Julio Maria
rank Sinatra não morreu. Mesmo perto de fazer 100 anos, no próximo sábado (12), o alcance de sua voz e o magnetismo de sua personalidade ainda desafiam biógrafos e pesquisadores que reproduzem versões da história cheia de controvérsias que ele deixou e tentam entender o que foi aquilo que passou pelo mundo entre os dias 12 de dezembro de 1915, quando nasceu em Hoboken, como um milagre, e 12 de dezembro de 1998, dia em que os grandes olhos azuis se fecharam para sempre, em Los Angeles. Nenhuma voz ainda conseguiu ser maior; ninguém teve peito para escrever sozinho, como diz o pesquisador Zuza Homem de Mello, o songbook da música norte-americana como ele o fez. Em mais um esforço para entender o fenômeno do homem chamado de 'Voz', a editora Companhia das Letras lança nesta semana 'Sinatra - O Chefão', o segundo volume de um projeto biográfico monumental do autor James Kaplan, com 1176 páginas. E o Estado publica este especial, 'Sinatra 100 anos', com análises e reinterpretações de sua obra.
No cinema e nos estúdios. As marcas nas telas foram deixadas em produções como 'A Um Passo da Eternidade' (1953), 'O Homem do Braço de Ouro' (1955) e 'O Expresso de Von Ryan' (1965). Nos estúdios, a distância do 'Chefão' dos microfones atesta como ele mesmo sabia trabalhar a dinâmica da própria voz durante as gravações
uando não estava resfriado, quando não tinha brigado com Ava Gardner na véspera nem arrependido por se conter em não ter dado um soco na cara do repórter bisbilhoteiro, Sinatra era o cantor que mais se divertia cantando com orquestra. É que para Sinatra, como para Duke Ellington, a música era sua amante. Em sua vida não perdeu tempo nos encontros que tiveram. E teve sorte: viveu a fase da grande mudança na vida americana nos anos 40 e 50. Inclusive a dos discos 78 para os Long Playing de vinyl.
Foi quem gravou quase tudo que você quer ouvir do American Songbook. Muito mais que na dançante ‘New York, New York’ ou na chinfrim ‘Strangers in the night’ que ele odiava cantar, foi o cantor que interpretou o sofrimento, as elegias que se identificam como sua marca, a voz dos perdedores.
O crooner da orquestra de Harry James que grava com 23 anos ‘All or nothing at all’, canção apenas razoável, dá a pista de como seguiria cantando: ataca com segurança, projeta a voz com dicção clara, convicto da letra, domina a respiração para alongar as notas. Na voz de Sinatra é a primeira canção destinada a se tornar clássico.
Frank Sinatra e o trombonista Tommy Dorsey formaram o par mais perfeito do estilo romântico na canção americana. Pareciam ter nascido um para o outro na delicadeza e suavidade de interpretação de ambos, esmerada pela virtude do legato. Deslumbrado com a capacidade de Dorsey respirar pelo canto da boca e ter fôlego para emendar a última frase de uma parte na primeira da seguinte, Sinatra fez do seu jeito com a maestria do chefe. Ao acariciar as palavras, Sinatra era o parceiro ideal para a acetinada execução do inigualável trombone com surdina de Tommy Dorsey. Flagrantes dessa simbiose romântica acontecem em ‘Poor You’, a excepcional balada do Burton Lane, e em ‘Without a song. De novo, nascem clássicos.
