Julio Maria
Susana era do bem, Nasasu, do mal. Uma meiga e carinhosa, a outra dura e ardilosa. Seguiam caminhos diferentes movidas por raivas e paixões e nem sempre a do bem se dava tão bem no final. Sem tranças de Rapunzel nem sapatos de Cinderela, os personagens das histórias que Vinicius criava para seus filhos eram seus próprios filhos. Cinco Viniciuzinhos, frutos de três das nove mulheres que um dia chamaram o poeta de seu. Quatro meninas e um menino que arregalavam os olhos quando se viam retratados nos contos do pai. A Susana do bem, na história, se completava com a Nasasu do mal quando percebia que bastava ela dizer o nome da outra ao contrário para saber que, como na vida, o bem e o mal estavam na mesma pessoa.
Como se buscasse o adulto que há na criança, ou a criança que vive no adulto, Vinicius entrou pela porta da frente no imaginário infantil num tempo em que as gravadoras agiam como se as pessoas só passassem a ter ouvidos a partir dos 16 anos. A Arca de Noé foi um assombro. Um punhado de 14 poemas, a maioria musicados por Toquinho, gravados por quem existia de melhor na MPB daquele início de anos 80. Milton e Chico cantavam A Arca de Noé; Elis cantava A Corujinha, Ney Matogrosso fazia São Francisco; Walter Franco ficava com O Relógio. O LP de 1980 virou fenômeno de vendas e, em 1981, veio o segundo, A Arca de Noé Volume 2, com mais artilharia pesada.
Mais de 30 anos depois ouvindo tudo de novo, Susana de Moraes pensou logo: ou ela relançava a Arca do pai do jeito que gostaria ou outra criatura viria a fazê-lo, não necessariamente, do jeito que deveria ser feito. Foi à alma infantil de Adriana Calcanhotto e a envolveu no projeto como produtora, dividindo as funções com Dé Palmeira e Leonardo Netto. E chamou os tubarões para o banquete. Sem esforço, teve o sim de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Maria Bethânia, Zeca Pagodinho, Seu Jorge, Chitãozinho & Xororó e mais.
O resultado sai agora, depois de mais de cinco anos de trabalhos em estúdios e amarrações de agendas. A Arca de Noé zarpa de novo com um potencial de deixar nova marca na linha do tempo da história dos discos infantis. Um trabalho de arranjos primorosos que mantém as coisas onde Vinicius as colocou. A missão era arriscada. Mexer em qualquer projeto lançado em 1980, de cara, faz seu espírito acústico se perder nas gravações digitais. Mas eles tiveram cuidado. “Eu achei que os arranjos estavam defasados quando os ouvi. Então decidi que era hora de refazer”, diz Susana, filha mais velha de Vinicius.
O Pato, que no LP original é conduzida pelo MPB 4, virou um calango, um samba quebrado cantado por Zeca Pagodinho, pensado por Paulão Sete Cordas e Dé Palmeira durante uma tarde inteira de estúdio. “Quando chamamos o Zeca, pedimos que ele gravasse O Pinguim. Mas ele não quis, disse que queria O Pato”, conta Dé. Ficaram então os produtores no estúdio tentando resolver a questão e o que saiu de lá foi uma das melhores. “Pensamos no Zeca pela postura bem humorada que ele tem. E o Vinicius tinha muito bom humor”, fala o produtor.
Chitãozinho & Xororó são talvez os nomes a causar certo estranhamento quando o projeto parece privilegiar a chamada alta cúpula da MPB. Susana conta de sua decisão em chamá-los para cantar A Corujinha, que Elis Regina defendia no original. “Eu não os conhecia bem, até que os vi em uma dessas entregas de prêmio de música brasileira. Achei suas vozes lindas.”
Arnaldo Antunes tem arranjo cheio de soluções felizes em oitavas acima e abaixo para O Peru, que saiu em 1981 no segundo volume da Arca, interpretado por Elba Ramalho. O disco abre com Maria Bethânia, Seu Jorge e Péricles cantando A Arca de Noé, que era de Chico Buarque e Milton em 1980. E segue com O Leão, de Fagner, cantada por Caetano Veloso. “Mas eles não são brigados?”, quer saber o repórter de Dé Palmeira. “Eu li sobre isso em algum lugar, mas posso dizer que não houve o mínimo problema. Caetano ouviu e gravou tranquilamente.” Vem então O Pato de Zeca; O Peru de Arnaldo; O Gato, de Mart’nália e O Pintinho, com Erasmo Carlos). A festa segue com As Borboletas, de Gal Costa; A Formiga, com Mariana de Moraes; A Galinha d’Angola, com Ivete Sangalo e Buraka Som Sistema; O Pinguim, com Chico Buarque; e A Cachorrinha, de Maria Luiza Jobim. A próxima é uma inédita, O Elefantinho, cantada por Adriana Partimpim e com um arranjo de jazz arrasador. Seguem As Abelhas, de Marisa Monte; A Foca, com Orquestra Imperial; São Francisco, de Miúcha e Paulo Jobim; e, finalmente, A Casa, com o próprio contador de histórias, Vinicius de Moraes.
