Ajuste fiscal reduz investimento público e tira ainda mais fôlego da economia
Bianca Pinto Lima & Mariana Congo
Política dos últimos anos agravou problemas estruturais das contas públicas e agora obriga o governo a cortar gastos e elevar impostos em meio à recessão
“Esgotamos todos os recursos”. Foi assim que a presidente Dilma Rousseff admitiu, com menos de três meses de segundo mandato, que as políticas de combate à crise de 2008 desequilibraram as contas públicas. O recado ainda seria repetido pelo ministro da Fazenda e pai do ajuste fiscal, Joaquim Levy: “O dinheiro acabou”.
LEIA A ANÁLISE: Ajuste Fiscal: O que fazer?
E se a conta não fecha, só há dois caminhos: reduzir despesas, o que no curto prazo significa corte de investimento público, ou aumentar receitas, sobretudo com mais impostos. Ou os dois juntos, como está sendo feito agora - ainda que a alíquota da maioria dos tributos tenha sido apenas recomposta. Essa reorganização das contas ajuda a explicar parte da freada brasileira em 2015 - ano em que devemos enfrentar a maior recessão desde 1990.
Piora fiscal Evolução do resultado primário em bilhões de reais
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Fonte: Banco Central
“Com o investimento privado em queda, o ideal era que o investimento público estivesse crescendo. Então é claro que o ajuste fiscal contribui para a queda do PIB”, afirma o especialista em finanças públicas Mansueto Almeida.
Em maio, o governo anunciou um congelamento recorde de despesas, no valor de R$ 70 bilhões. O corte atingiu todos os 39 ministérios e tirou quase R$ 26 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Dois meses depois, nova tesourada: R$ 8,6 bilhões, mais da metade em cortes no PAC, que também abrange o Minha Casa Minha Vida.
Mas Almeida ressalta o que é consenso entre os economistas ouvidos pelo Estado: a mudança nas contas é apenas coadjuvante entre as causas da crise. “Errado foi o que a gente fez nos últimos quatro anos. O governo exagerou nas desonerações, sem ter espaço fiscal para isso, e aumentou muito alguns gastos”.
Crédito da foto: ERICA DEZONNE/ESTADÃO
As pessoas estão atribuindo a doença ao remédio
—Marcos Lisboa
presidente do Insper, ao falar sobre a recessão e o ajuste fiscal
Se imaginarmos a economia como um balão, ele foi se esvaziando aos poucos. “O ar começou a sair com as quedas da taxa de investimento e da produção da indústria, depois houve recuo do consumo em função da inflação e da retração do crédito. O ajuste só foi a terceira fonte de esvaziamento, ao reduzir o gasto público”, comenta o economista Raul Velloso.
Na visão dos especialistas, a sociedade atribui a doença ao remédio. “Em 2014 já havia destruição de emprego e uma economia estagnada, entrando em recessão. O ajuste é simplesmente uma tentativa de reduzir a crise”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper. Segundo ele, o aumento do desemprego só não ocorreu no ano passado porque menos pessoas estavam procurando vagas – quadro que se inverteu em 2015.
Vida real. O impacto no cotidiano, no entanto, é grande e por isso o ajuste fiscal é tão impopular. A liberação dos preços administrados - como energia, água e combustível - aumentou o custo de vida. Apenas este ano, a conta de luz ficou quase 50% mais cara na média das principais regiões do País. O aumento de IOF encareceu o crédito ao consumidor, que já está sendo pressionado pela alta da taxa básica de juros. O fim das desonerações levou à volta da alíquota cheia do IPI de veículos e ao retorno da Cide Combustíveis. E o acesso a benefícios sociais, como seguro-desemprego e abono salarial, ficou mais restrito.
Demitida em junho, Marina Costa Mansano trabalhava como caixa em uma farmácia de São Paulo e ficou sem o seguro-desemprego. “Trabalhei onze meses no último emprego e tinha alguns meses trabalhados antes. Pensei que conseguiria o seguro, mas o problema foi a data… Fui dispensada uma semana antes da última mudança na lei, então fiquei com a regra anterior”. Originalmente, a Medida Provisória exigia 18 meses de salário nos últimos dois anos. O texto aprovado no Congresso, porém, é mais brando: 12 meses de salário para os últimos 18 meses.
Já a estudante Grace Venâncio não conseguiu o empréstimo do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para pagar a faculdade de fisioterapia no ABC. No primeiro semestre deste ano, 500 mil pessoas tentaram obter o crédito, mas o governo só conseguiu financiar metade delas. Até 2014, a demanda era atendida completamente. A jovem de 21 anos começou, mês passado, a trabalhar na área de telemarketing e vai tentar pagar a mensalidade sozinha enquanto busca outras formas de financiamento ou uma bolsa de estudos. “É bem complicado, vai quase todo o salário”, diz ela.
