Crime e Leitura Luiz Fernando Toledo

2
3
Introdução

Às quintas-feiras, um grupo de 28 rapazes se reúne em uma pequena biblioteca no município de Hortolândia, região de Campinas, para discutir literatura. Chegam de chinelos nos pés, com os olhos voltados ao chão e as mãos cruzadas nas costas. Dali esperam sair um pouco mais livres. Estes homens vivem no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) do município e participam do primeiro programa de redução de pena pela leitura do estado de São Paulo.

Regulamentada há dois anos, apenas quatro unidades prisionais do estado - de um total de 162 - adotam a chamada remição de pena por leitura aos seus sentenciados.

4

A previsão da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, responsável pela portaria que normatizou o processo, é que todos os presídios paulistas usem o sistema até o final de 2016.

Hoje, só o Centro Penitenciário de Hortolândia (CPP), a Penitenciária Dr. Antonio de Souza Neto, em Sorocaba, e duas penintenciárias femininas praticam este tipo de atividade - de Campinas e de Sant'Ana, na zona norte de São Paulo. As duas últimas começaram neste ano a oferecer a redução de pena. A iniciativa não é inédita. Outros Estados - Piauí, Paraná e Goiás, por exemplo, já usam a leitura como forma de diminuir o tempo na prisão.

5
6
O Centro de Progressão Penitenciária de Hortolândia foi o primeiro do Estado de São Paulo a adotar o programa e já teve 28 reduções de pena aprovadas.
7
Capítulo 1portões

Seis portões separam a rua e a sala de leitura no CPP de Hortolândia. A entrada principal é pela Rodovia Campinas Monte-Mor, onde uma equipe de guardas armados desconfia da passagem de qualquer um. “Identifique-se. O que veio fazer aqui?”

Em seguida, um corredor leva ao segundo portão. No caminho, funcionários que chegam e se despedem. É ali que estão instaladas boa parte das empresas em que os presos, em regime semiaberto, podem trabalhar. “Aguarde”, diz um homem através de uma fresta do portão de ferro, ação repetida por pelo menos outros dois funcionários até que a entrada fosse liberada. São regras da casa. “O senhor me desculpe, mas todo cuidado é necessário”, diz um dos porteiros.

8

É preciso passar por uma rápida revista pessoal antes de passar ao terceiro portão. Neste local fica a administração da unidade. É ali que o diretor do CPP, Joaquim Gomes da Silva, se apresenta. O espaço não se distingue de um escritório comum, sem equipamentos de proteção ou segurança visível.

Foi ali também que se apresentou a pedagoga Elisandre Oliveira, responsável pelo início do projeto de leitura em Hortolândia. Dos 1.651 presos de lá, 28 obtiveram remições por leitura em dois anos no Estado de São Paulo. Na fila da Vara de Execuções Criminais (VEC) há outras 196 para serem aprovadas.

O quarto portão é o que dá entrada, de fato, à área dos presos. Neste local havia um pequeno aglomerado de homens que ignorava a movimentação atípica da diretoria do CPP. “Hoje é o último dia desse grupo aqui, logo estarão livres”, contou Elisandre. No caminho há uma quadra onde uma equipe jogava futebol. Nos corredores, alguns homens descansavam.

9
10

O quinto portão é quase como um portal.
Deixa-se a identidade de presidiário para adotar a de aluno.

A partir dali termina o corredor que dá acesso ao cárcere para dar lugar a uma unidade escolar administrada pela Secretaria Estadual de Educação (SEE). Começa pelo chão, que deixa os tons escuros e passa a adotar pisos brancos, desses que brilham com a luz. As salas de aula e a de leitura ficam ali. No único corredor deste espaço, nada - exceto pelos seus habitantes - denuncia que aquilo é uma prisão, e não uma escola. Há murais nas paredes, exposições de desenhos, chamadas para grupos de poesia. No último deles, um convite para escrever mensagens para o Dia das Mães. A escola e a biblioteca ficam em uma ala isolada do CPP. No local, há murais com trabalhos desenvolvidos nas aulas, assim como em uma escola regular.

11

A última passagem é apenas uma porta comum, sem grades, e leva à sala de leitura. O espaço acomoda um acervo doado de cerca de 1.900 livros, um círculo de carteiras de escola, com apoio para os braços, e um computador. Em prateleiras estão em destaque os livros mais lidos naquele lugar. Alguns se dedicam à leitura de jornais, outros observam apenas as capas das obras, com curiosidade.

