravidão sexual.
Também a imagem de colombianos atravessando o Rio Táchira com vários pertences, como camas, armários e até cascos de cerveja vazios foram objeto da disputa midiática. Autoridades venezuelanas disseram que esses colombianos viviam num acampamento conhecido como La Invasión e nenhum dos que estavam em situação ilegal do lado venezuelano foi expulso pelo rio.
“Todos os colombianos deportados foram escoltados para fora do território venezuelano por meio da Ponte Internacional Simón Bolívar”, declarou à VTV um dos comandantes da operação. De acordo com essa versão, muitos dessas ilegais, sob a “vista grossa” de soldados de fronteira tanto colombianos quanto venezuelanos retornaram ao local por meio das “trochas” - as passagens ilegais quase sempre usadas para o tráfico de contrabando – para retirar móveis, utensílios e eletrodomésticos antes que as habitações precárias do assentamento fossem demolidas.
Repórteres da VTV também passam várias horas de sua programação mostrando armas, bombas de fabricação caseiras e peças de uniforme supostamente utilizados por paramilitares da Colômbia confiscados durante as buscas na região de San Antonio de Táchira. Por sua parte, opositores do governo de Nicolás Maduro exibem imagens feitas por emissoras colombianas de pessoas amontoadas perto da fronteira na cidade de Cúcuta, do lado da Colômbia.
Sensação de falta de segurança cresceu desde a morte de Chávez
Convergem para o necrotério de Bello Monte os cadáveres das vítimas da violência de toda a região de Caracas. Segundo dados da imprensa venezuelana, só no primeiro semestre deste ano, o local recebeu os corpos de 2.642 vítimas de assassinato – quase 15 por dia.
O necrotério é cuidadosamente guardado pela Polícia Nacional. Fotos não são permitidas e a presença de pessoas que não são parentes dos mortos é pouco tolerada.
No fim de semana, a reportagem do Estado conseguiu burlar o esquema de segurança e conversar com algumas pessoas que aguardavam na frente da entrada principal da instalação. Poucas se dispõem a falar e quase todas lamentam o ambiente selvagem da cidade, onde a vida humana passou a valer muito pouco.
As histórias são parecidas: a do jovem que aparentemente se tornou vítima de uma bala perdida em meio a um confronto entre gangues em Petare - “barrio” miserável do município Sucre, um dos que compõem a Grande Caracas –; o guarda de segurança assassinado por bandidos sobre motocicletas que visavam roubar seu revólver; a pós-adolescente morta pelo ex-namorado “barra pesada” que não aceitou a separação.
“Muitas vezes me perguntam se não tenho medo de caminhar antes do amanhecer, quando saio para trabalhar da minha casa em Vargas”, diz o auxiliar de serviços de construção Victor, que não quis dar o sobrenome, enquanto aguardava a liberação do corpo do primo, vítima de latrocínio no sábado à noite. “Eu respondo que tenho medo de andar nas ruas não só de madrugada, mas em qualquer hora.”
Pouco depois da morte de Hugo Chávez, em março de 2013, seu sucessor Nicolás Maduro prometeu agir para conter a violência principalmente na capital. Não conseguiu. A sensação de falta de segurança é um dos fatores mais citados nas pesquisas por eleitores que pretendem deixar de votar no chavismo nas eleições parlamentares de 6 de dezembro.
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