Administrar as finanças na velhice pode ser uma dificuldade, sobretudo dentro de casa. Mais da metade dos crimes de abuso econômico de idosos envolve os parentes mais próximos, como filhos, netos e sobrinhos. Dados do Disque 100, serviço de denúncias da ouvidoria da Secretaria dos Direitos Humanos do Governo Federal (SDH), mostram que dos tipos de violência cometidos contra os mais velhos, a financeira é a terceira maior do Brasil, atrás da psicológica (intimidação verbal ou não verbal, ameaças e humilhações) e negligência (abandono dos cuidados ao idoso).
A neta de uma das idosas que vivem na casa de repouso Lar dos Velhinhos, localizada em Serra Negra (SP), aplicou diversos golpes que somam cerca de R$ 11 mil. A aposentada Maria Aparecida Guirelli, de 56 anos, decidiu denunciar ao Ministério Público esse caso, um dos vários que presenciou de exploração financeira familiar entre seus clientes, desde 2011, quando se tornou presidente da instituição filantrópica. O dinheiro que supostamente deveria ser usado para pagar a estada da avó estava sendo desviado pela neta. Além da mensalidade do asilo, que hoje é de R$ 650, outros custos, como fraldas e remédios, não foram pagos durante alguns meses, o que levou a uma dívida de R$ 3 mil. “Cada dia era uma desculpa: que o caixa não funcionava, que o banco não liberava dinheiro e assim por diante. Era quase infantil”, diz Maria Aparecida. “A neta sumia e não pagava de jeito nenhum. Achei estranho e fui ao promotor relatar o caso.”
A presidente do Lar dos Velhinhos conta ainda que a cliente, de 89, diagnosticada com Alzheimer, ficou com o nome sujo na praça, pois a neta, que era curadora dos bens da avó, realizou sete empréstimos bancários, de aproximadamente R$ 8 mil. Na investigação, o MP comprovou que ela gastava toda a aposentadoria - uma quantia de dois salários mínimos -, sem repassar um centavo para as necessidades da avó. A neta foi condenada a cumprir, em regime aberto, 1 ano e 2 meses de reclusão, pena substituída pelo pagamento de multa. A curadoria foi transferida à irmã dela, que voltou a pagar o acolhimento da avó no Lar dos Velhinhos. Procurada pela reportagem, a família não quis se pronunciar.
O psicólogo Fernando Genaro, com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) sobre os cuidados clínicos e emocionais na velhice, diz que a violência contra o idoso, em geral, começa na negação de sua existência. “Quando se perde a dimensão ética do que o outro significa e o que é o idoso, geralmente se instauram as violências”, afirma Genaro, que também é o criador da primeira clínica de envelhecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), no Centro de Referência do Idoso (CRI), em Santana, bairro da zona norte de São Paulo.
De acordo com a professora convidada do curso de gerontologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Liliane Maria da Silva Melo, a invisibilidade social que os idosos enfrentam e a grande confiança que normalmente depositam nas pessoas mais próximas são os dois fatores principais quando ocorre o abuso. "O idoso acaba se tornando invisível, movimento oposto ao da criança. Ele é deixado de lado, e com as debilidades físicas e mentais não é considerado mais parte da família”, explica Liliane. “Às vezes, essas famílias são até afetuosas e existe um vínculo de confiança. Mas ele é quebrado quando surge a oportunidade de usurpar o idoso financeiramente.”
Segundo os especialistas, o perfil da família que comete esse tipo de violência é marcado por instabilidade financeira. Geralmente, são filhos ou netos que não têm vínculo empregatício e não demonstram responsabilidade em relação ao idoso.
Saindo do âmbito familiar, os idosos são vítimas também de golpes com os empréstimos consignados, modelo em que se debita, automaticamente, as dívidas dos benefícios de aposentadoria. A facilidade de contratação e do recebimento do dinheiro tornam a linha atrativa para as pessoas da terceira idade. No entanto, de acordo com estudo feito pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), no fim do ano passado, as dívidas sobre os créditos consignados acabam se acumulando em alguns casos, seja por falta de planejamento financeiro ou por abuso de uma instituição que oferece créditos. No relatório, cerca de 20% dos idosos responderam que já contrataram o crédito consignado e ainda estão pagando prestações. E aproximadamente 40% dos entrevistados com mais de 60 anos disseram que não analisaram os detalhes da contratação de empréstimos e outros serviços financeiros.
