‘Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos’ faz o autor andar no limite entre realidade e ficção ao retratar a vida do escritor norte-americano com forte base nos seus escritos literários
Guilherme Sobota
Quando no início dos seus 30 anos o escritor francês Emmanuel Carrère passava por uma crise religiosa e profissional, sem ideias e sem desejo de escrever, ele aceitou a sugestão de seu agente: escrever uma biografia. O nome do biografado lhe veio à mente na hora: Philip K. Dick (1928-1982).
Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos (que a Aleph publica agora no Brasil; o livro foi lançado primeiro em francês, em 1993) é uma biografia, digamos, heterodoxa: em vez de fuçar arquivos, documentos e decupar centenas de entrevistas, Carrère reconstruiu a vida do escritor norte-americano com base em uma biografia previamente publicada e no trabalho de ficção de Dick, além de um grupo pequeno de entrevistados.
Gostei de escrever esse livro e, durante o processo de escritura, sempre tive o estranho e reconfortante sentimento de que Dick, ele mesmo, onde quer que estivesse, estava lendo o que eu escrevia, sobre o meu ombro, e que ele sorria e me dizia: ‘bom trabalho, estou gostando’”, conta Carrère, em uma troca de e-mails com o Estado. “Eu ainda tenho esse sentimento.”
A falta de fontes explícitas no texto – que fez críticos amarem e odiarem o livro quando ele foi lançado em inglês, no início do século – é compensada pela elegância com que Carrère conduz a história maluca de Dick. De 1955, ano de seu primeiro livro, até 1982, Dick publicou 44 romances e 121 contos, uma média de um romance a cada sete meses e um conto a cada 81 dias, sem parar, por 27 anos. O ritmo visivelmente frenético foi mantido à base de muita anfetamina – apesar dos boatos que sempre circularam à sua volta, Dick passou mais ou menos batido pelo LSD, a droga da moda na sua época, tendo apenas uma ‘bad trip’ em toda sua vida (e outro boato divertido é que a “revelação” religiosa que lhe ocorreu mais tarde seria um flashback dessa única viagem). Outros livros de sua autoria ainda seriam publicados postumamente e é provável que ainda existam alguns por publicar.
A batalha interna que Dick travou com a ficção científica, um gênero que ele dominou como poucos, mas que lhe trouxe reconhecimento amplo apenas após sua morte, e a batalha que travou consigo mesmo no terreno teológico - ele foi durante a maior parte de sua vida adulta um católico convertido - são um material rico para qualquer biógrafo, mas ele se expande na escrita romanesca de Carrère. Por isso, o subtítulo da versão em inglês da obra (Uma jornada na mente de Philip K. Dick) é mais preciso do que o da brasileira, A Vida de Philip K. Dick.
Um tema largamente explorado pelo livro é a dificuldade que o escritor sentia em ficar sozinho: foram cinco casamentos, um período de alguns meses em que sua casa se transformou num ponto de uso e tráfico de drogas, uma temporada voluntária numa clínica de reabilitação e até um par de semanas no apartamento de um casal de desconhecidos no Canadá. A mistura entre drogas sintéticas e paranoia latente fizeram de Dick um sujeito complicado, para dizer o mínimo.
Por exemplo, sobre a relação de Dick com uma de suas mulheres, Carrère escreve no livro: “Ela o desprezava dizendo-lhe que era um miserável, mas ela precisava de um miserável para desprezar, enquanto ele sentia uma volúpia sinistra ao dar-lhe razão, portando-se como um miserável. Dedicara a ela O Homem do Castelo Alto, como prometido, mas ela empalideceu ao descobrir os termos da dedicatória: ‘Para Anne, minha mulher, de quem sem o silêncio eu não teria escrito esse livro’. Uma pequena obra-prima da grosseria, golpe baixo de um Untermensch…”
Carrère faz durante seu livro paráfrases dos romances mais importantes do escritor, alguns proféticos, o que transforma as 350 páginas de Eu Estou Vivo... em uma espécie de ensaio crítico biográfico. A mais acentuada dessas paráfrases é justamente a de Valis, romance publicado em 1981. No livro, Horselover Fat conta ao narrador - Philip K. Dick - sobre a sua “revelação”, o dia em que Deus (quem mais seria?) lhe apareceu como um clarão de luz cor-de-rosa e transmitiu uma mensagem sobre a doença do seu filho. Ele então leva a criança ao médico e salva sua vida com as informações concedidas pelo divino.
