A maternidade em que o médico Alexandre Kalache nasceu, há 71 anos, hoje é um hospital geriátrico em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. A transformação do local é simbólica porque Kalache é um dos principais especialistas em envelhecimento da população mundial. Professor da Escola de Saúde Pública de Andaluzia, na Espanha, ele é conselheiro do Fórum Econômico Global e preside o Centro Internacional de Longevidade no Brasil, além de ter dirigido por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), na Suíça.
A transição demográfica brasileira é, na avaliação do pesquisador, um desafio eminente para o qual o País não está preparado. Em 2060, 33,7% da população será formada por pessoas acima de 60 anos. Somada à pequena taxa de fecundidade da mulher brasileira, hoje abaixo do nível de reposição, o cenário é preocupante: em 40 anos a razão de dependência de idosos em relação à população economicamente ativa atingirá 63%.
Na entrevista a seguir, o médico aponta as políticas públicas emergenciais e defende o engajamento individual frente à longevidade. “Antes, a vida era uma corrida de 100 metros, hoje é uma maratona. Para chegar lá na frente com qualidade de vida, é preciso se preparar, e não só economicamente”, diz.
A taxa de fecundidade da mulher brasileira está em 1,74 filho. Qual a dimensão desse fenômeno em termos da produtividade econômica?
Nossa taxa de fecundidade está abaixo da reposição desde 2000, ou seja, há 17 anos estamos perdendo população. Só não começamos a encolher por causa das das mulheres que nasceram entre as décadas de 1970 e 1980, que ainda estão tendo filhos. Com esse cenário, o que importa é pensar como o país responderá. O primeiro ponto é puramente econômico: precisamos fazer melhor uso das pessoas experientes. A gente está se dando ao luxo de ter uma idade média de aposentadoria de 54 anos. Isso é insustentável, porque indivíduos que poderiam estar gerando riquezas, sendo produtivos economicamente, estão deixando o mercado de trabalho muito cedo. A outra solução passa pela necessidade de se investir mais na educação, em todos os níveis. Se temos um número cada vez menor de jovens, por conta da taxa de fecundidade baixa, e os níveis de produtividade estão em queda, a conta não fecha. Para se ter uma ideia, no ano passado, 42% dos jovens brasileiros de 18 e 19 anos não tinham completado o ensino médio. Isso é um tiro no pé. Eles não serão pessoas produtivas.
A pirâmide etária do Brasil se transformou muito rapidamente se comparada às de países mais velhos, certo?
Sim, nosso cenário é complexo porque os países desenvolvidos envelheceram depois de terem enriquecido, enquanto o Brasil está passando por esse processo mais rapidamente e antes de ser rico. Em parte, isso acontece porque a tecnologia da saúde permite às pessoas viverem mais tempo, mas nem sempre com qualidade de vida, e, por outra, pela significativa queda da taxa de fecundidade.
E como o mercado de trabalho vai incorporar essa massa de trabalhadores envelhecida, considerando ainda que o antigo modelo linear de carreira - estudo, trabalho e aposentadoria - não terá espaço num futuro próximo?
A ideia de que a gente aprende no início da vida, depois produz para, lá na frente, se aposentar, é totalmente fora de moda, só fazia sentido na Europa de Bismark (Otto von Bismarck, premiê alemão), quando ele criou a seguridade social no século XIX. Naquela época, a expectativa de vida na Alemanha era de 46 anos, pouquíssimos chegavam aos 60. Não faz sentido 130 anos depois agir praticamente da mesma maneira. O brasileiro médio privilegiado, que teve acesso ao ensino superior, vai se aposentar com cerca de 54 anos e viverá por mais 30 recebendo o benefício. É uma calamidade. Precisamos de uma revolução na maneira de pensar a carreira, o trabalhador só vai continuar atraente se tiver, continuamente, habilidades para oferecer. E o empregador inteligente vai perceber que é vantajoso também para ele investir no capital humano de sua própria empresa, um processo de reciclagem mesmo.
Passamos por uma transição demográfica no exato momento em que o mercado de trabalho também se transforma. Como conciliar os dois fenômenos?
Eu diria que estamos vivendo a 4ª Revolução Industrial. No século XX, era a propriedade - uma cadeia de hotéis ou uma fábrica de automóveis, por exemplo - que conferia poder. Hoje, você não precisa da coisa física, mas combinar informação e tecnologia para fornecer serviços, como o Uber e o Airbnb. Com isso, inevitavelmente muita gente vai perder seus postos de trabalho, sobretudo os facilmente substituíveis por máquinas. O Fórum Econômico Mundial diz que 47% das ocupações atuais têm o risco de não existirem daqui a 20 anos. A realidade é clara: você não pode preparar alguém para uma função que talvez nem exista. O treinamento contínuo será uma forma de garantir empregabilidade e é de interesse tanto do empregado quanto da companhia, seja ela pública ou privada.