Dentro de uma hora, o espaço abrigaria o projeto chamado Leitura Liberta. Vinte e oito homens em busca de um só objetivo: atravessar aqueles seis portões rumo à liberdade.
12
O Centro de Progressão Penitenciária de Hortolândia foi o primeiro do Estado de São Paulo a adotar o programa e já teve 28 reduções de pena aprovadas.
13
Capítulo 2caminhos

O maior objetivo de um preso é sair da cadeia. Para isso há muitos caminhos - a fuga, as remições de pena, os recursos judiciais. “Toda semana ouvimos sobre alguém que abandonou o regime. No semiaberto nós não falamos em fuga, já que eles podem sair na rua, mas em abandono”, contou uma funcionária do CPP. Se capturado, o sentenciado é obrigado a voltar para o regime fechado. Aos que buscam a via legal, há três tipos de remição de pena: estudo, trabalho e, agora, a leitura.

14

Marcos (nome fictício) tem 31 anos e já leu 11 livros desde o início do projeto. Foi preso por roubo e responde a seis processos. É reincidente: já teve passagens pela antiga Febem (Fundação Casa) aos 12 anos e sua primeira detenção em um presídio ocorreu em 2002. "Não tinha consciência das coisas. Eu só pensava na ambição, em melhorar minha condição de vida", contou.

Em 2003, tentou o caminho fácil da liberdade: fugiu em uma das saídas temporárias, direito de presos no regime semiaberto com bom comportamento e que já tenham cumprido um sexto da pena total." Capturado, fugiu novamente e m 2007, mas foi pego em um assalto à mão armada a um veículo. "Depois da primeira vez virou hábito. Foi ganância". Marcos só poderá pedir mudança para um regime de liberdade condicional em 2018. “Me arrependo. Mas agora quero mudar, voltar a estudar”.

Não há restrição de gêneros, mas os presos não podem escolher obras muito fáceis, como livros infantis. Há variedade: eles escolhem de literatura brasileira à ficções fantásticas como Harry Potter.
16

Passou a ler na cadeia para diminuir a pena, como todos os outros, mas o hábito se tornou mais importante do que os dias contados. Deixou de ser um caminho para a liberdade. Agora, trata-se de uma garantia de não voltar a perdê-la. Enquanto não pode sair, leva os livros para o pátio, para o cárcere e para onde mais puder. Durante o dia, trabalha como serralheiro. "Comecei a estudar e a ler porque vi que melhorar de vida não dependia de mais ninguém, só de mim. Se cometi crimes, foi por ignorância e falta de informação".

O homem que passou praticamente metade da vida aprisionado agora diz querer "libertar" a mente das pessoas. Pensa em ser médico psiquiatra. “Quero poder entender a mente das pessoas e poder auxiliar de alguma maneira”. Quando entrou no presídio, tinha apenas até o 5º ano do Ensino Fundamental. Agora, depois de acompanhar as aulas e o projeto de leitura, sonha com o futuro. “Já fiz o Enem e acho que a leitura me ajudou a ir bem na redação”, disse.

18
As rodas de leitura ocorrem uma vez por semana e têm a participação de 28 alunos presos. Nos encontros, eles são convidados pela pedagoga a falar sobre as obras que estão lendo.
19

Marcos lia naquela semana Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Mas a obra que mais lhe chamou a atenção foi Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. “Mostra uma sociedade que é cega. Uma sociedade de pessoas fazendo as coisas pensando só nelas. E aí começa uma epidemia de cegueira, contagiosa. É como se fosse a consciência das pessoas contaminando todo mundo”, resume.

Sem querer, Marcos liga a obra à sua situação: a prisão é sua cegueira e o arrependimento, uma saída. “Na hora que eles voltaram a enxergar, eles tiveram uma visão diferente em relação à vida”. Assim como quando ele sair da prisão, diz ele. “A leitura agora já é hábito. Você passa a entender o mundo de outra forma. Passa a enxergar seus limites e seus deveres”.

Deixou de ser um caminho para a liberdade. Agora, trata-se de uma garantia de não voltar a perdê-la.
20

Às 17h, tem início o encontro. “Eles chegam pelo incentivo na pena, mas ficam pelo interesse”, contou Elisandre, que coordena os encontros. De cabelos cacheados e um sorriso simpático, a professora impõe respeito e comanda as rodas de leitura. Um a um, os rapazes são convidados a dizer o que entenderam dos livros que estão lendo. Não vale timidez: é preciso ao menos fazer um breve resumo.

