Cultura da gambiarra vira hipster

Sem impressoras 3D ou cortadoras a laser, espaços em comunidades no Rio e em São Paulo compartilham a ideia de que o jeitinho brasileiro é a cara do movimento maker

Rute Pina

Uma oficina comunitária se transformou no ponto de encontro dos moradores na Vila Nova Esperança, em São Paulo. De lá, já saíram produtos como quebrador de vidro, amassador de latas e estufa de garrafas. No Complexo da Maré, no Rio, resíduos eletrônicos ganham nova função num makerspace recém-inaugurado. A cultura maker sempre esteve presente nas favelas para resolver problemas cotidianos. É a boa e velha cultura da gambiarra. “Só que agora com uma roupagem hipster”, explica Clara Sacco, coordenadora do espaço na Maré.

A primeira ação do Bela Labe, inaugurado em julho, foi a realização do Gambiarra Favela.Tech, em parceria com o makerspace Olabi. Durante dez dias, participantes de diversas comunidades cariocas foram apresentados às práticas de eletrônica e pensaram em soluções para problemas do dia a dia. Viraram “gambiólogos”, como brincam os organizadores do Bela Labe, que funciona no Galpão Bela Maré, ponto de cultura mantido pelo Observatório de Favelas.

A brincadeira pegou. A “carreira” de gambióloga da assistente social Silvana Marcelina dos Santos, de 29 anos, já estava a pleno vapor bem antes do curso maker. Pequenos reparos em casa, por exemplo? Ela fazia tudo sozinha, com o suporte técnico do pai, que é mestre de obras. Silvana ainda transformou um armário de cozinha em estante de livros e um sofá velho em pufe. E foi essa habilidade que garantiu a ela uma vaga no Gambiarra Favela.Tech. Ela conta que o projeto foi uma porta para o universo maker. “Eu não tinha conhecimento de que havia um grupo mais amplo pensando e propondo essas ideias.”

Clara Sacco, coordenadora do espaço na Maré, diz que o projeto está começando. “Ainda não funcionamos como gostaríamos por falta de financiamento.” Além de um curso de formação de monitores, o grupo promoveu na primeira semana de dezembro uma oficina para “gambiólogos mirins”. Para 2016, a ideia é ter uma programação contínua. O centro carioca por enquanto conta com uma estrutura bastante básica, com mais ferramentas simples e menos tecnologia. “Aqui a gente faz a discussão de que a cultura maker também é tudo o que você pode fazer com as próprias mãos”, diz Clara. “É também uma disputa pela diversidade tecnológica.”

"Gambiólogos" na Gambiarra Favela.Tech, realizada em julho, no Complexo da Maré Crédito: Douglas Lopes

No extremo oeste da capital paulista, o mesmo incentivo é dado por Tempei Borba, de 35, responsável pelo Centro de Inovação da Vila Nova Esperança. Para ele, o movimento não pode ficar restrito às impressoras 3D, símbolos da cultura maker. “Elas são interessantes porque abrem possibilidades no fazer e derrubam a necessidade de habilidades manuais”, diz. “Mas o essencial mesmo é ter martelo e prego, papel e tesoura.”

Com esses materiais simples e algumas ferramentas básicas, os moradores da comunidade criam desde soluções para casa - como um pé novo para a cama - a objetos que ajudam o comércio local, caso da caixinha para organizar moedas. Para a estudante Kelly Jesus Santos, de 19 anos, o item mais importante vem sendo a máquina de costura. Ela está fazendo sua terceira bolsa, fora os muitos consertos em roupas. Também já participou de oficinas de criação de cadeiras e lanternas. “Quando eu não estou fazendo nada, venho aqui.”

O espaço está se tornando central na Vila Nova Esperança, por garantir ocupação e até renda para algumas famílias. “Quem não está empregado pode vir aprender alguma arte e ganhar dinheiro”, afirma Maria de Lurdes Andrade Silva, a Lia, líder comunitária. “Também é importante para não deixar as crianças nas ruas. No período que não estão na escola, elas podem criar alguma coisa.”

No centro, só há um limite para a criatividade das crianças. “A gente proibiu que elas fizessem armas, mesmo de brinquedo. Era algo que elas sempre queriam.” Para Borba, a sustentabilidade é outra dimensão importante da cultura maker. “Nas favelas, existe uma escassez de recursos. Um deles é financeiro, então a gente tenta ver o que está sendo desperdiçado.” Assim, garrafas, papelão, pallets: tudo é reaproveitado. “O brasileiro tem uma vocação para ser maker, para dar um jeitinho.”

Colaboraram Marcel Hartmann e Karina Menezes