Nana
Milton Nascimento
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Zuza Homem de Mello
Músicas
Joyce Moreno
Alice Caymmi

Entre as muitas qualidades que se possa apontar no artista Dorival Caymmi – e não são poucas quando analisamos as muitas faces deste que foi compositor, letrista, violonista, cantor, sem falar nas suas habilidades de pintor –, a mais impressionante talvez seja, ao menos até onde se pode antever desta segunda década do século 21, a sua permanente atualidade. Não faltam talentos na abundante história de pouco mais de um século da Música Popular Brasileira. E não se está querendo aqui cair na duvidosa tentação de escolher os dez mais ou coisa que o valha – isso é para quem gosta de lista. Mas o fato que mais impressiona no compositor baiano é a perenidade de suas músicas. Se apresentadas hoje a um músico da atual geração, que porventura desconhecesse Caymmi, talvez ele imaginasse que foram feitas ontem. Experimentem mostrar “Samba da minha terra”, por exemplo. Caymmi traz para a música brasileira uma atemporalidade contemporânea que nos impede de esquecê-lo. Ele atravessou épocas, movimentos e eras da nossa música com uma permanência que espanta. Ao menos até o fim do século 20, quando não influenciou diretamente, ele foi referência para as gerações que se seguiram.

Revelação da Época de Ouro em que compositores do quilate de um Noel Rosa, Ary Barroso e Assis Valente, só para citar alguns, brilhavam nas ondas do rádio, Caymmi impressionou Tom Jobim, um dos expoentes da geração dos anos 1950, com suas harmonizações complexas que faziam o sofisticado ecoar rústico, o simples soar folclore, com músicas que impregnaram a memória do tempo pintando imagens impossíveis de esquecer. As dissonâncias em “O Mar” ou “Noite de temporal”, canções de primeira hora do moço baiano, por exemplo, não traumatizaram seus contemporâneos como aconteceu a toda geração anterior diante da ousadia do filtro radical que a Bossa Nova operou na produção musical até aquele instante.

Não há como negar que ninguém escapa incólume a “Desafinado”, por exemplo. Nem Caymmi. Mas é interessante observar como os bossanovistas, ou a tríade essencial Tom-Vinicius-João Gilberto, nem a geração que se seguiu, não resistiram aos fundamentos musicais que Caymmi construiu com sua obra, pequena, exata e perfeita, que não ultrapassam 130 canções em 94 anos de sua existência. Obra de ourives. Obsessão sem pressa para alcançar o ideal desejado, a função exata da canção, como explicou em entrevista a Paulo Mendes Campos. Nela, revelou que seu sonho era compor músicas como ‘Ciranda, cirandinha”, que atravessassem o tempo e as gerações. Conseguiu.

É fácil comprovar a importância que exerceu sobre Bossa Nova. Tom Jobim e Aloysio de Oliveira – este último, amigo de Caymmi desde que “O que é que a baiana tem?” levou Carmen Miranda e o Bando da Lua (grupo vocal do qual fazia parte) para o sucesso nos Estados Unidos e no mundo através de Hollywood – pediram seu aval para a Bossa Nova de João de Juazeiro, na gravadora Odeon. Com a famosa frase “Caymmi também acha!” no post escriptum de Jobim no prefácio em que apresenta o jovem artista baiano na contracapa do LP “Chega de Saudade”. O mesmo Aloysio produziu ainda, já pelo seu selo Elenco, os antológicos long playing “Caymmi visita Tom e leva seus filhos Nana, Dori e Danilo” e “Vinicius e Caymmi no Zum Zum”. Isso sem esquecer o repertório de João Gilberto, onde não podia faltar Caymmi. O inventor da Nova Bossa disse a Tárik de Souza que “Rosa Morena” foi uma das canções que o levou a inventar o samba novo que abalou as estruturas não só da nossa música popular mas influenciou profundamente o jazz americano. Na célebre apresentação da Bossa Nova no Carnegie hall, em 1962, lá estava ele cantando sua versão desconstrutora de “O samba da minha terra”, 22 anos depois que Carmen Miranda, perto dali, na Broadway, estonteava os americanos com os encantos que a baiana tem em sua eletrizante e brejeira interpretação. Enfim, o resto é história, me perdoem o clichê.

Nos anos 1960, a música popular brasileira já seria irremediavelmente outra, ou como costuma chamar Jairo Severiano, meu mestre, já havia cedido lugar à moderna música brasileira. E a filiação a Jobim de parte da talentosíssima geração da Era dos Festivais, biografada por Zuza Homem de Mello, estava muito clara em Chico Buarque – ao menos em parte, porque Chico é também inegavelmente um filho legítimo de Noel –, Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime... Interessante notar que “Arrastão” (de Edu e Vinicius), defendida por Elis, e “Saveiros” (Dori e Nelson Mota), por Nana Caymmi, tinham como sutil citação as praieiras de Caymmi assim como os baianos da terceira geração, Caetano e Gil, além das intérpretes Gal e Bethânia, tinham no mestre baiano e em João Gilberto sua influência escancarada. Gil, casado à época com Nana Caymmi – uma das intérpretes mais impactantes do pai, uma mistura feliz do baiano e da cantora Stella Maris, bastando para tanto escutar “Dora”, “João Valentão” ou “Acalanto” na voz da cantora – compôs “Domingo no Parque”, depois de uma noite inspirada na companhia de Caymmi. Caetano nunca se cansou de repetir que sua célula mater foi Caymmi e João Gilberto, além da evidente identificação do Tropicalismo à baiana de Carmen Miranda. Se nos voltarmos aos mineiros que eclodiram na década de 1970, teremos “Cais” de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, ressoando novamente Caymmi, além de João Bosco, cuja picardia tem muito da apimentada Bahia do compositor. Sem esquecer os Novos Baianos revivendo clássicos de Caymmi e Assis Valente.

Para finalizar, ao menos por enquanto, não há plateia, seja de que idade for, que não tenha na ponta dos lábios, ao primeiro acorde, “Canção da Partida”, de História dos Pescadores I. Taí Villa-Lobos, o coral que você sempre sonhou em reger. Taí Mario de Andrade, o populário servindo de matriz para a originalíssima música brasileira, não exatamente como você idealizou, a “música artística” para concerto. Melhor. Que Caymmi, de lá do assento etéreo onde se encontra, possa nos ajudar a sonhar com mais cem anos de fartura. Amém.

 

*Stella Caymmi, neta de Dorival, é jornalista, ensaísta e professora de literatura brasileira da PUC-Rio

 

 

Stella Caymmi