Estes homens trazem características semelhantes. Pobres, com ensino fundamental incompleto e uma mancha no passado. Quase sempre, roubo ou tráfico de drogas. Como o CPP opera em regime semiaberto, boa parte de sua população já está a poucos meses do cumprimento total da pena e tem bom comportamento - exigência para participação no processo de remição.

Carlos (nome fictício), de 46 anos,está a 30 dias de ser solto, mas continua acompanhando o projeto. Assiste às rodas de leitura há 11 meses. No período, leu oito livros. “Eu não lia antes, comecei a ter esse hábito aqui”, contou.

Carlos é mais um que deixou a remição em segundo plano e ganhou o hábito de ler. Foi preso após sequestrar o funcionário de uma empresa em um carro que tinha cerca de R$ 70 mil em cigarros de diversas marcas e R$ 12 mil em notas. A vítima não ficou ferida, mas foi obrigada a entrar no veículo com Carlos e outros dois comparsas, que colocaram um pano preto na cabeça do funcionário.
22

Casado e pai de dois filhos, Carlos diz se arrepender do crime e afirma que quando sair quer estudar Engenharia Civil. ”Até prestei o Enem no ano passado. Quero melhorar”, contou. Agora, ele lê “A Mulher de Preto”, suspense da escritora Susan Hill.

aulas

As aulas de Elisandre se dividem em quatro etapas. Os livros são escolhidos logo na primeira. Apesar de não haver exigências claras de quais textos podem ser lidos, a lista de gênero escolhida pelos presos é extensa. Nunca desista de seus sonhos, de Augusto Cury, está entre os mais lidos.

Histórias de superação, empreendedorismo e sucesso também não param nas prateleiras: da vida do apresentador Silvio Santos a Pulmão de Aço, obra que conta a história de uma menina com poliomielite que cresce em um hospital. E até a fantasia: a saga do bruxinho Harry Potter, que compreende sete livros e soma 3.290 páginas, foi lida por pelo menos oito presos.

23

A obra mais procurada, no entanto, é sobre um roubo. Não qualquer roubo, mas uma investida da Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares), grupo de esquerda da qual a presidente Dilma Rousseff fez parte na luta armada contra a ditadura. O Cofre do Dr Rui, do jornalista Tom Cardoso, mostra como o grupo planejou e se apoderou do cofre da amante do ex-governador paulista Adhemar de Barros, que seria alimentado por dinheiro desviado por corrupção.

O acervo da biblioteca tem cerca de 1.900 livros, que podem ser emprestados para ler no presídio ou na sala de leitura.
25
livros mais lidos
Perfume
O Caminho do Guerreiro Pacífico
Nunca Desista de Seus Sonhos
O Cofre do Dr. Ruy
A Cabana
Pulmão de Aço
26

Os outros encontros são para praticar a resenha e aprender a articular argumentos sobre o que se está lendo. É pré-requisito básico do curso que todos que participam sejam alfabetizados, mas nem sempre há domínio total da escrita ou até da organização de ideias no papel. É aí que entra a principal função de Elisandre, que recorre a outros recursos para ensinar. “Não ficamos só nos livros. Também fazemos rodas de poesia, assistimos a filmes e discutimos. A ideia é que, no final, eles consigam escrever o texto sozinhos”.

Pelas 11 obras lidas, Marcos pode reduzir 44 dias de sua pena. Já Carlos, terá 32. O processo leva algum tempo: os participantes têm até um mês para ler, no máximo, um livro. Neste período, ele deve desenvolver uma resenha escrita à mão, de três a quatro páginas, que será submetida a uma professora e, depois, à Vara de Execuções Criminais (VEC).

Duas horas depois do início das aulas, todos retornariam ao cárcere. Sob um dos braços, um romance, uma ficção ou uma aventura fantástica a desbravar. Não é fácil abandonar o ambiente acolhedor de uma biblioteca.

