SUICÍDIO VIRA FARSA

Como era um herói, Santos-Dumont não se matou e sim morreu do coração. Essa foi a versão divulgada na época da morte. Era uma farsa. A mentira acabou registrada no Cartório Civil do Guarujá. O termo 319, lavrado no livro C-3, folha 15, diz que “aos 23 de julho de 1932, em Guarujá, compareceu Próspero Ângelo Esmolari e declarou que em seu apartamento do Grande Hotel do Guarujá, neste Districto, às 11 horas do dia de hoje, faleceu o cidadão Alberto Santos Dumont, sexo masculino, cor branca, solteiro, engenheiro inventor, natural do estado de Minas Gerais e residente em São Paulo, com 59 anos de idade. Atestou o óbito o doutor Roberto Catunda, que deu como causa-morte colapso cardíaco”.

Ângelo Esmolari era gerente do Grande Hotel La Plage, o cinco-estrelas na Praia de Pitangueiras que recebia integrantes da alta sociedade brasileira e onde o inventor viveu as últimas semanas de vida. Santos-Dumont ocupava o apartamento 152, no primeiro andar. No quarto ao lado, de número 151, ficava Jorge Dumont Villares, o sobrinho que cuidou dele nos últimos meses de vida. Ao fim da manhã do dia 23, após caminhar pela praia, o inventor subiu para sua suíte e, sem deixar qualquer tipo de carta ou mensagem, enforcou-se com duas gravatas no cano do chuveiro.

O relato a seguir é de um personagem central do caso, o delegado Raimundo de Menezes, enviado de Santos ao Guarujá. Foi publicado numa reportagem assinada por Edmar Morel em 16 de outubro de 1974, na revista O Cruzeiro: “Uma noite, recebi a informação vinda de Guarujá de que o grande inventor fora encontrado morto no banheiro. Organizei a caravana e para lá seguimos. No “Hotel La Plage”, o mais elegante daquela praia, tivemos que arrombar a porta do banheiro, por cuja claraboia se avistava o corpo pendurado numa gravata ou num cordão de roupão. Magríssimo, era ele um feixe de ossos. Persuadido de que era o culpado pela invenção do avião, que estava servindo para bombardear os seus patrícios, disse por várias vezes a Edu Chaves, com quem se encontrava alojado no hotel, que se sentia angustiado por isso. Aproveitando um instante de descuido realizou o seu intento: enforcou-se. Comuniquei imediatamente ao chefe de Polícia, dr. Tirso Martins, o ocorrido, bem como o pedido da família para que lhe fosse entregue o corpo, sem maiores formalidades legais. Autorizado, assim procedi, tendo por isso os jornais do dia seguinte anunciado o episódio como morte natural, havendo o médico legista dr. Roberto Catunda dado o atestado assim afirmando. Não houve inquérito policial. Tratava-se de uma glória nacional. Daí a ordem da Secretaria de Segurança, a pedido da família. Eis o que sei a respeito.”

Galeria: Grande Hotel La Plage

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Anos depois, Raimundo de Menezes passaria a se dedicar a biografias e dicionários. Além de presidir a União Brasileira de Escritores (UBE) entre 1967 e 1980, ele ocupou a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras. Secretário executivo da UBE por quatro décadas, o escritor Caio Porfírio Carneiro conviveu com Raimundo por muitos anos e se lembra de ouvi-lo falar de quando encontrou Santos-Dumont pendurado num cano de chuveiro.

“Ele era muito calado, mas costumava contar que um dia estava em Santos e foi informado de que uma pessoa havia se enforcado no banheiro de um hotel no Guarujá. Quando chegou ao local, viu que era Santos-Dumont. Sua primeira ordem foi: ‘Ninguém toca aqui, ninguém se aproxima’. Mandou então fecharem o quarto e fez toda a segurança até levarem o corpo para São Paulo.” Sobre o motivo de a morte ter sido registrada como colapso cardíaco em vez de suicídio, nenhuma palavra. “Ele só dizia que Santos-Dumont era um homem que tinha depressões e deve ter entrado em uma depressão grande para se enforcar.”

Em 1988, o jornalista Valdir Sanches publicou no Jornal da Tarde a reportagem Os Últimos Dias de Santos Dumont, no Guarujá. Nela, entrevista funcionários do hotel e outras pessoas que conviveram com o aviador em 1932. Elas contaram que o inventor passava muito tempo sentado no saguão do hotel, sem falar com ninguém. O sobrinho lia para ele os jornais e evitava que as pessoas se aproximassem e chateassem o tio. Uma de suas poucas atividades era caminhar pela praia. Um dos antigos porteiros do hotel destacou que “quando passava um avião Santos-Dumont levantava-se da poltrona, no saguão, saía à porta do hotel e ficava olhando, com os braços para trás. Daí a pouco voltava ao saguão, sem comentar nada com ninguém. E logo subia para seu quarto”. A Revolução Constitucionalista começara em 9 de julho, duas semanas antes do suicídio do aviador.