Nos anos pós Guerra, contrata Axel Stordhal como seu arranjador no selo Columbia, quando se torna o ídolo que derruba corações das “sinatriacs”. Era “The Voice”. Não é só: diante da grande orquestra de cordas em baladas românticas, apura a dinâmica, enfatiza palavras chave, faz os versos se comunicarem com a melodia, gravando clássicos já estabelecidos, ‘Falling in love with love’, e instituindo novos clássicos com suas interpretações: ‘Time after time’ de Sammy Cahn e Jules Styne. A fase Columbia termina calamitosamente, com Sinatra no fundo do poço vivendo o tortuoso romance com a mais linda mulher do mundo, Ava Gardner. Na sombria ‘I’m a fool to want you’, execra o demônio que o submetia, reconhecendo a impossibilidade de se livrar do grande amor de sua vida. Desesperado, implora pela volta, transmite uma súplica confessando ser impossível dominar sua angústia, sua paixão doentia, seu sofrimento. Uma obra prima da paixão incontrolável na forma de uma canção. Novo clássico.
O abatido cantor que antes enlouquecia as garotas consegue dar a volta por cima desempenhando no cinema um papel em que só ele acreditava: ser o ator de encomenda como um soldado beberrão fiel a um amigo. Um coadjuvante. Deu Oscar na cabeça. Fica apenas a um passo da eternidade. Precisava cantar.
Chegou à Capitol Records no momento certo, das gravações em alta fidelidade, dos LPs. Encontrou o arranjador certo: Nelson Riddle. Ampliou seu público na hora certa, o feminino e o masculino. Agora ficava entre dois polos alternados: o easy swinger de ‘All of me’ e o melancólico de ‘When your lover has gone’, uma das faixas do pioneiro conjunto de 16 canções reunidas sob um conceito. ‘In the wee small hours of the morning’ é um álbum LP, não um disco de 12 músicas. Em andamento super lento, quase ad libitum, Sinatra canta canções de abandono. Cercado por uma orquestra de cordas com arranjos de Nelson Riddle, sua voz é densa, tem uma dimensão de profundidade nunca antes atingida em interpretações tristes mas não desesperadas.
Nascera o Sinatra dos seus álbuns mais notáveis. ‘Close to you’ – injustamente desprezado pela Capitol, com a obra prima de Ralph Rainger ‘With every breath I take’ – é o segundo, em 1956. O terceiro, no ano seguinte, é ‘Where are you?’ com o mago das orquestrações de cordas, Gordon Jenkins, e a voz grave do cantor pleno e maduro que funciona como um violoncelo enchendo a atmosfera como em ‘I think of you’.
Aos 42 anos, sem Miss Gardner, grava o mais perfeito álbum da carreira, ‘Only the lonely,’ com sua imagem sugerindo um palhaço na capa e as orquestrações sombrias de Nelson Riddle elaboradas em uma semana. Em três dias de estúdio sai tudo: ‘Angel eyes’, de Matt Dennis, um achado: começa pela segunda parte que ambienta a cena do infeliz desprezado chegando ao bar sem os olhos de anjo da amada. Um perdedor. Álbum somente para os solitários, com ‘What’s new’ e ‘Guess I’ll hang my tears out to dry’, clássicos daí em diante.
‘No one cares’, o do cantor bebendo no balcão do bar, sozinho e pensando na vida com os casais felizes ao fundo; o da grade com a seção de cordas de Gordon Jenkins, traz ‘Just friends’, o primeiro encontro depois que o amor se desfez. Outro dos novos clássicos. O último é ‘Point of no return’, último álbum dos perdedores, último encontro com Axel Stordhal, do good bye em ‘I’ll see you again’.
Sem os seis álbuns da Capitol, os desesperados têm uma consolação: ‘September of my years’, do cinquentão Frank Sinatra na sua Reprise, de novo com Gordon Jenkins. ‘Last night when we were young’ ou ‘When the wind was green’ podem trazer de volta o passado, quando havia alguém. Já que agora se sentem perdedores.
