De mal-assombrado a bem-vindo: a volta do Castelinho
da Rua Apa

Oitenta anos depois do enigmático crime que abalou a cidade, a excêntrica construção do centro de São Paulo reabre suas portas

A recuperação de um curioso imóvel. (Jonathan Sarmento/Estadão)
Edison Veiga / reportagem

O castelo

- Um dia este castelo será meu.

Esta promessa não foi feita por nenhum aspirante a príncipe ou princesa, nenhum especulador imobiliário, nenhum magnata com anseios de autoafirmação. Quem dizia isso era uma moradora de rua, na São Paulo dos anos 1970.

Castelinho da Rua Apa: décadas de ruínas (Foto: Nilton Fukuda/ Estadão)

Maria Eulina Reis da Silva tinha 20 e poucos anos e costumava passar as noites na escuridão de vias públicas do centro paulistano. Quando estava muito frio ou ela se sentia muito cansada, olhava para aquele imponente castelinho em ruínas e pensava: por que não procurar abrigo ali? O prédio estava abandonado – ela não sabia – desde o fim dos anos 1930.

- Eu via aquilo sempre vazio e ficava pensando em pedir abrigo. Um dia tomei coragem e perguntei ao segurança se eu podia entrar, passar a noite.

Ele negou, com a sisudez inerente ao cargo. Maria Eulina ficou rodeando o local, num misto de insatisfação e curiosidade. Então o guardinha saiu para tomar um café e deixou a porta entreaberta. Era um sutil convite. Se não podia autorizá-la, podia simplesmente fingir que não a viu.

O ritual se repetiria sempre que a jovem moradora de rua precisava. Foram incontáveis as noites que ela dormiu dentro daquele castelo abandonado, em uma sozinhez que só sobrou em sua memória.

- Conversava com Deus... – conta ela, hoje, prestes a completar 66 anos.

Maria Eulina saiu das ruas pouco tempo depois. Foi trabalhar como empregada doméstica na casa de uma secretária executiva de empresa do ramo de laticínios. Dali, passou a fazer faxina também na sede da empresa. Lá, acabou conhecendo o seu marido: o alemão Alexandre Maximilian Hilsenbeck, diretor superintendente da firma, com quem viveria até a morte dele, em 2001, de quem herdaria o sobrenome Hilsenbeck e com quem teve dois filhos – um cientista político e uma publicitária.

O sonho de um dia ser dona do castelo jamais saiu de sua cabeça. E a vontade não era morar nele, não era ter uma vida de rainha. Maria Eulina botou na cabeça que precisava ajudar quem vivia nas ruas como ela havia vivido. Seu marido a incentivou. Então ela começou atuando na Favela do Jaguaré, zona oeste de São Paulo. Ensinava as mulheres a bordar, a fazer crochê e tricô, a pintar guardanapos. E, com isso, gerar renda.

- Entendi logo cedo que o segredo estava na capacitação.

Nos anos 1990, ela criou sua ONG, o Clube de Mães do Brasil. Em 1996, obteve a concessão de uso do Castelinho da Rua Apa. O imóvel já estava fechado há quase 60 anos. Em ruínas, acabara se transformado em depósito de sucata, em ponto de encontro de usuários de drogas, em antro escuro e sem perspectivas de melhorias.

Como o castelinho foi recuperado (Marcos Muller/ Estadão)

Erguido em 1912 para servir de residência, o imóvel já estava com processo de tombamento aberto pelo Conpresp, o órgão municipal de proteção ao patrimônio, desde 1991 – trâmite que só seria concluído, com sucesso, em 2004.

Técnicos do departamento realizaram três vistorias no local. O primeiro relatório enfatizava o acúmulo de lixo, sobretudo papéis e madeira, que teria originado vários focos de incêndio. A segunda visita encontrou o imóvel no mesmo estado precário; os agentes ressaltaram não haver mais nada do telhado original – substituído por um fibrocimento improvisado. As calhas também tinham sido todas trocadas por canos de PVC, as janelas já não contavam com vidros e a escada de madeira, no interior do prédio, estava prestes a desabar. A última vistoria do Conpresp foi realizada em 2004, mesmo ano da conclusão do processo.

- Apesar do avançado estado de deterioração física que a construção apresenta no momento, todos os problemas observados são reversíveis – pontuou o documento.

O problema é que restaurar custa caro. E a ONG de Maria Eulina nunca foi de ostentar caixa cheio. Os recursos vieram do Fundo Estadual de Defesa dos Direitos Difusos (FID), da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania: R$ 2,8 milhões de reais para recuperar a histórica construção, que deve ser reaberta como centro cultural voltado à população mais pobre. Faltava um arquiteto que topasse a empreitada.

- E precisava ser especializado em restauro – frisa Maria Eulina.

Milton Nishida foi o 17° profissional procurado por ela. Ele não só topou como se encantou com as possibilidades do projeto.

- Os primeiros levantamentos foram feitos em 2010. Cinco anos depois, começamos a obra de fato – recorda-se ele.

Nishida conta que primeiro precisaram proteger e escorar todas as partes do imóvel, porque era necessário considerar o risco de desabamento. Só então a equipe conseguiu acessar as áreas internas com segurança e ver em detalhes tudo o que havia, fazer medições e projeções, avaliar o tamanho do estrago diante de tanto tempo de abandono.

O restauro do imóvel de 180 metros quadrados foi dividido em duas etapas: resgatar e recuperar as partes originais do prédio e construir de novo os itens faltantes.

O Castelinho da Rua Apa restaurado já pode ser visto por quem passa pelo MinhocãoTiago Queiroz/Estadão
Na reta final dos trabalhos, operários da obra posam para fotoTiago Queiroz/Estadão
Curioso imóvel ficou fechado por 80 anos: agora, finalmente, terá novo usoTiago Queiroz/Estadão
Foram recuperados pisos, gradis e todo o interiorTiago Queiroz/Estadão
Esquina da Rua Apa com a Avenida São João: uma nova fachada na paisagemSergio Castro/Estadão
Castelinho foi erguido em 1912Sergio Castro/Estadão
Vitrais também foram refeitosSergio Castro/Estadão

- O castelinho estava em uma situação de ruína. A escada, por exemplo, não existia mais.

A previsão é que o local seja reinaugurado no próximo dia 6. A partir de então, a construção residencial inspirada em castelos medievais franceses terá também novos usos. A ONG deve usar cômodos para sua parte administrativa: escritório e sala de reuniões. Ao mesmo tempo, alguns projetos também estão previstos para acontecer lá. Maria Eulina fez questão que as obras reservassem um toque especial à cozinha, que deve se tornar um verdadeiro laboratório gastronômico: a ONG tem planos de ensinar estudantes de escolas públicas a manusear alimentos orgânicos ali; e, aos fins de semana, o espaço vai abrigar eventos gastronômicos comandados por estrangeiros refugiados, com ênfase para as culinárias regionais de cada um.

- É claro que para manter tudo, vamos precisar também abrir o castelinho para eventos corporativos e até casamentos. Será um espaço pronto para ser locado para isso. E, aos fins de semana, a ideia é abrir para visitação mediante pagamento de um pequeno ingresso – vislumbra Maria Eulina.

O que não falta é curioso aguardando por isso.


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