A reserva Raposa Serra do Sol
﷯om 1,7 milhão de hectares, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol era alvo de disputa desde os anos 70, quando começou seu processo de identificação e demarcação. Em 2005, foi homologada pelo presidente Lula. Mas a retirada de não índios foi interrompida quando um grupo de rizicultores se recusou a sair. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal decidiu: a reserva é contínua e os arrozeiros tiveram de sair C
Raio X da reserva

MUNICÍPIOS

Normandia, Paracaima e Uiramutã

POPULAÇÃO INDÍGENA

20 mil pessoas

EXTENSÃO

DA RESERVA

1,7milhão de hectares de área contínua

PRINCIPAIS

ETNIAS

uapixana, ingaricó, macuxi, taurepangue
Roraima, um ‘Estado-modelo’ para a atuação das ONGs  Seis anos depois da decisão do Supremo Tribunal Federal de retirar fazendeiros das terras indígenas da reserva Raposa Serra do Sol, o perfil de Roraima mudou e o Estado tem atraído a atenção de ONGs brasileiras e estrangeiras que atuam pela causa indígena. “Somos um movimento global de apoio aos indígenas”, afirma Sarah Shenker, representante da ONG Survival, que tem sede em Londres, uma das principais organizações internacionais de apoio a tribos brasileiras envolvidas na mais polêmica disputa fundiária nacional das últimas três décadas. “Nosso trabalho é gerar atenção para as ameaças contra os índios e pressionar o governo por soluções e proteção”, diz Sarah. A Survival, que acompanhou o processo judicial da demarcação de terras contínuas da Raposa Serra do Sol, não é a única ONG internacional interessada na empreitada. Entre as organizações mais presentes em Roraima há fundações estrangeiras e agências de governos nacionais. Os principais exemplos de ONGs com trabalho forte no Estado são a Cafod, entidade ligada à Igreja Católica da Inglaterra; a Fundação Tebtebba, ligada à indígena filipina Victoria Tauli-Corpuz, consultora da ONU para direitos indígenas; além de representações dos governos da Noruega, Alemanha e Estados Unidos; mais fundações, como a americana Ford Foundation, estabelecida no Brasil desde 1962, e a Rainforest Foundation Noruega, atuante no País desde 1989. Segundo a porta-voz da Survival em Londres, a situação de insegurança dos indígenas brasileiros e a ausência de políticas claras de proteção dos povos pelo governo federal são prioridade na agenda de vigilância da ONG sobre o Brasil. A Survival tem programas de acompanhamento das realidades nas aldeias e reservas de povos como ianomâmi e macuxi, em Roraima, mas também atua com a população guarani de Mato Grosso do Sul, e os awá-guajá, do Pará e Maranhão, além de trabalhar em outros continentes. De acordo com a ONG, que defende abertamente a causa indígena, o trabalho não envolve repasses diretos de dinheiro. A ONG britânica funciona como uma plataforma de divulgação internacional das demandas. Para Sarah, quando um povo indígena começa a ser integrado aos não índios, ocorre um processo desigual. “Eles vão viver em periferias, em situação precária, e são vistos como seres inferiores”, afirma. Ela acredita que o primeiro passo para melhorar a situação dos índios “é o respeito”. Em segundo lugar, os não índios devem, segundo Sarah, se habituar a ouvir dos índios qual o modo de vida eles preferem para suas comunidades. Dinheiro europeu  Mas se a Survival não mexe diretamente com dinheiro, outras organizações se encarregam de garantir verbas para as comunidades. “A Noruega vem firmando parcerias de longa duração com várias associações indígenas e organizações não governamentais indigenistas no Brasil. O foco tem sido o apoio institucional, muitas vezes em conjunto com atividades de monitoramento, planejamento e capacitação”, diz Aud Marit Wiig, embaixadora da Noruega. “Em 2014, foi repassado o equivalente a 24 milhões de coroas norueguesas a associações e organizações indígenas e ONGs indigenistas no Brasil, algo em torno de R$ 8 milhões. Desse total, aproximadamente R$ 1,3 milhão foi repassado para parceiros atuando no Estado de Roraima”, diz a diplomata.
ENTREVISTA
Por que seu país financia projetos em comunidades indígenas no Brasil?
Em 1983, a Noruega criou uma linha específica de apoio aos povos indígenas. O Brasil foi o país-piloto escolhido para receber recursos dessa iniciativa, que se estende até os dias atuais. O compromisso maior do programa é contribuir com o Brasil para a promoção dos direitos humanos de seus povos indígenas, em conformidade com a Constituição do Brasil e dos tratados internacionais assinadas tanto pelo Brasil como pela Noruega; o mais importante sendo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pela Noruega em 1990 e pelo Brasil em 2002. Na Noruega, as políticas públicas direcionadas às necessidades do povo indígena sami têm tido importantes avanços nas últimas décadas, a principal delas talvez sendo a criação do Parlamento Sami em 1989. Quais as áreas de interesse da Noruega e por quê?