Nove dias antes da morte, Santos-Dumont fez sua última manifestação pública. No texto escrito à máquina, apelou à união e à ordem constitucional. Depois, à mão, acrescentou a palavra “mineiros” depois de conterrâneos.

“São Paulo, 14 de Julho de 1932.
Meus patricios,
Solicitado pelos meus conterraneos mineiros moradores neste Estado, para subscrever uma mensagem que reivindica a ordem constitucional do paiz, não me é dado, por molestia, sahir do refugio a que forçadamente me acolhi, mas posso ainda por estas palavras affirmar-lhes, não só meu inteiro applauso, como tambem o appello de quem, tendo sempre visado a glória da sua patria dentro do progresso harmonico da humanidade, julga poder dirigir-se em geral a todos os seus patricios, como um crente sincero em que os problemas de ordem política e economica que óra se debatem, somente dentro da lei magna poderão ser resolvidos, de forma a conduzir a nossa pátria à superior finalidade dos seus altos destinos. Viva o Brasil Unido”

O suicídio interrompeu a guerra por um dia. “Em homenagem à memória do imortal pioneiro da aviação, as unidades aéreas do Destacamento do Exército Leste deixarão de bombardear hoje as posições militares inimigas.” A trégua de 24 horas foi proclamada pelo general Goes Monteiro, comandante das tropas legalistas, em 25 de julho de 1932. Na mesma data, o presidente Getúlio Vargas decretou luto oficial de três dias no País.

Hoje, o Grande Hotel La Plage não existe mais. No lugar, há dois prédios residenciais e um conjunto comercial. A antiga área de lazer do hotel, com piscina e salão de festas, tornou-se na década de 1960 o Clube da Orla, que anos depois foi transformado no Shopping La Plage, inaugurado em 1992. Numa praça ao lado, a prefeitura colocou em 1971 um busto do inventor. Também está em exposição, na Avenida Leomil esquina com a Puglisi, o carro fúnebre que transportou o corpo de Santos-Dumont do Guarujá para São Paulo no dia da morte.

Na capital paulista, o corpo foi trasladado para a cripta da Catedral da Sé, onde permaneceu por seis meses, de julho a dezembro de 1932. O fato, porém, acabou esquecido. Foi a reportagem que contou ao guia da cripta Marcelo Saraiva que o corpo do inventor também esteve por lá.

Galeria: herói morto

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A permanência na cripta e a missa de corpo presente em sua intenção podem ajudar a explicar a omissão do suicídio como causa da morte. Na época, a Igreja Católica seguia o Código de Direito Canônico de 1917, taxativo ao afirmar no cânon 1.240 que quem se suicidava “deliberadamente” deveria ser “privado de sepultura eclesiástica, salvo se tivesse manifestado algum sinal de arrependimento antes da morte”. A chamada privação das exéquias também se aplicava a apóstatas da fé cristã, participantes de seita “herética, cismática e maçônica”, excomungados ou interditados, mortos em duelo, pecadores públicos e solicitantes de cremação de seu cadáver. O mesmo item do código determinava que, em caso de dúvida, fosse consultado o bispo local.

De acordo com frei André Boccato, professor de Teologia Moral e Bioética, o caso de Santos-Dumont seguramente seria enquadrado segundo esse cânon, que vigorou sem mudanças até a década de 1980, quando o papa João Paulo II outorgou uma nova legislação canônica.

No cânon 1.184 do Código de 1983, que trata da privação das exéquias eclesiásticas, constam como excluídos:
1) Os apóstatas, os hereges e os cismáticos notórios;
2) Os que escolheram a cremação de seus corpos, por motivos contrários à fé cristã;
3) Outros pecadores manifestos, caso forem motivo de escândalo público.

“Hoje, havendo como panorama de fundo o critério da misericórdia sobre a lei e da salvação das pessoas (cânon 1752), aliado à evolução das ciências na compreensão mais profunda do ser humano, não temos elementos objetivos para excluir da celebração de corpo presente um caso de suicídio, pelo simples fato de não sabermos os reais motivos do suicídio”, explica frei André. “Antes de toda e qualquer atitude condenatória, tem-se presente a mensagem de Cristo, legada à humanidade no momento crucial de sua morte, ao bom ladrão: ‘Hoje mesmo estarás presente comigo no paraíso (Lucas 23,43).’”