Aos 82 anos, Zuza é pesquisador, jornalista, músico e escritor. Tem várias obras publicadas, dentre elas 'A Era dos Festivais', 'Música nas Veias - Memórias e Ensaios' e a compilação de entrevistas e reportagens 'Música com Z', todas lançadas pela Editora 34
Dono
do pedaço. Diante da grande orquestra de cordas, apura
a dinâmica
e enfatiza palavras-chave
Cantores e músicos brasileiros reinterpretam a obra de Frank Sinatra, em gravações exclusivas para o Estadão
Voz e piano. Pedro Mariano e o pianista Marcelo Elias
tocam 'The Shadow of Your Smile'
Voz e violão. Cibele Codonho e o violonista e compositor
Filó Machado mostram 'Speak Low'
o começo eu era Bing Crosby. Talvez levado pelas comédias dele com o Bob Hope. Estou aí falando da minha própria escolha pois meu pai, cantor que era, fazia uma imitação do Al Jolson ótima. Coisas do teatro de revista dos anos 30.
Nos anos 50, uma namorada e sua irmã, autenticas bobby boxers atrasadas, pois as verdadeiras eram da década anterior, me convenceram de que o Bing já era. Bom mesmo era Frank Sinatra, apesar de na época estar por baixo, gravando bobagens. Mas minha memória me levou a relembrar o quanto tinha ficado impressionado ao ver um filme da Metro, com mais estrelas que no céu, terminar com ele dando um banho, com um smoking branco, em cima de um “tambor”, cercado por uma orquestra sinfônica, cantando 'Old Man River'. Sem contar quando eu fui o Dean Stockwell em Anchors Aweigh e ele 'Fall in Love Too Easily'. A partir daí, Francis Albert se tornou meu sonho de consumo. E pra coroar, ele ganha um Oscar num personagem com quem me identifiquei. O fraco-abusado boa praça em “Um Passo Para a Eternidade”. Foi aí que eu virei Frank Sinatra. Mesmo ele morrendo no filme. Mas naquele filme todos morrem.
Passei a perseguir a vida do cara. Na época, ele tinha deixado de ser o tímido-bobo, pedindo ajuda romântica ao Gene Kelly e correndo com medo das mulheres. E estava casado com a mais bela entre as belas: a “devoradora” Ava Gardner.
O primeiro LP de 12 polegadas que consegui comprar foi 'The Voice'. Fundo verde, ele de camisa aberta, suéter amarela e casaco de camurça bege. 'Lover', 'Laura', 'That Old Black Magic', 'Try a Little Tenderness'... Mas suas músicas já povoavam minha trilha pessoal e sua vida era uma inspiração.
Quem não dançou, coladinho com uma namorada, 'What’s New' não sabe o que perdeu.
Sua carreira cinematográfica a partir do Oscar, e da separação com a Ava, criou uma nova persona. O fraco-abusado ficou um homem vivido, esperto e justo. Quando vi o trailer do 'Young at Heart', Sinatra e Doris Day?????? Fiquei esperando a estreia, como hoje esperam 'Star Wars'.
E lá estava eu, no cinema Caruso, sessão das 10, cinema lotado. Começa o filme. Lá está Doris com suas irmãs cantando, e o Gig Young, um compositor, namorando ela. E filme rolando e nada do Sinatra... Gig diz a Doris que mais tarde passará um arranjador para pegar as músicas. Mais tarde toca a campainha e Doris abre a porta. Um close, alguém de costas, chapéu meio caído na cabeça, capa de chuva jogada no ombro. Ele vira. É Frank Sinatra.
Todo cinema aplaudiu. Juro. Com gritos de viva! Não foi meu entusiasmo, nem ansiedade.
Entre músicas e filmes de qualidade, uma carreira de sucessos vai acontecendo para seus admiradores.
Quando ele faz High-Society e juntos, eu vejo eu ouço, Bing e ele! Ulalá!! Realização total. O velho “crooner” não perdeu a classe e, com humor, entrega a coroa ao “saloon singer”.
Vi todos seus filmes, comprei todos seus discos, li tudo que saiu em revistas e livros sobre ele. Depois vi shows em Las Vegas, Nova York... Vários.