Reformas. Mas a política fiscal recente não é a única responsável pela trajetória da dívida pública – classificada como explosiva e fator de risco para o grau de investimento brasileiro. Há questões estruturais, que assombram o País desde a década de 1990, que foram agravadas com o forte aumento de gastos.
Dívida em alta Trajetória da dívida bruta do governo em relação ao PIB em porcentagem
Fonte: Banco Central
Dentre esses problemas estão o aumento do gasto acima do PIB; a rigidez do Orçamento, com suas diversas vinculações de receitas e gastos obrigatórios; e o aumento das despesas da Previdência. “Fazer ajuste fiscal em qualquer lugar do mundo é muito difícil. No Brasil, com essa série de vinculações, fica ainda mais complicado. Teremos de colocar na mesa discussões que nos demos ao luxo de não ter nos últimos anos”, alerta Almeida.
Isso porque o simples contingenciamento de despesas e o fim de parte das desonerações não estão sendo suficientes para cumprir a meta de superávit primário – antes de 1,1% do PIB, agora de apenas 0,15%. Mesmo com o aumento de impostos, a arrecadação acumula recuo real de 3% no primeiro semestre. A recessão levou a uma queda no recolhimento de tributos que incidem sobre o lucro e o faturamento das empresas, bem como sobre a folha de salários e o consumo de bens industrializados.
Aumento de impostos Evolução da carga tributária no Brasil em porcentagem do PIB
Fonte: Receita Federal
Para Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), muito pior que o ajuste fiscal é o alto nível de incerteza. “Como alguém vai fazer investimento de longo prazo se não se sabe qual será a carga tributária ou a inflação daqui a dois ou três anos? E a desoneração da folha, vai continuar ou não? O setor privado fica incapacitado de fazer qualquer cálculo e isso deprime o investimento.”
Mesmo com uma carga tributária de quase 36% do PIB, equivalente a de países desenvolvidos como a Alemanha, Pessôa vê como inevitável uma nova rodada de aumentos. Já no longo prazo, atingir um primário que estabilize a dívida pública exigirá, segundo ele, uma flexibilização dos gastos, com a desvinculação das receitas da União, além de uma reforma da Previdência que estabeleça idade mínima para a aposentadoria e mudanças nas regras do salário-mínimo e da pensão por morte. “Teremos de repensar o nosso contrato social”, diz.
Ajuste Fiscal: O que fazer?
— Mansueto Almeida
Especialista em contas públicas
De 1991 a 2014, a despesa primária do governo central cresceu 9 pontos de porcentagem do PIB, um aumento da despesa da ordem de R$ 512 bilhões, dos quais 86% decorrentes da expansão de programas de transferência de renda: Benefício Mensal de Prestação Continuada, seguro-desemprego e abono salarial, Bolsa Família, INSS e aposentadorias de servidores públicos. Essa tendência foi agravada nos últimos três anos com a criação de novos programas, em especial, subsídios setoriais, subsídios para o Minha Casa Minha Vida e desoneração da folha de salários.
Há hoje na economia brasileira dois grandes problemas. No curto prazo, a despesa do governo central continua crescendo acima da sua receita, o que significa que o resultado continua deficitário. A meta de 2% do PIB de superávit primário até 2018 exigirá que o setor público arrecade R$ 200 bilhões a mais do que no ano passado.
No longo prazo, regras para previdência (INSS), educação e saúde sinalizam um crescimento da despesa (% do PIB). Controlar o crescimento do gasto público significa modificar as regras que determinam a dinâmica da despesa. No caso da previdência, dado o envelhecimento da população, é necessário o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria.
No caso da educação, não será possível o setor público gastar com essa função 10% do PIB como estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE) até 2024. A tendência do gasto per capita com aluno no ensino básico já é de crescimento dada as mudanças demográficas em curso, sem a necessidade de aumentar a despesa (% do PIB).
No caso da saúde, apesar da tendência do crescimento do gasto com o envelhecimento da população, não é adequado vincular despesas em relação à receita. É preciso também fazer valer a obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde de restituir as despesas do Sistema Único de Saúde com seus segurados.
Por fim, dada a nossa já elevada carga tributária, será necessário continuar com a redução dos subsídios setoriais e rever desonerações à luz de análises criteriosas de custo-benefício.
É imprescindível que o esforço fiscal de curto prazo e um eventual aumento de carga tributária, mesmo que pequeno, sejam acompanhados de uma agenda positiva de controle do crescimento do gasto no longo prazo. Caso contrário, o ajuste fiscal será apenas temporário.