A aposentada Maria Rosa da Anunciação, de 80 anos, se apavorou ao ver os números de parcelas e pagamentos explodirem em sua conta, por causa de descontos provenientes de um suposto refinanciamento de empréstimo consignado, que ela afirma não ter contratado. A baiana, moradora de São Paulo há 32 anos, foi à Defensoria Pública do Estado de São Paulo no começo de 2016, depois de ter percebido que estava recebendo menos dinheiro do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) do que deveria. “Em 2015, fui ver minha conta e percebi que estavam tirando dinheiro da minha aposentadoria. Tinha dois empréstimos de mais de 70 prestações cada um para pagar”, diz Maria Rosa. A idosa ainda afirma que na época foi reclamar no banco por não ter feito nenhum empréstimo e que só continuou pagando pela insistência dos funcionários. “Eles diziam que eu tinha que pagar, porque tinha feito o empréstimo. Toda vez que eu ia ao banco eles me diziam a mesma coisa. Depois, me disseram que a dívida só seria quitada em 2020. Foi aí que entrei na Justiça”, acrescenta.
No pedido de indenização da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, enviado ao Estado, consta que o banco foi notificado, extrajudicialmente, para prestar esclarecimentos e mostrar os documentos que comprovem os empréstimos consignados. O banco emitiu apenas os contratos de renegociação ao órgão, mas não os documentos que teriam originado o refinanciamento, iniciado em 2014, com uma dívida de cerca de R$ 5 mil. A Defensoria alegou na ação judicial que “a inexistência dos supostos contratos originários, não reconhecidos pela autora (Maria Rosa), é um indicativo de irregularidade das cobranças efetivadas”.
Em dezembro de 2016, as defesas de Maria Rosa da Anunciação e da instituição financeira entraram em acordo. Com uma estimativa de indenização de R$ 25 mil, sendo R$ 10 mil de débitos bancários e R$ 15 mil por danos morais, baseados em todas as parcelas cobradas pelo banco, a ex-faxineira recebeu, conforme o acordo entre as partes, apenas R$ 2 mil. Além disso, todos os débitos com o banco foram anulados.
“Por si só, a contratação dos créditos consignados não pode ser considerada violência financeira, mas a forma de apresentação das cláusulas contratuais para o idoso, sim”, explica a defensora pública Dione Ribeiro Basílio, que fez o atendimento inicial de Maria Rosa. Neste caso, segundo Dione, a aposentada é analfabeta e como qualquer idoso que tenha dificuldade de ler e interpretar, sobretudo contratos bancários, ela se torna ainda mais vulnerável pela falta de informação adequada, seja pela linguagem não acessível, ou pelos valores e questões matemáticas que envolvem as cláusulas dos empréstimos e financiamentos.
Em outro caso similar de violência financeira institucional, o Ministério Público do Estado de São Paulo entrou com uma ação civil pública, em 2013, para proibir três associações de oferecerem serviços de auxílio jurídico a aposentados e pensionistas, como pretexto para os idosos assinarem contratos com termos de adesão e cláusulas, que cobravam ainda mais dinheiro.
De acordo com a ação do MP, atualmente em vigor com caráter liminar, a Associação Brasileira de Apoio Aos Aposentados, Pensionistas e Servidores Públicos (ASBP), a Associação Nacional de Defesa e Apoio ao Consumidor (Andac), e a Associação Brasileira de Apoio a Empresa (Abraem), procuravam os idosos, garantindo direito à revisão de benefícios, empréstimos consignados e outros serviços jurídicos - tudo isso, oferecido de forma “gratuita”.
Os idosos, em sua maioria de condição social humilde, tinham que se associar a essas instituições para supostamente se beneficiarem com a ajuda oferecida. Ao assinarem os contratos, firmavam - sem perceber - uma promessa de dor de cabeça. Teriam que pagar uma anuidade de R$ 1 mil e, caso se recusassem a desembolsar o dinheiro, uma das cláusulas ainda previa que os idosos autorizassem as associações a contraírem empréstimos consignados em seus nomes por meio de procuração. Os promotores do MP também apuraram que os serviços jurídicos nem sequer eram concluídos e que essas práticas eram “abusivas e criminosas por se aproveitarem de idosos, que são consumidores vulneráveis e hipossuficientes”.
Legislação e punições
O Estatuto do Idoso garante sanções contra a violência financeira. Confira os crimes e suas respectivas penas:
- O Artigo 102 prevê o crime contra a violência financeira com o seguinte texto: “Apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade”.
Pena: reclusão de um a quatro anos e multa.