Quando ele finalmente veio ao Brasil, eu era um dos principais diretores da Rede Globo. Seria muito fácil eu ir ao camarim cumprimentá-lo. Mas, não fui. Seria mais um entre os muitos. Não sei que tipo de sentimento me tomou. Se foi o 'All or Notting at All'... mas que me adiantava tirar uma foto, apertar sua mão, e dizer... dizer o quê? Muito prazer, gosto muito do senhor? Eu tinha inveja é do Aloysio de Oliveira, do Dom Um, do Eumir Deodato, sem falar do Tom que conviveu com ele na criação de um dos melhores discos que gravou. Segundo o próprio Francis. E que não sai da minha playlist.
Agora, enquanto escrevo, vejo o quanto “fanzôco” eu fui, e sou, do Chairman of the Board. E entendo porque pediram pra eu escrever algo sobre ele. Claro que biografia tem profissionais para isto. Quando ele partiu do nosso convívio, eu recebi imediatamente telefonemas dos meus dois filhos, Carla e João. Eles estavam preocupados, e com razão. Eles sabiam, pois foram criados ouvindo o Old Blue Eyes. Eu chorei como se fosse um parente, um grande amigo, um mestre, um guru.
E agora, só me resta, como aos milhões de admiradores cantar: 'I’ve Got You Under My Skin'
Além de sinatrista convicto,
Daniel Filho,
78 anos, é ator, cineasta, diretor de TV e produtor de cinema
Cinema cantado. Carreira cinematográfica a partir do Oscar e separação de Ava Gardner criam um novo personagem
Uma seleção com algumas das melhores performances ao vivo de Frank Sinatra
Ao vivo, para milhões. Apresentado pela princesa Grace, de Mônaco, o concerto foi transmitido pela rede de TV CBS em 1971. 'Something', dos Beatles, é uma das grandes interpretações nesta noite
Sonho realizado.
Frank Sinatra veio ao Brasil para fazer um grande concerto no Estádio do Maracanã no dia 21 de janeiro de 1980. Ele foi assistido por uma impressionante plateia de 170 mil pessoas. Neste trecho, canta 'I've Got The World On a String'.
Delicadeza no palco.
Os cuidados na captação de sua voz já são evidentes nos palcos no começo dos anos 60. Aqui, ele canta magistralmente 'You Make Me Feel So Young' (1962)
Símbolo de um país. Esta pode não ser a maior canção gravada por Frank em sua vida, em termos de riqueza harmônica e melódica, mas é sem dúvida a mais famosa de todas. Frank brinca com a plateia no começo desta apresentação.
Três grandes vozes.
Da apresentação 'The Ultimate Event' (1989), o trio canta neste trecho 'And The World Goes Round','There's A Boat That's Leaving Soon For New York' e 'New York, New York'
m 1965, o jornalista Gay Talese foi enviado a Los Angeles pela revista Esquire para entrevistar Frank Sinatra. Tudo havia sido acertado com o assessor de imprensa do cantor. Mas, ao chegar ao hotel, Talese recebe um telefonema desmarcando o encontro. Sinatra andava ressabiado com notícias de suas supostas ligações com a máfia e, além de tudo, estava resfriado.
Resfriado? Para mim ou para você isso não é desculpa para qualquer coisa, menos ainda para faltar ao trabalho. Mas para “The Voice” era uma tragédia. Afinal, o prosaico vírus influenza tinha capacidade de irritar narinas e a garganta do mais famoso cantor norte-americano e debilitar assim seu precioso instrumento de trabalho. Ainda mais quando havia em sua agenda a gravação de um especial para a TV e um disco para os próximos dias. O que fazer? Desistir da pauta? Não. Simplesmente cumpri-la de outra maneira. Pelas bordas, digamos assim.
Privado de se encontrar com seu personagem, Talese procurou falar com diversas pessoas que faziam parte do estafe do artista, seus conhecidos, funcionários, amigos e parentes. Talese conversa, de modo aparentemente informal, com essas pessoas. Convida-as para almoçar e jantar. Jamais grava essas falas (para não intimidá-las) e quase nunca toma notas. Isso ele faz no fim do dia, no seu quarto de hotel. Anota, transcreve tudo à máquina e arma um fantástico dossiê em torno do artista combalido pela gripe.
