Os pilares dos estádios modernos, no sentido literal e também no figurado, foram erguidos, paradoxalmente, a partir de uma tragédia. No dia 29 de maio de 1985, há 30 anos, o confronto entre torcedores do Liverpool e da Juventus, na final da Liga dos Campeões da Europa, no Estádio de Heysel, na Bélgica, causou a morte de 39 pessoas e deixou mais de 600 feridos. Esse foi um ponto de virada na história do futebol, exigindo que clubes, federações e governos adotassem novas regras de segurança e organização. Três décadas depois, o esporte se transformou no mundo todo.
“Desde então, tudo mudou no futebol”, contou Alain Courtois, vice-prefeito de Bruxelas, ex-secretário-geral da Federação Belga de Futebol e procurador do país presente em Heysel no dia do desastre. Nesta semana, ele acompanhou o
Estado em uma visita exclusiva ao local das mortes.
A mudança começou no próprio estádio e se expandiu em um movimento que acabaria se proliferando por toda a Europa e o restante do mundo, décadas depois. A capacidade do local foi reduzida de 65 mil para 48 mil lugares. Pela primeira vez, foi estabelecida a exigência de torcedores sentados em seus lugares. Ninguém pode assistir a uma partida em pé e, com isso, as “gerais” foram abolidas. Menor circulação, menor agrupamento, menor chance de tumultos. Em 1985, não havia uma divisão de torcidas. “Hoje, há sempre um bloco inteiro vazio para separar os torcedores, mesmo que a equipe adversária seja Andorra”, compara Courtois.
O desastre de Heysel ocorreu depois que torcedores do Liverpool (os temidos hooligans) atacaram os italianos que estavam na mesma zona da arquibancada. Para escapar da morte, a correria esmagou e asfixiou aqueles que estavam encostados em um muro, que também desabou. No bloco Z, onde o massacre ocorreu, outras mudanças são visíveis. Divisórias foram colocadas em cada setor. O muro que desabou foi substituído por outra estrutura, e as grades passaram a ter um novo sistema de abertura, sempre por fora. Câmeras foram instaladas em todo o estádio e o controle de acesso dos torcedores foi modificado.
O acesso ao estádio também mudou. Hoje, existem duas barreiras de verificação dos ingressos, antes de o torcedor chegar ao seu lugar. Os corredores também mudaram. É possível dar toda a volta no estádio e acessar por múltiplas entradas. Num dos cantos, uma central de polícia foi acompanha tudo o que ocorre no local. “Todos os clubes belgas foram obrigados a adaptar seus estádios, em obras que custaram mais de 50 milhões de euros”, explicou o vice-prefeito.
As mudanças estruturais de Heysel aconteceram, anos ou décadas depois, na grande maioria dos estádios do mundo. O Maracanã, por exemplo, completa neste ano uma década sem a Geral, setor mítico que acolhia personagens fantasiados - os geraldinos – que assistiam aos jogos de pé. Falar das mudanças de Heysel é falar, ao mesmo tempo, de quase todos os estádios do mundo.
Não foi exatamente a tragédia que mudou o futebol, mas as punições que vieram em seguida. Inicialmente, a Uefa, entidade que controla o futebol europeu, conseguiu evitar uma condenação, empurrando o tema para a federação belga e as autoridades de Bruxelas, capital do país. Mas, num recurso, a Justiça acabou também responsabilizando a entidade máxima do futebol europeu. Além disso, todos os clubes ingleses ficaram proibidos de disputar qualquer competição internacional por cinco anos, com exceção do Liverpool, que levou punição de seis temporadas.
Para Nicolas Ribaudo, jornalista que estava no dia do desastre e viu o muro desabar, existe um antes e um pós Heysel no futebol. “As mudanças não ocorreram depois do desastre, mas sim depois dos processos e das condenações”, disse. Courtois conta que, nos dias seguintes ao desastre, a seguradora que havia sido contratada simplesmente desligou o telefone e as autoridades sequer conseguiam falar com a direção da empresa.
As mudanças não foram apenas estruturais. Segundo Courtois, novas leis foram criadas e estabelecido o direito de prisão administrativa, caso a polícia considere que um torcedor represente uma ameaça em potencial. O objetivo era reprimir os hooligans, torcedores que se encontravam nos estádios com o objetivo premeditado do confronto. Outra medida importante foram os amplos poderes para que as polícias nacionais cooperassem com a troca de informação. “O combate inglês ao hooliganismo foi um marco. Embora baseado na repressão e, em alguns momentos, ferindo o direito constitucional, a política controlou o problema, que persiste apenas nas divisões inferiores”, explica Bernardo Buarque de Holanda, professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV.
Heysel foi a tragédia mais famosa e ganhou o status de marco zero porque foi transmitida pela tevê, ao vivo, para cerca de 400 milhões de pessoas no mundo todo, o que gerou grande impacto no mundo todo. “Foi uma tragédia transmitida ao vivo, em uma final de campeonato, que teve impacto no mundo todo”, explica o professor. Mas, rigorosamente, outras duas tragédias impulsionaram a melhoria das condições dos estádios. Em 1989 em Hillsborough, estádio do Sheffield Wednesday, 96 torcedores foram esmagados contra as grades das arquibancadas – elas eram resistentes para dificultar as invasões de campo de hooligans. O jogo reunia Liverpool e Nottingham Forest, pelas semifinais da Copa da Inglaterra.
Quatro anos antes, em 11 de maio de 1985, um incêndio destruiu em minutos parte do estádio Valley Parade, do Bradford City. Foram 56 mortos e 265 feridos. O jogo era de festa para os fãs do Bradford, que comemoravam o título da terceira divisão e o acesso à segundona. Detalhe: o incêndio aconteceu 18 dias antes de Heysel.
Toda as medidas para mudar a concepção dos estádios ingleses foram consolidadas pelo inquérito conduzido pelo Lorde Taylor de Gosforth para investigar a tragédia em Hillsborough. O documento ficou conhecido como Relatório Taylor. As principais causas apontadas para as mortes foram a falha do controle policial sobre a multidão e a inadequação das instalações do estádio, explicações que servem para todas as tragédias do período. Foi aí que o futebol mudou. “Foi algo irreal. Eu me dei conta da dimensão do desastre quando vi os sacos para os corpos. Eu nunca tinha visto mortos”, disse o vice-prefeito de Bruxelas.
Segundo François Collins, jornalista que estava no local, o tema da segurança simplesmente não existia. “Uma semana antes do jogo, eu fui para Liverpool entrevistar os dirigentes do clube e, quanto eu questionei sobre a situação dos hooligans, ele garantiram que o problema não existia”, disse. “Todos, inclusive a polícia, estavam convencidos de que seria um jogo normal”, completou.