A Noruega vem firmando parcerias de longa duração com várias associações indígenas e organizações não governamentais indigenistas no Brasil. O foco tem sido o apoio institucional, muitas vezes em conjunto com atividades de monitoramento, planejamento e capacitação. A contribuição enfatiza o fortalecimento de atores locais para que estes tenham uma participação mais construtiva e efetiva nas políticas indigenistas nacionais. Para tanto, o programa busca: estimular o fortalecimento institucional dos parceiros para que estes desempenhem mais eficazmente o seu papel enquanto atores independentes, representativos e transparentes; apoiar processos de interação entre demandas indígenas e políticas públicas, contribuindo para que parceiros ampliem sua participação na defesa de direitos e no controle social; e promover equidades nas questões relativas a gênero. Qual sua avaliação dos resultados desses financiamentos? Há avanços nas comunidades?
A avaliação da Noruega é que, nas últimas três décadas, o apoio norueguês tem contribuído significativamente para o desenvolvimento e fortalecimento do movimento indígena no Brasil. Por sua vez, o fortalecimento desse movimento tem tido influência no reconhecimento de direitos indígenas pelo Estado brasileiro e no aprimoramento de políticas públicas voltadas para os povos indígenas. Como avalia o tratamento pelo Brasil das comunidades indígenas?
O Brasil é um país de dimensões continentais, com uma variedade muito grande de povos, línguas e costumes. Houve grandes avanços no reconhecimento dos direitos indígenas, mas ainda há desafios, principalmente em relação à sua implementação. Noruega é uma das principais doadoras para índios brasileiros A embaixadora da Noruega no Brasil, Aud Marit Wiig, defende o financiamento estrangeiro para as comunidades indígenas brasileiras. Ela ressalta que os índios noruegueses da etnia sami avançaram socialmente e hoje têm seu próprio parlamento.
 O financiamento para ONGs e projetos indígenas pelo governo norueguês começaram na década de 80 e ganharam força um ano antes da decisão do Supremo, em 2009. “Para o Brasil, o orçamento para 2009 soma 20 milhões de coroas norueguesas, o equivalente a R$ 6,5 milhões”, segundo documento da embaixada da época. Os recursos foram repassados para ONGs brasileiras e associações indígenas. Na lista de beneficiados pela Noruega, diz documentos da representação norueguesa, estavam, entre outras entidades, a Associação do Povo Indígena Zoró - Pangyjej (Apiz), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Conselho Indígena de Roraima, Centro de Trabalho Indigenista, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, Hutukara Associação Yanomami e Instituto Socioambiental (ISA). Constituição incentiva trabalho de ONGs com indígenas, diz procurador
Rei na selva  A situação dos índios brasileiros e sua cultura de selva despertam atenções até na Casa Real da Noruega. Na Fundação Rainforest, entidade daquele país que também é conhecida na região, a ideia de ampliar direitos dos índios recebe garantias do próprio rei Haroldo V. “Trabalhamos para reconhecer novas terras indígenas e proteger as existentes”, afirma documento da Rainforest. “Nossos projetos abrangem educação bilíngue, manejo de recursos naturais em terras indígenas, desenvolvimento de atividades econômicas sustentáveis e melhoramento de leis florestais e da situação jurídica de povos indígenas”, diz o documento, divulgado em português. Em 2013, o rei da Noruega visitou a aldeia do chefe ianomâmi Davi Kopenawa; recebeu presentes da comunidade e, segundo a ONG, achou a viagem uma maravilha. De acordo com levantamento de 2014 da Fundação Nacional do Índio (Funai), oficialmente o Brasil tem 53 autorizações de projetos de pesquisas em execução em áreas indígenas, nos quais há 71 brasileiros e 10 estrangeiros em operação. Segundo a Funai, em Roraima há quatro projetos em terra indígena. Barreiras  Mas moradores de Boa Vista costumam contar que é comum na cidade o trânsito de “gringos” interessados no acesso às riquezas naturais preservadas nos milhares de hectares de florestas e cerrados, que no Estado é chamado de “lavrado”. Somente na Raposa Serra do Sol há cerca de 10 milhões de hectares sob ocupação indígena. Fazendeiros da região argumentam que trabalhar e fazer negócios em Roraima, como tomar empréstimos em banco público, por exemplo, tornou-se tarefa carregada de burocracia. “Abrir uma empresa é normal”, diz o arrozeiro Genor Faccio, presidente da associação dos produtores do cereal