O editor da Esquire bancou as despesas, que, no final, somaram cinco mil dólares. Corrigidos pela inflação, quanto não seria isso hoje? Numa conversa por telefone, o editor Harold Hayes o tranquilizou. Não se preocupasse com as despesas, desde que estivesse conseguindo alguma coisa. Talese lhe disse que sim, mas não tinha certeza do que estava conseguindo. “Então, fique por aí até descobrir”, lhe disse Hayes.
O resultado, a “coisa” que Talese afinal consegue, é um artigo de 55 páginas, baseado em 200 páginas de anotações acerca das mais de 100 entrevistas que fizera, com pessoas da entourage de Sinatra. O título do texto não poderia ser outro: “Frank Sinatra Está Resfriado” e saiu publicado na edição da Esquire de abril de 1966. Desde então se tornou um clássico do chamado “jornalismo literário”. Ou melhor, do que deveria ser o jornalismo, caso este não tivesse cedido à preguiça do declaratório, às urgências do dia a dia e ao corte de custos para reportagens de fôlego. O próprio Talese, em texto posterior, admite que o tipo de jornalismo que praticava caiu em desuso em face da nova realidade econômica: “A estrada se tornou muito cara. O escritor está em casa”. Poderíamos acrescentar: o repórter está na redação e não sai à rua.
“Sinatra Está Resfriado” é um exemplo contundente de como fazer do limão uma limonada. Caso a entrevista fosse aceita, seria mais uma entre milhares, com o cantor respondendo a perguntas e tentando construir um perfil sob o ângulo que lhe fosse mais favorável. Ao recusar-se, possibilitou a Talese construir esse perfil de forma multifacetada, pelas vozes de inúmeras pessoas que com ele conviviam. E também moldado pela capacidade de observação do repórter, que afinal acabou convidado para acompanhar as gravações do disco, mas sem direito a falar com o cantor.
Lemos o perfil de um personagem que, sob muitos aspectos, se assemelha a um capo mafioso, o que Talese chama de “lado siciliano” de Sinatra. Ele pode ser generoso ou cruel, frio ou caloroso, de acordo com as circunstâncias. É um homem de poder, que na Sicília são chamados de “uomini rispettati”. Homens de respeito. Centenas de pessoas dependem dele, do guarda-costas aos músicos, do agente de imprensa à senhora que cuida da sua coleção de 60 perucas, e sempre viaja em sua companhia. Sinatra faz tudo pessoalmente, como homem de respeito que é. Odeia a impessoalidade anglo-saxã. Compra os presentes de Natal dos funcionários, pois sabe os gostos de cada um deles. Pergunta pela saúde da família, sabe se os filhos estão bem encaminhados ou dando problemas. Aconselha e ouve queixas. Em troca, exige respeito e dedicação total. É tudo ou nada.
Talese não se fixa apenas nesses detalhes, tão importantes para a compreensão de uma personalidade. Registra o grande cantor que, mesmo com a voz cansada (e combalida pelo resfriado), consegue expressar a emoção profunda dos períodos iniciais de sua vida em uma canção como ‘I’m Fool to Want You’. Através dessas evocações, reconstrói a trajetória do filho de emigrantes que, pelo talento e esforço, tornou-se o maior cantor de sua época. E o homem de poder do show biz, com ramificações pela política, mundo empresarial e sabe Deus quem mais.
Talese não cede à fofoca, mas sabe que um perfil se constrói com grandes rasgos de caráter e também com pequenos elementos. Sinatra bebendo, ou jogando no cassino, ou conversando com mulheres ou fãs, ou brigando com papparazzi, ou filmando com Virna Lisi – tudo é tão importante quanto Sinatra cantando com sua voz magnífica e a mais perfeita dicção de inglês que jamais se ouviu.