Frei André ressalta que no cânon de 1983 já não se fala praticamente nada sobre a questão da privação das exéquias para suicidas. “Já no de 1917 (tempo de Santos Dumont), havia essa proibição canônica. O fato é que, para a mentalidade da época, era um escândalo. Sendo assim, o bispo deveria não apenas aplicar a norma do cânon, como também evitar maiores escândalos entre os cristãos ou católicos na sociedade.”

“Hoje, os suicidas merecem as mesmas orações e a mesma compaixão da comunidade. A Igreja reza pelos suicidas, reza pelos homicidas, porque segue a ideia de que acima de nós há um Deus misericordioso”, completa o coordenador de Pastoral da Arquidiocese de São Paulo, padre Tarcísio Marques Mesquita. Segundo ele, ciências que lidam com emoção e afetividade, como a Psicologia, ajudaram a recompor a relação pastoral da evangelização da Igreja com os fiéis.

Ícaro de Saint-Cloud. ACERVO CENDOC Traslado. Da cripta da catedral, o corpo de Santos-Dumont foi levado para o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, no jazigo por ele mesmo decorado com uma réplica do Ícaro de Saint-Cloud, a escultura em sua homenagem instalada nos arredores de Paris. A transferência só foi feita após o fim da Revolução Constitucionalista, em dezembro de 1932.

Na quarta-feira, dia 14 de dezembro, os jornais anunciaram que a partir da tarde seguinte, “às vésperas do traslado do corpo do genial brasileiro para o Rio de Janeiro”, a população paulista teria oportunidade de demonstrar sua admiração por Santos-Dumont antes de seu corpo ser levado ao Rio.

Depois de lembrar que o falecimento de Santos-Dumont ocorrera numa data em que “São Paulo se achava preoccupado com os acontecimentos de Nove de Julho” e por isso “o Pae da Aviação não teve de parte da população da capital as homenagens que por certo lhe seriam prestadas em outras circumstancias”, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou: “O corpo do grande inventor, que se encontra na crypta da Cathedral de São Paulo, será exposto á visitação pública de amanhan ás 12 horas em diante. Esse primeiro dia, porém, por solicitação de directores e professores, será reservado exclusivamente para as crianças das escolas. No dia 16 e parte de 17, até a hora do embarque para o Rio, o publico em geral poderá desfilar diante do ataúde de Santos Dumont”.

Veja a edição que noticia a morte de Santos-Dumont Em 21 de dezembro de 1932, sob forte temporal, o corpo de Santos-Dumont foi enterrado no Rio com honras de ministro de Estado. O governo provisório decretou o dia feriado nacional. Getúlio Vargas participou da cerimônia em companhia da mulher e do ajudante de ordens.

Mas o que a população não sabia é que o corpo do aviador fora enterrado sem o coração. O órgão havia sido retirado um dia depois da morte, em 24 de julho, pelo autor da autópsia, o médico austríaco e professor de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina de São Paulo, Walter Haberfeld. Só 12 anos depois, em 24 de outubro de 1944, o coração reapareceu. Em cerimônia muito divulgada pelos jornais, durante as comemorações da Semana da Asa, o presidente da Panair do Brasil Paulo Sampaio entregou ao ministro da Aeronáutica Salgado Filho o órgão embalsamado dentro de um escrínio feito por Américo Monterosa e Guy Eymminet. Um Ícaro de bronze sustenta uma esfera de metal dourado cheia de perfurações simbolizando as estrelas. Dentro está outra esfera de cristal, com formol envolvendo o coração.

Ícaro sustenta esfera com coração de Santos-Dumont. WILTON JUNIOR/ESTADÃO O órgão já esteve na Academia da Força Aérea de Pirassununga, no interior paulista, e hoje está em exposição no Museu Aeroespacial, no Campo dos Afonsos, no Rio. Sobrinho-bisneto do inventor, Marcos Villares Filho conta que o órgão foi retirado pelo legista sem autorização da família. Especula-se que o médico tenha feito isso para que um dia pudesse ser comprovada a verdadeira causa da morte do inventor.

A fraude em relação à causa da morte não teve nenhuma consequência legal, embora o correto fosse a abertura de inquérito policial para descartar a possibilidade de participação de uma segunda pessoa na morte. Como explica o professor do Centro de Altos Estudos de Segurança, coronel José Vicente da Silva, em casos do tipo, de morte violenta, a polícia deve fazer a perícia do local para apurar, entre outras coisas, se havia sinal de arrombamento. “A conclusão do inquérito é que vai determinar se foi realmente suicídio.”