de Roraima. “O problema é tocar a empresa. Aí começam as barreiras de documentos de posse de terras, crédito, exigências. Te matam no cansaço”, reclama Faccio. Um dos principais alvos de reclamação dos não índios do Estado está, atualmente, sendo questionado em processo na Justiça de Roraima. A “barreira” fica na BR 174, a cerca de 500 quilômetros ao sul de Boa Vista, no posto fiscal de Jundiá. Lá, os índios da reserva uaimiri-atroari controlam o trânsito na rodovia. Eles esticam uma corrente que atravessa a estrada e impede a passagem das 18h30 às 6h30 num trecho de 125 quilômetros no rumo de Manaus. “Só passam emergência e ônibus”, disse um indígena à reportagem, pouco antes de levantar a corrente e interromper a estrada. “Os caminhões com perecíveis podem passar até as 22 horas”, emendou o caminhoneiro Clóvis Faria, que transportava uma carga de bananas na direção do Amazonas. “Quem chega depois da hora tem de dormir aqui pra seguir viagem de manhã”, disse Estácio Araújo, de Boa Vista, também carregado e à espera da luz do dia para atravessar a reserva. ONGs brasileiras  Entre as ONGs brasileiras mais atuantes no Estado estão o Conselho Indígena de Roraima e a Hutukara Associação Yanomami, entidades comandadas por índios. No conselho de Roraima trabalha, por exemplo, a advogada Joênia Batista de Carvalho, uma índia uapixana que ficou famosa durante o julgamento do caso da Raposa no Supremo. Mas não são apenas organismos dirigidos diretamente por indígenas que atuam pela causa em Roraima. O Instituto Socioambiental e o Conselho Indigenista Missionário, ONGs apoiadas pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, também conhecem bem os meandros das questões fundiária, cultural, jurídica e indígena da região, além de dominar os caminhos dos financiamentos de projetos e repasses de verbas internacionais para as comunidades. Dólares  Também com forte presença na área, a Fundação Ford do Brasil, que tem sede no Rio, atua com repasses de dinheiro. E não esconde essa política de atuação por meio de valores em espécie. Em 2014 a fundação repassou, somente para o Conselho Indígena de Roraima, US$ 200 mil. Segundo Aurélio Vianna Jr., coordenador de apoio aos indígenas na entidade, o valor é doação para projeto de qualificação de indígenas na Universidade Federal de Roraima (UFRR). A Fundação Ford manda verbas também para o Cimi. No ano passado, foram US$ 250 mil para programa de expansão de direitos comunitários sobre recursos naturais. O Cimi não fala sobre doadores ou valores que recebe, embora reconheça que a maior parte dos recursos para o apoio a programas com índios tem origem na Europa. ‘Esquemão’  Para o antropólogo Edward Luz, ex-consultor da Funai, as ONGs brasileiras e internacionais se beneficiam dos recursos de um “esquemão de demarcações” de terras no País. “Há uma elite intelectual na antropologia brasileira que reza pela cartilha de uma política indigenista de fora”, critica. “Esses antropólogos foram treinados por 40 anos sob interesses geopolíticos de outros países, influenciaram na construção do princípio constitucional de 1988 (artigos 231 e 232) e hoje exercem o controle desta política indigenista brasileira.” “Qualquer crítica ao modelo dessa turma é tachada de argumento de direita, coisa de militar golpista”, afirmou o ex-consultor. O que há no Brasil, segundo ele, é “uma galera da antropologia vendendo mitologia enquanto as novas gerações de índios querem melhorias de vida, querem computador, celular, andar de carro, vestir calça jeans, como todos os jovens da idade deles”. “Enquanto os estudiosos, que eu chamo de ‘antropólongos', com ONG em maiúsculo, manipulam a política indigenista baseados na ‘redenção do mundo pelo retorno ao passado cristino’, temendo a ‘modernização perigosa’ e pregando o ideal da sociedade índia, povos indígenas brasileiros são impedidos de produzir, explorar as riquezas de suas terras, e passam a viver na miséria”, sustenta o antropólogo. Para o ex-consultor da Funai, boa parte do dinheiro das ONGs internacionais é consumida exatamente pelas ONGs. “Os índios que querem viver no isolamento existem, sim, como é o caso dos korubo, no Amazonas. Mas são uma minoria. Nos povos contatados, a resistência vem dos mais velhos, e dos técnicos das ONGs. A juventude não pensa assim”, declara. “Isso sem falarmos das mulheres, que são submetidas a abusos de toda ordem sem que os homens sejam punidos”, acrescenta.
Para o antropólogo, quando alguém “ousa” denunciar o comportamento agressivo nas comunidades “é porque não entendeu a cultura deles, é preconceituoso”. “O Brasil se cala diante dos abusos cometidos contra as mulheres e as crianças indígenas.” A polêmica sobre a reserva Raposa Serra do Sol