- O Artigo 104 especifica o uso indevido de terceiros sobre o salário de aposentadoria dos idosos: “reter o cartão magnético de conta bancária relativa a benefícios do idoso, bem como qualquer outro documento com objetivo de assegurar recebimento ou ressarcimento de dívida” .
Pena: detenção de seis meses a dois anos e multa.
- Os Artigos 106 e 107 orientam sobre o ato de fazer uma procuração para fins ilícitos. Com a procuração, que pode ser particular ou realizada em cartório, a pessoa idosa que não quiser ou que for considerada incapaz de gerir bens transfere seus direitos para outra pessoa, geralmente alguém próximo. Se tal indivíduo induzir ou obrigar a pessoa idosa a assinar uma procuração, pode haver punição.
Pena: reclusão de dois a quatro ou cinco anos.
- O Artigo 108 trata especificamente de documentos como testamentos, que só devem ser assinados com o consentimento do idoso. “Lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos, sem a devida representação legal”.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.
- O Artigo 110 relata as mudanças no Código Penal relacionadas aos crimes contra idosos. De acordo com a legislação (Art. 61 do Código Penal), o idoso foi incluído entre as circunstâncias de agravamento da pena. Se um crime cometido contra uma criança, uma pessoa com mais de 60 anos ou uma mulher, a punição será aumentada.
Pena: nos homicídios culposo e doloso, por exemplo, aumenta-se em a pena em 1/3 em relação à sanção original, caso o crime for contra uma pessoa maior de 60 anos.
Como e onde denunciar?
A denúncia deve ser apresentada aos órgãos competentes, seja a Delegacia do Idoso, o Ministério Público ou a Defensoria Pública. Se uma denúncia indica que um familiar, vizinho ou qualquer outra pessoa esteja se apropriando dos bens de forma ilícita e que prejudique o bem-estar do idoso, a primeira ação é chamar um assistente social para verificar a saúde do idoso, de acordo com a promotora do Ministério Público de São Paulo, Cláudia Maria Beré.
Se for constatada a incapacidade de administrar os próprios bens por invalidez ou demência, o idoso será interditado, ou seja, um curador será nomeado para cuidar do seu patrimônio. Os filhos e netos têm obrigação, por lei, de aceitar a curadoria. Ainda segundo a promotora, os assistentes sociais tentam primeiro resolver as situações de forma extrajudicial, permitindo acordo entre o idoso e a própria família, quando há indícios de abuso.
“Não é preciso provar necessariamente que houve o crime, nós queremos resolver a situação. Às vezes a própria família entra em acordo, a curadoria do idoso pode passar para outro parente”, explica Cláudia. Caso o problema com o patrimônio do idoso não se resolva, o caso pode ir a algum promotor, delegado especializado ou defensor.
Disque 100
Como qualquer tipo de violência sofrida por um idoso, há alguns meios de denunciar os casos de abuso financeiro. O mais conhecido e mais imediato é por meio de ligação gratuita no Disque 100. Basta digitar os três números no telefone e relatar o caso, que será encaminhado ao órgão competente de acordo com cada situação. Outros meios alternativos para acionar o Disque 100:
- Via e-mail: disquedireitoshumanos@sdh.gov.br
- O portal www.disque100.gov.br
- Ouvidoria online do Disque 100: http://www.humanizaredes.gov.br/ouvidoria-online/
Ministério Público
Em qualquer Fórum da cidade de São Paulo, de acordo com a promotora Cláudia Maria Beré, há um estande do MP para atender os idosos, que podem fazer uma denúncia mediante auxílio dos funcionários. Os promotores esclarecem dúvidas em relação aos direitos dos idosos.
Ministério Público do Estado de São Paulo, Promotoria de Justiça de Direitos Humanos - Idoso Rua Riachuelo, 115, 1º andar - sala 149 - Centro São Paulo - SP - CEP: 01007-904 ( 55 11 3119-9082). E-mail: caoidoso@mpsp.mp.br
Delegacias do Idoso
As delegacias com atendimento especializado também são alternativas para a pessoa que quiser denunciar ou tirar alguma dúvida sobre os direitos do idoso.
Defensoria Pública
Por meio da Defensoria Pública, a denúncia poderia ser avaliada e algum defensor público poderia assumir o caso se o idoso não tiver recursos para arcar com um advogado particular. Mas, em geral, o serviço serve a princípio para avaliação e a partir da análise o caso é encaminhado para a instância responsável. Qualquer dúvida em relação aos direitos dos idosos pode ser consultada com os defensores públicos.
(11) 3101-0678 - Núcleo de Direitos do Idoso e da Pessoa Com Deficiência
idosoepcd@defensoria.sp.def.br