O episódio, porém, foi vivido por Philip K. Dick no mundo real, segundo o próprio alardeou em várias entrevistas nos últimos anos de sua vida -- que foram dedicados, com um apetite ambicioso, à escrita de sua Exegese (o nome que se dá aos textos de interpretação teológica). Uma edição - de mais de mil páginas - desse trabalho foi publicada em 2011. Dick buscava com isso entender os desígnios de Deus e encontrar a chave do fim do mundo. Morreu tentando, segundo Carrère, em um limbo numa cama de hospital, no ano de 1982. Escreve o francês: “Será que no final desse limbo se escondia uma resposta e, sendo o caso, haveria alguém lá para ouvi-lo?”
Essa resposta, nem Philip K. Dick pôde nos fornecer.
Você diz claramente que usa os livros de Dick - trabalhos de ficção - como uma fonte quando não havia outra disponível. Como isso não era um problema?
Eu sabia muito pouco sobre a vida dele, de fato, mas tinha lido quase todos os seus livros e estava convencido, não me pergunte por que, que alguém poderia ler esses romances de ficção científica, imaginação pura à primeira olhada, como uma autobiografia disfarçada. Mas não é verdade que não havia outra fonte. Felizmente, já existia uma biografia americana, Divine Invasions, de Lawrence Sutin. Aqui estava toda a informação factual de que eu precisava e não seria capaz de coletar por mim mesmo, já que não vivia na Califórnia, onde Dick morou sua vida toda. Então li o excelente trabalho de Sutin, fiz anotações que tomaram umas 20 páginas, como, ‘esse ano ele casou com sua quarta mulher’ ou ‘se mudou para outra casa’, e depois disso nunca mais usei o trabalho de Sutin. Eu sabia o suficiente. Usei essas informações em conexão com os livros de Dick e me senti muito feliz ao descobrir que a minha ideia funcionou perfeitamente. Escrever esse livro deu um trabalho bem grande, mas eu realmente gostei. E nunca me senti entediado na excelente companhia de Philip K. Dick.
PKD é um dos seus heróis literários, certo? Você pode resumir por quê?
Eu frequentemente dizia que Dick era o Dostoiévski do nosso tempo. Ele era o mesmo tipo de escritor visionário que o russo. Se quisermos entender o século 20, temos que ler Os Demônios. Se quisermos entender o século 21, temos que ler Ubik, O Homem no Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Um Reflexo na Escuridão. Aqui está a verdade sobre o nosso tempo.
Você mudaria algo no seu livro?
Honestamente, não.
Veja trailers das adaptações da obra do escritor americano às telas
Filme apocalíptico criado por Ridley Scott em 1982 levou realizadores como Spielberg e John Woo a dirigir outras adaptações
Antonio Gonçalves Filho
A mais recente adaptação de um livro de Philip K. Dick é uma série de televisão baseada em O Homem do Castelo Alto (1962), distopia sobre um mundo em que os países do eixo vencem a Segunda Guerra e escravizam a humanidade. A série estreou em 2015 e não tem a força de outras adaptações produzidas para o cinema, especialmente a primeira delas, Blade Runner - O Caçador de Andróides, realizada em 1982 por Ridley Scott.
Blade Runner é um apurado exemplo do gênero neo-noir e também o melhor dos filmes baseados em Philip K. Dick, cuja paranoia se justifica: ele foi perseguido pelo FBI por se relacionar com o Partido Comunista americano. Suas críticas às sociedades totalitárias, porém, mostram que a visão distópica do escritor diz respeito não só a elas. Alguns dos seus livros mais populares tratam de um mundo devastado pela guerra entre potências nucleares (Second Variety, um conto de 1953, filmado em 1995 como Assassinos Cibernéticos, trata exatamente do tema).
Em Blade Runner, esse mundo já é uma ruína em 2019. A futurista Los Angeles é consumida pela chuva ácida, engenheiros genéticos fabricam replicantes e clonam animais extintos. Quem tem cabeça, busca nas colônias fora da Terra um refúgio. Às vezes, porém, essa não é a melhor saída. É o caso de Total Recall/O Vingador do Futuro, filmado em 1990 por Paul Verhoeven (com base no conto Lembramos para Você a Preço de Atacado). Nele, um operário com memória implantada para simular uma viagem a Marte se une a um grupo de rebeldes e enfrenta uma corporação que domina o planeta. Não é melhor a situação do policial paranormal e viciado de Minority Report (2002), dirigido por Spielberg. O futuro, na obra de Philip K. Dick, é sempre um pesadelo.
Apresentação: Robert Crumb desenhou em oito páginas a experiência divina que Philip K. Dick teve nos primeiros meses de 1974, retratada no romance Valis e em outras obras do período final da vida do escritor. A editora Aleph, em parceria com a editora Veneta, publicou a obra encartada na edição brasileira de Valis, e cedeu a obra para sua reprodução aqui.
Tradução: Alexandre Matias
Publicado originalmente em 1986 na edição #17 na revista Weirdo