27
28
No dia em que a reportagem visitou o espaço, as aulas estavam esvaziadas. Era dia de liberação de alguns presos que já haviam cumprido toda a pena. Na data, segundo as professoras, a maioria deixa de praticar as atividades regulares no presídio.
29
Capítulo 3saída

Estimativa é que processo seja oferecido em todos os presídios do estado até 2016

A baixa adesão à remição de pena, segundo a Corregedoria do Tribunal de Justiça, ocorreu por causa de uma burocracia já superada nas execuções criminais - a necessidade de regulamentação da portaria por um dos juizes corregedores para as unidades prisionais. “Dependíamos da atuação do juiz corregedor de cada vara e a atribuição dele se limitava a poucas unidades prisionais”, explicou o juiz assessor da Corregedoria Jayme Garcia dos Santos Junior. Mas, desde o início de 2014, uma lei complementar deu início à instalação do chamado

30

Departamento Estadual de Execuções Criminais, dividido em dez unidades regionais responsáveis por todos os presídios de São Paulo. A unidade regional de Bauru, por exemplo, tornou-se responsável por 26 unidades prisionais. A de Campinas, por 30.

Dependíamos da atuação do juiz corregedor de cada vara e a atribuição dele se limitava a poucas unidades prisionais.

Agora, ao invés de passar por dezenas de juizes corregedores, a edição da portaria que permite a remição de pena por leitura depende apenas destas unidades. Segundo a Corregedoria, cinco delas já aprovaram a medida. “A tendência é que todas as unidades regionais aprovem até o final do ano”, disse Santos Junior. A partir disso, caberá às unidades prisionais deslocar uma equipe para realizar o trabalho, processo que deve ocorrer em até

31

10 meses após esta regulamentação formal.

A isto, soma-se o esforço da iniciativa privada. Neste ano, a Companhia das Letras firmou parceria com a Fundação Professor Dr. Manoel Pedro Pimentel (Funap), vinculada à SAP, para implementar um programa de leitura em oito unidades prisionais do Estado de São Paulo.

As unidades prisionais terão grupos de 20 reeducandos que debaterão as obras a serem lidas e entregarão uma resenha, assim como já ocorre em Hortolândia e Sorocaba. Foram selecionados oito livros da editora. As unidades participantes são: Penitenciária II de Guarulhos, Feminina de Sant'Ana, I de Mirandópolis, Feminina de Pirajuí, I de Campinas, I de Serra Azul, Marabá Paulista e Iperó.

“Temos que pensar muito mais quais são os elementos formadores do cidadão, não só na punição. Temos que pensar em como trazer as pessoas para os bens que nos são tão caros", defendeu a coordenadora do Núcleo de Incentivo à Leitura da Companhia das Letras, a pedagoga Janine Durand.

32
entrevista com josé renato nalini
(Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Aprovou a minuta que estabelece a remição de pena por leitura em São Paulo quando Corregedor-Geral de Justiça do Estado)
33

Como o sr. avalia o uso da remição na execução de pena?

Nós estamos recorrentemente preocupados com o excesso de prisões. Alcançamos o índice indesejado de um dos países que mais prende. Fiquei 15 anos no tribunal de alçada criminal e tenho a convicção de que a prisão é um mal. É necessária, porque alguns não podem sair para o convívio. Porém, embora ela tenha essa pretensão idealizada de ser regeneração e não só castigo, sabemos que não existe recuperação nenhuma, o regime é muito duro.

É uma forma de melhorar o indivíduo?

Já que a prisão deve ser uma regeneração, devemos dar oportunidade ao preso e a educação é a chave para tal. Então pensamos em fazer o preso ler. Se há remição pelo trabalho físico, por que não pelo mental? Recebi muitas críticas de pessoas que falaram que leem e não ganham nada por isso. Mas nós quisemos mostrar que a prisão deve cumprir outra finalidade. A Constituição explicita que o preso não perde a dignidade pelo fato de estar preso, é um ser humano. Ele até vota.

34

Este tipo de ação pode ajudar a reduzir a criminalidade?

A sociedade quer penas maiores, pena de morte, reduzir a maioridade penal, mas não está se preocupando em fazer uma análise de por que nós estamos vendo o crime disseminar e a violência recrudescer. Cada vez mais, esses atos infracionais começam a ser praticados por pessoas cada vez mais jovens. Só combatemos o indivíduo, mas não combatemos a causa. Temos um discurso muito edificante na teoria, mas não é assim que acontece. Fazemos tudo pela metade, um discurso e outra prática.





Reportagem: Luiz Fernando Toledo

Diretor de Arte: Fabio Sales

Editora de Infografia: Regina Elisabeth

Web: Carlos Marin, Renan Kikuche, Tiago Henrique, Vinicius Sueiro

Infografia: William Mariotto e Gisele Oliveira

Audiovisual: Everton Oliveira e Filipe Araújo

Fotografia: Rafael Arbex e Everton Oliveira