Ele lembra, porém, que, apesar do que determina a legislação, a história registra muitos casos de interferência política e econômica nos anais e processos policiais. “A polícia nunca foi totalmente refratária a esse tipo de influência e arranjos informais”, afirma, destacando que a Constituição Federal de 1988 dificultou as fraudes porque o Ministério Público passou a exercer controle externo sobre a atividade policial. “Se o policial não adotar a medida prescrita na legislação, ele pode ser processado por prevaricação, pois ninguém pode determinar a quebra da lei”, acrescenta o coronel.

Disposto no Artigo 319 do Código Penal, o crime de prevaricação significa “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” e pode levar a pena de detenção de 3 meses a 1 ano e multa.

Folheie o Suplemento de Rotogravura feito pelo 'Estado' em homenagem a Santos-Dumont no ano de sua morte

DAS SUPERSTIÇÕES À FAMA DE AZARADO

Enquanto muitos pioneiros da navegação aérea perderam a vida testando suas máquinas voadoras no começo do século passado, Santos-Dumont escapou ileso de todos os acidentes que sofreu, inclusive o do hotel Trocadero, em 8 de agosto de 1901, quando ficou pendurado a 20 metros de altura. Mesmo assim, não escapou da fama de azarado.

Reportagem do Jornal do Brasil de 6 de março de 1996 diz que algumas tripulações não gostavam de citar o nome de Santos-Dumont durante os voos por medo de pane. A fama teria surgido, de acordo com o texto, quando o Aeroporto do Rio de Janeiro mudou o nome para Santos-Dumont. Em 5 de agosto de 1936, a Vasp organizou um evento em que um voo saía do Rio para São Paulo e outro de São Paulo para o Rio com o objetivo de aterrissarem ao mesmo tempo. Ambos se acidentaram. O avião Cidade do Rio bateu em carretas que estavam na pista em São Paulo e o Cidade de São Paulo teve de dar um cavalo de pau e bateu em hidroaviões da Panair. Ninguém morreu.

Durante a construção do aeroporto, arquitetos e engenheiros já usavam as iniciais AD nas plantas, em vez de SD. “Para mim foi uma surpresa, mas na época em que escrevi o livro O Brasileiro Voador, Um Romance Mais Leve que o Ar (Editora Record) vi gente comum, mais velha do que eu, dizendo ‘Eu vou naquele aeroporto’ para não dizer Santos-Dumont”, confirma o escritor Márcio Souza.

Outro caso famoso causou um profundo desgosto a Santos-Dumont. Aconteceu em 1928, quando ele voltava ao Brasil e admiradores organizaram uma recepção com alguns aviões. Um hidroavião, que levava seu nome, acidentou-se e matou todos os ocupantes.

“Dizem que pintaram o nome Santos-Dumont na hora para fazer uma homenagem e jogar flores, mas o avião perdeu sustentação e virou tragédia”, lembra o artista plástico Guto Lacaz. “Essa fama de azarado é construída, brasileiro é supermaldoso. Ele sofreu acidentes, escapou da morte várias vezes. Diziam: Santos de casa não faz milagre, porque ele não voou no Brasil.”

Santos-Dumont também tinha fama de supersticioso. Entre as supostas manias do aviador, estava a de não pegar em nota de 5 mil réis – depois, ele acabaria estampando a nota de dez mil cruzeiros –, e só voar com o pescoço enrolado por uma meia que pertenceu a Madame Letellier, mulher conhecida pela boa sorte na França, e com a medalha de São Bento dada pela princesa Isabel pendurada numa pulseira no braço esquerdo.

ACERVO MEMÓRIA ITAÚ

Assim como várias passagens da vida do inventor, porém, a fama de azarado também acabou esquecida. A pedido do Estado, a assessoria de imprensa da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil (Abrapac) consultou os seis diretores da entidade sobre o assunto – quatro disseram nunca ter ouvido falar da fama do aviador e dois não responderam.

Para o piloto aposentado Ernesto Klotzel, de 88 anos, que começou a voar nos anos 1950, a superstição em relação a Santos-Dumont era apenas uma entre outras. “No nosso grupo (de pilotos), o pessoal não gostava, por exemplo, quando subiam religiosas no avião. Porque elas vestiam aquela indumentária preta na cabeça, nunca entravam sozinhas e ficavam rezando com o terço na mão.”


