O castelo
- Um dia este castelo será meu.
Esta promessa não foi feita por nenhum aspirante a príncipe ou princesa, nenhum especulador imobiliário, nenhum magnata com anseios de autoafirmação. Quem dizia isso era uma moradora de rua, na São Paulo dos anos 1970.
Maria Eulina Reis da Silva tinha 20 e poucos anos e costumava passar as noites na escuridão de vias públicas do centro paulistano. Quando estava muito frio ou ela se sentia muito cansada, olhava para aquele imponente castelinho em ruínas e pensava: por que não procurar abrigo ali? O prédio estava abandonado – ela não sabia – desde o fim dos anos 1930.
- Eu via aquilo sempre vazio e ficava pensando em pedir abrigo. Um dia tomei coragem e perguntei ao segurança se eu podia entrar, passar a noite.
Ele negou, com a sisudez inerente ao cargo. Maria Eulina ficou rodeando o local, num misto de insatisfação e curiosidade. Então o guardinha saiu para tomar um café e deixou a porta entreaberta. Era um sutil convite. Se não podia autorizá-la, podia simplesmente fingir que não a viu.
O ritual se repetiria sempre que a jovem moradora de rua precisava. Foram incontáveis as noites que ela dormiu dentro daquele castelo abandonado, em uma sozinhez que só sobrou em sua memória.
- Conversava com Deus... – conta ela, hoje, prestes a completar 66 anos.
Maria Eulina saiu das ruas pouco tempo depois. Foi trabalhar como empregada doméstica na casa de uma secretária executiva de empresa do ramo de laticínios. Dali, passou a fazer faxina também na sede da empresa. Lá, acabou conhecendo o seu marido: o alemão Alexandre Maximilian Hilsenbeck, diretor superintendente da firma, com quem viveria até a morte dele, em 2001, de quem herdaria o sobrenome Hilsenbeck e com quem teve dois filhos – um cientista político e uma publicitária.
O sonho de um dia ser dona do castelo jamais saiu de sua cabeça. E a vontade não era morar nele, não era ter uma vida de rainha. Maria Eulina botou na cabeça que precisava ajudar quem vivia nas ruas como ela havia vivido. Seu marido a incentivou. Então ela começou atuando na Favela do Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Ensinava as mulheres a bordar, a fazer crochê e tricô, a pintar guardanapos. E, com isso, gerar renda.
- Entendi logo cedo que o segredo estava na capacitação.
Nos anos 1990, ela criou sua ONG, o Clube de Mães do Brasil. Em 1996, obteve a concessão de uso do Castelinho da Rua Apa. O imóvel já estava fechado há quase 60 anos. Em ruínas, acabara se transformado em depósito de sucata, em ponto de encontro de usuários de drogas, em antro escuro e sem perspectivas de melhorias.
Erguido em 1912 para servir de residência, o imóvel já estava com processo de tombamento aberto pelo Conpresp, o órgão municipal de proteção ao patrimônio, desde 1991 – trâmite que só seria concluído, com sucesso, em 2004.
Técnicos do departamento realizaram três vistorias no local. O primeiro relatório enfatizava o acúmulo de lixo, sobretudo papéis e madeira, que teria originado vários focos de incêndio. A segunda visita encontrou o imóvel no mesmo estado precário; os agentes ressaltaram não haver mais nada do telhado original – substituído por um fibrocimento improvisado. As calhas também tinham sido todas trocadas por canos de PVC, as janelas já não contavam com vidros e a escada de madeira, no interior do prédio, estava prestes a desabar. A última vistoria do Conpresp foi realizada em 2004, mesmo ano da conclusão do processo.
- Apesar do avançado estado de deterioração física que a construção apresenta no momento, todos os problemas observados são reversíveis – pontuou o documento.
O problema é que restaurar custa caro. E a ONG de Maria Eulina nunca foi de ostentar caixa cheio. Os recursos vieram do Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos (FID), da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania: R$ 2,8 milhões de reais para recuperar a histórica construção, que deve ser reaberta como centro cultural voltado à população mais pobre. Faltava um arquiteto que topasse a empreitada.
- E precisava ser especializado em restauro – frisa Maria Eulina.
Milton Nishida foi o 17° profissional procurado por ela. Ele não só topou como se encantou com as possibilidades do projeto.
- Os primeiros levantamentos foram feitos em 2010. Cinco anos depois, começamos a obra de fato – recorda-se ele.
Nishida conta que primeiro precisaram proteger e escorar todas as partes do imóvel, porque era necessário considerar o risco de desabamento. Só então a equipe conseguiu acessar as áreas internas com segurança e ver em detalhes tudo o que havia, fazer medições e projeções, avaliar o tamanho do estrago diante de tanto tempo de abandono.
O restauro do imóvel de 180 metros quadrados foi dividido em duas etapas: resgatar e recuperar as partes originais do prédio e construir de novo os itens faltantes.
- O castelinho estava em uma situação de ruína. A escada, por exemplo, não existia mais.
A previsão é que o local seja reinaugurado no próximo dia 6. A partir de então, a construção residencial inspirada em castelos medievais franceses terá também novos usos. A ONG deve usar cômodos para sua parte administrativa: escritório e sala de reuniões. Ao mesmo tempo, alguns projetos também estão previstos para acontecer lá. Maria Eulina fez questão que as obras reservassem um toque especial à cozinha, que deve se tornar um verdadeiro laboratório gastronômico: a ONG tem planos de ensinar estudantes de escolas públicas a manusear alimentos orgânicos ali; e, aos fins de semana, o espaço vai abrigar eventos gastronômicos comandados por estrangeiros refugiados, com ênfase para as culinárias regionais de cada um.
- É claro que para manter tudo, vamos precisar também abrir o castelinho para eventos corporativos e até casamentos. Será um espaço pronto para ser locado para isso. E, aos fins de semana, a ideia é abrir para visitação mediante pagamento de um pequeno ingresso – vislumbra Maria Eulina.
O que não falta é curioso aguardando por isso.