João Gilberto queria cantar ‘São Francisco’
João Gilberto disse primeiro que sim. Ele queria participar do projeto cantando e tocando São Francisco, a música que acabou sendo gravada por Miúcha. Seria uma nova gravação do compositor em muitos anos, uma reaparição histórica em um momento delicado para João. Ele tinha um apego sentimental a esta canção por dois motivos: foi às margens do Rio São Francisco que cresceu, em Juazeiro da Bahia. E é pelo Papa Francisco que João alimenta suas mais recentes admirações. “Ele disse que gosta muito desse papa novo, de tudo o que ele está fazendo pela Igreja, por isso queria muito ter cantado esta canção. Fiquei sabendo que já havia ensaiado”, diz Dé Palmeira. João, no entanto, não apareceu para as gravações e também não disse o motivo. Além de O Elefantinho, o poema inédito musicado por Adriana Calcanhotto (no trabalho como Adriana Partimpim, seu heterônimo), outros versos inéditos estariam no projeto se Gilberto Gil tivesse tido tempo de musicá-los. O Peixe Espada ficou nas mãos de Gil, para, quem sabe, um segundo volume da nova Arca.
ARCA DE NOÉ
RELANÇAMENTO
Projeto histórico lançado em dois discos, em 1980
e 1981, é refeito com coprodução de Adriana Calcanhotto pela gravadora Sony Music.
Preço sugerido: R$ 24,90
Roberta Pennafort / RIO
Em 1975, Eduardo Souto Neto tinha 24 anos, talento ao piano e uma música que o levaria a Vinicius de Morais. Apresentada a ele por Tom Jobim, Choro de Nada, parceria de Souto Neto com o amigo letrista Geraldo Carneiro, agradou tanto ao poeta que ele decidiu gravá-la com Toquinho. Não fosse isso glória suficiente, o jovem pianista iria mais longe: numa noite de muito uísque e afeto, tornou-se parceiro do ídolo.
Passados quase 40 anos, Um Olhar de Adeus é a única letra inédita de Vinicius que a reportagem do Estado localizou depois de quase um mês de procura. No Festival de Música de Juiz de Fora de 1975, a valsa foi defendida pelo cantor Jorge Nery. Acabou desclassificada e esquecida, e jamais foi registrada.
“Vinicius ficou chateado, e eu, desmotivado a continuar”, lembra Souto Neto, bem sucedido autor de jingles, trilhas e vinhetas – são dele os famosos Tema da Vitória, usado nas corridas vencidas por Ayrton Senna na Fórmula 1, e o do Rock in Rio.
“Mesmo que ninguém conheça, o que importa é que o Vinicius gostou da música que eu fiz”, continua. O manuscrito ele guarda em sua casa na Região Serrana do Rio. A letra, registrada num papel sem pauta, fala de um homem abandonado que chega ao banheiro e só encontra os cílios postiços da mulher que foi embora, a lhe dar “um triste e derradeiro olhar”.
“Parece que estou vendo a folha na minha frente com a letra do Vinicius. Estávamos no apartamento dele da Gávea, eu ao piano, ele escrevendo. Quando acabou, passou a limpo e me deu. Foi uma noite inteira de uísque, e eu tentando acompanhar. De manhã, eu tinha que voltar à casa dele para entregar a partitura e estava péssimo, de ressaca. Tomei um suco. Quando cheguei, Vinicius já estava bebendo cerveja.”
Escarafunchada continuamente desde sua morte, a obra de Vinicius, tanto a musical quanto a literária, praticamente não guarda segredos a serem descobertos, segundo sua filha Maria Gurjão de Morais. Eucanaã Ferraz, poeta e pesquisador que se debruçou sobre o acervo guardado pela Casa de Rui Barbosa, endossa. <EM>
Na busca por material desconhecido, restaram os parceiros ocasionais, jovens artistas em início de carreira nos anos 60/70 com quem Vinicius compôs canções que jamais alcançaram fama.
Um deles foi João Bosco, a quem Vinicius conheceu ainda em Minas Gerais, aos 21 anos. Eles fizeram três músicas. Samba do Pouso foi gravada no songbook de Vinicius, vinte anos atrás. O Mergulhador foi trilha do curta-metragem Ouro Preto e Scliar, de Antônio Carlos Fontoura, sobre o artista plástico Carlos Scliar. Assim como Rosa Dos Ventos, nunca chegou a disco. No filme, ouve-se apenas a música de João; Vinicius a casaria com seu poema O Mergulhador, publicado em 1968.
Àqueles dias, o rapaz, recém-formado engenheiro, se surpreendia com o fato de o imenso poeta lhe dar “aquela atenção especial”. “De repente me vi amigo do compositor mais consagrado do Brasil... Isso muda a carreira de um jovem. Ele foi fundamental, me deu coragem e estímulo. Vinicius gostava do encontro com o parceiro, da vibração do outro”, conta João.
Fagner, outro jovem apadrinhado por ele, vai lançar no próximo CD, comemorativo de quatro décadas de carreira, uma inédita dos dois. Ou quase. Um Amor Que é Só Meu foi gravada em 1982 pela cantora alagoana Thelma Soares, outra “afilhada” de Vinicius, sem repercussão.
A música saiu numa visita deles à cantora Amelinha, em São Paulo, Fagner ao violão e Vinicius criando em cima. É um samba, algo raro na trajetória do compositor cearense. Vinicius havia gostado muito de seu LP de estreia, Manera FruFru, Manera (73), e a amizade nasceu daí.
“Quando saí da Phillips, fiquei muito queimado. Ele me apoiou. Onde estivesse, me chamava para cantar, dizia ‘comigo você pode contar sempre’. É a pessoa mais generosa que já conheci na nossa classe. Nunca existiu alguém como Vinicius”, recorda. Outra música de Fagner ganhou as palavras do poema Soneto de Marta, que Vinicius fez para uma namorada “de corpo de menina” como de uma “jovem dançarina”. Nunca foi gravada, só saiu em livro.