O perfil é “literário” apenas na maneira como é escrito. Talese checa os dados várias vezes e os coteja em depoimentos variados. Não inventa nem cogita. Trabalha com a “verdade”, ou o mais próximo que se pode chegar desta velha dama. O texto, refinado, depurado e trabalhado, possibilita uma aproximação inusitada a alguém tão famoso e super protegido como Frank Sinatra.
“Sinatra Está Resfriado” merece sua condição de clássico do jornalismo. Pelo menos do jornalismo de outros tempos. Hoje tudo se resolveria numa entrevista rápida e bem comportada e com respostas padrões a perguntas repetitivas. Ou, pior ainda, a uma dessas entrevistas a grupos de repórteres que, em seus textos, se esforçam para disfarçar a linha de montagem de que participaram. Talese fazia alta costura jornalística. O resto é prêt-à-porter.
Luiz Zanin é repórter especial, colunista e crítico de cinema do Estado, jornal para o qual escreve desde 1990
Um banquinho, uma orquestra ou um violão. Em dezembro de 1966, Jobim tomava uma cerveja em um bar no Rio quando
o garçom o chamou. Ao telefone, estava Frank Sinatra. Ali começou a negociação para que os dois viessem a gravar juntos.
Mesmo sem saber ler música, Sinatra tinha a orquestra em suas mãos e pedia suavidade ou mais ataque aos sopros, por exemplo
ogo no começo de ‘O Poderoso Chefão’, Jimmy Fontana vai a Don Vito Corleone e conta como sua carreira está empacada em Hollywood, por conta da intransigência de um produtor. Após o beija-mão, Marlon Brando, como o Don, lhe diz que não se preocupe. Ordena que seque as lágrimas – “Seja homem!” – e que vá cantar na festa de casamento de sua filha, Connie (Talia Shire). Logo em seguida, vem a cena emblemática. O produtor acorda, na noite, na cama empapada. É sangue. Com horror, ele apalpa a cabeça decepada de seu cavalo puro-sangue. O efeito intimidatório é fulminante. O ‘padrinho’ mostrou sua força, Jimmy ganha o papel.
Jimmy Fontana, na verdade, é Frank Sinatra e talvez as coisas não tenham se passado exatamente como o escritor Mario Puzo e o diretor Francis Ford Coppola mostram no primeiro capítulo da saga do Chefão (1972), mas no começo dos anos 1950 a carreira de Sinatra realmente estava estacionada em Hollywood. Poderia salvá-lo o papel numa ambiciosa produção que Fred Zinnemann ia começar a filmar, e que virou o grande vencedor do Oscar de 1953 – ‘A Um Passo da Eternidade’, uma adaptação do romance de James Jones. sobre o ataque japonês a Pearl Harbour. Os produtores não queriam saber de Sinatra por causa de sua ligação com o crime, mas a Máfia entrou em campo e usou seu controle sobre os sindicatos para intimidar a produção. Sinatra ganhou o papel do soldado e um dos oito Oscars (o de melhor coadjuvante) atribuídos ao filme.
Tudo isso é história, mas vale lembrar neste dezembro – dia 12 – em que se celebra o centenário de nascimento de Francis Albert Sinatra. Filho de imigrantes italianos – mãe genovesa, pai, siciliano –, ele nasceu em Hoboken, New Jersey. Filho único, iniciou a carreira musical na era do swing, nas orquestras de Harry James e Tommy Dorsey. Seu sucesso foi instantâneo e ele assinou com a Columbia Records em 1943. Virou ídolo das ‘bobby boxers’, como eram chamadas as fãs de swing. Antes disso, já estava em Hollywood, onde estreou, em 1941, com ‘Noites de Rumba’, num pequeno papel. As participações foram crescendo – duas parcerias com Gene Kelly em musicais que se tornaram clássicos, ‘Marujos do Amor’, de George Sidney, e ‘Um Dia em Nova York’, de Stanley Donen. Mas, por volta de 1950, as coisas começaram a reverter. Em 1952, Sinatra, o italianinho com amigos malfalados, virara o ‘indesejável’.