Inventor foi contra plano de usar o Campo dos Afonsos para aviação

Não deixa de ser irônico que o coração e os documentos pessoais de Santos-Dumont tenham ido parar no Campo dos Afonsos. Berço da aviação nacional, o local já foi motivo de irritação para o aviador. Em 1918, Santos-Dumont se opôs com veemência à construção de um aeroporto na região. Dizia que o local era péssimo para aviação e chegou a mandar carta ao presidente da República contestando a escolha. Mas suas críticas não encontraram eco.

No livro O Que Eu Vi, O Que Nós Veremos, o inventor escreve: “Depois de ter visto o interesse extraordinário que tomam pela aeronáutica todos os países que percorri, e vendo o desprezo absoluto com que a encaravam entre nós, falou mais alto que minha timidez o meu patriotismo revoltado e, por duas vezes, me dirigi ao Sr. Presidente da República.

Há dois anos, fiz ver a S. Exa. o perigo que havia em não termos, nem no Exército, nem na Marinha, um corpo de aviadores. Há um ano, escrevi uma crítica e apresentei um exemplo a S. Exa. Nestas notas, eu assim dizia: Leio que o governo vai, de novo, tomar posse do Campo dos Afonsos, onde será instalada a Escola Central de Aviação do Exército (...) Há dois anos o Exército, creio que reconhecendo a pouca praticabilidade desse Campo, o abandonou. O Aero Club ali instalou o seu Campo de Aviação. Convidado pela diretoria desse clube, há anos, para visitar e dar a minha opinião sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim: achava-o péssimo. Aconselhei que procurassem uma grande planície ou, melhor ainda seria, que o Club se ocupasse primeiro da aviação náutica, já que nos deu a natureza um aeródromo náutico único no mundo. O Aero Club não seguiu os meus conselhos. É grande a minha tristeza ao ler que o Governo vai de novo tomar posse desse terreno para ali instalar o campo central de aeronáutica!!!”

Mais adiante, Santos-Dumont indica como opção um terreno do governo a duas horas do Rio de Janeiro: “o esplêndido e vasto campo de Santa Cruz, com perto de duas léguas quadradas, absolutamente planas”. Ou ainda, “margeando a linha da Central do Brasil, especialmente nas imediações de Mogi das Cruzes”, outros campos que lhe pareciam bons. “Sinto-me perfeitamente à vontade para falar com esta franqueza aos meus patrícios, para quem a minha opinião, porém, parece menos valiosa que para os americanos do norte e chilenos. Sinto-me à vontade porque ela é inspirada pelo meu patriotismo, jamais posto em dúvida, e nunca pelo meu interesse.”

Foi em 1912 que a Fazenda dos Afonsos se tornou campo de aviação do Aero Club Brasileiro, que havia sido fundado no ano anterior. Em 1914, criou-se ali a Escola Brasileira de Aviação (EBA), primeiro local de ensino de aviação militar, que funcionou por poucos meses. No mesmo ano, o aviador paulista Edu Chaves fez o primeiro voo São Paulo-Rio. Em 1920, ele decolaria dos Afonsos para o reide pioneiro entre o Rio e Buenos Aires, na Argentina. Nessa época, de acordo com o livro Campo dos Afonsos: 100 Anos de História da Aviação Brasileira (1912-2012), publicado pela Universidade da Força Aérea, o local já era o maior campo de aviação da América do Sul.

Vários outros fatos históricos envolvem os Afonsos. Foi nele que o dirigível LZ-127 Graf Zeppelin aterrissou, vindo da Alemanha, em 24 de maio de 1930. No local também nasceu no ano seguinte o Correio Aéreo Nacional (CAN) e, em 1952, a Esquadrilha da Fumaça. Envolvido nos movimentos revolucionários de 1922, 1924, 1930, 1932 e 1935, de lá saíram os primeiros aviões empregados em atividades bélicas nas Américas, em direção à Guerra do Contestado. A indústria aeronáutica brasileira também teve início nos Afonsos, assim como a primeira Unidade Aérea, chamada de Grupo Misto de Aviação, criada em 21 de maio de 1931. O mesmo livro sobre a história do Campo explica que “este grupo foi substituído pelo 1.º Regimento de Aviação em 1933, pelo 8.º Grupo de Aviação em 1947 e, em 1957, pela atual Base Aérea dos Afonsos”. Mais adiante, completa: “No dia 27 de janeiro de 1941, foi criada a Força Aérea Brasileira, com um cerimonial militar repleto de símbolos e, em março do mesmo ano, foi instituída a Escola da Aeronáutica. Seus primeiros alunos provinham do Exército, da Marinha e do meio civil”.

Galeria: berço da aviação militar

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