Renasceu como ator dramático e, desde então, alternou papéis cada vez mais intensos (o assassino de ‘Meu Ofício É Matar’, e o filme de Lewis Allen possui a fama de haver inspirado o assassinato do presidente John Kennedy; o viciado de ‘O Homem do Braço de Ouro’, de Otto Preminger; o escritor de ‘Deus Sabe Quanto Amei’, de Vincente Minnelli) com musicais de alto nível (‘Eles e Elas’, de Joseph L. Mankiewicz; ‘Alta Sociedade’, de Charles Walters; ‘Meus Dois Carinhos’, de George Sidney). Com amigos como Dean Martin, Sammy Davis Jr. e Peter Lawford, formou uma lendária turma de amigos, a Rat Pack, que repercutiu em filmes e ligações importantes. Lawford pertencia, pelo casamento, à família Kennedy e, através dele, Sinatra tornou-se íntimo do futuro presidente. Teria sido ele o homem que introduziu Marilyn Monroe na Casa Branca e reza a lenda que ela teria sido, simultaneamente, amante do então presidente e de um chefão mafioso, e que isso teria levado a seu assassinato pelo serviço secreto, numa operação camuflada como excesso de barbitúricos.
Os anos 1960 consolidaram o Sinatra ator dramático. Os musicais foram escasseando (‘Can-Can’, de Walter Lang), os westerns, thrillers e filmes de guerra tornaram-se dominantes. Surgiram filmes que fizeram história – o político e premonitório ‘Sob o Domínio do Mal/The Manchurian Candidate’, de John Frankenheimer, que muita gente vê com ligação com o assassinato de Kennedy, e a parceria com Gordon Douglas, que foi crescendo através de Tony Rome e ‘A Mulher de Pedra’ até chegar ao poderoso ‘The Detective/Crime sem Perdão’, em que ele faz um policial que se desliga da instituição ao descobrir a corrupção dos colegas. Por essa época, a mídia já colara em Sinatra todas aquelas etiquetas – The Voice/A Voz, Blue Eyes/Olhos azuis. Ele se casara algumas vezes, duas com atrizes – Ava Gardner e Mia Farrow. Convertido em mito, deixou de vender muitos discos, mas compensou com os grandes shows que o levaram a correr mundo, apresentando-se, inclusive, no Brasil (um espetáculo no Maracanã lotado).
Decorridos quase 20 anos de sua morte (em maio de 1998), aos 82 anos, é mais que tempo de analisar o legado de Sinatra. Como cantor, marcou uma era – e ajudou a dar projeção a Tom Jobim, com o êxito de ‘The Girl from Ipanema’. Como ator, entrou para o panteão dos grandes. Possuía aquela qualidade rara – o rosto esculpido na pedra. Bastava-lhe um tom de voz, um olhar para expressar o desgosto que consumia o policial de ‘Crime sem Perdão’. Sua persona poderosa construía o resto no imaginário do público. Em 2000, Clint Eastwood prestou-lhe belíssima homenagem em ‘Cowboys do Espaço’, sua fantasia sobre velhos astronautas na derradeira missão. O filme encerrava-se com um dos caubóis morrendo na Lua e olhando a Terra de longe. Na trilha, ‘Fly Me To the Moon’, na voz de Sinatra. Foi um de seus maiores sucessos como cantor, com ‘My Way’ e ‘New York New York’.
Luiz Carlos
Merten é jornalista e crítico de cinema
O playboy e o crooner Parte 1:
A amizade
O playboy e o crooner Parte 2:
O poder
O playboy e o crooner Parte 3:
A separação
Veja como o Estadão publicou notícias sobre Frank Sinatra ao longo de sua história