Considerando essa flexibilidade profissional, o jovem deve planejar a carreira já pensando em possíveis ramificações em sua área de atuação?
Antigamente, a vida era uma corrida de 100 metros, você vinha com todo o gás até alcançar o fim. Hoje, ela é uma maratona. Para chegar lá na frente com qualidade de vida, é preciso se preparar, e não só economicamente. Costumo falar em quatro capitais fundamentais: o primeiro é a saúde, porque envelhecer doente é uma barra, até para quem tem dinheiro; o segundo é conhecimento, senão rapidamente você se torna obsoleto para o mercado de trabalho. Não estou falando de médico, mas um mecânico, por exemplo, que há 20 anos precisava dominar apenas a mecânica e atualmente é inútil caso não saiba de eletrônica. O outro é o capital social, com o qual se intensificam as relações interpessoais e se consegue voz na sociedade. Por fim, capital financeiro, que infelizmente poucas pessoas conseguem acumular, mas é essencial porque apenas a aposentadoria não será suficiente.
Por que o senhor cunhou o termo gerontolescente?
Sou um baby-boomer e faço parte da primeira geração que experimentou uma coisa inédita: a explosão demográfica com os melhores níveis de saúde e bem-estar social já vistos. Além disso, nos períodos de pós-guerra aumentamos a educação formal e vivemos a revolução sexual, vimos a Tropicália. Essa geração, hoje envelhecida, tem que ser coerente com sua história: se antes lutei contra guerras e ditaduras, hoje permaneço ativo e exigindo meus direitos, continuo virando a mesa, mas agora não mais como um adolescente, e sim um gerontolescente.
A Tábua da mortalidade de 2015 do IBGE aponta que as mortes naturais hoje estão mais relacionadas à degeneração do organismo devido ao envelhecimento. Em 1940, as doenças infecciosas, respiratórias e parasitárias eram as mais fatais. O que explica esse tipo de mudança?
Isso é uma consequência natural do processo de transição epidemiológica pela qual passam países em desenvolvimento: doenças antes relacionadas à limitações sanitárias e tecnológicas dão espaço a enfermidades novas. Quando eu era estudante de medicina, via muita muitas crianças morrerem. E, normalmente, crianças não morrem de diabetes ou implicações cardiovasculares, elas morrem de doenças agudas e infecciosas. Esses avanços fizeram com que as pessoas escapassem da morte precoce, e as doenças, então, mudaram de agudas para crônicas. Aparecem, ainda, aquelas relacionadas ao estilo de vida e ao excesso da comida na cidade, como diabetes, doenças metabólicas e cardiovasculares, além de colesterol alto ou doenças crônicas. Estas últimas, mesmo que você leve uma vida regrada, acabam aumentando, simplesmente porque se vive mais tempo. No Brasil, atualmente, 75% das mortes são devidas a doenças crônicas degenerativas, panorama bem diferente do visto nos anos 30 e 40. Mas, curiosamente, 14% das mortes ocorrem por doenças infecciosas, o que mostra que a gente ainda não conseguiu fazer a transição epidemiológica completa.
Quais são as “doenças do futuro”, considerando que nosso organismo, em geral, estará ainda mais velho?
São as doenças neurológicas e as degenerativas com complicações cognitivas, isto é, a demência. O grande fator de risco da demência é a idade. Se lá atrás o indivíduo morria aos 45, nem tinha tempo de desenvolver a doença. Em 2050, vamos ter no mundo cerca de 180 milhões de pessoas com demência (atualmente, são cerca de 47 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde), isso porque viveremos mais até os 90 anos.
Em 2060, a população brasileira será formada por 33% de idosos. O nosso sistema de saúde está estruturado para atender a essa demanda, que geralmente é mais dispendiosa?
Não. O setor público não está investindo o que é preciso, em parte porque o país envelheceu e está envelhecendo muito rapidamente antes de ter resolvido deficiências básicas, como de educação e infraestrutura. Mas há, também, uma competição por recursos cada vez mais escassos, o que se aprofunda com o momento de crise que vivemos.
Em que estágio estamos em relação aos demais países da América Latina?
Este ano fui à Argentina e ao México, eles estão melhores que nós. E dá para comparar com países muito mais pobres, como a Costa Rica, que assim como o Panamá está atraindo pessoas mais velhas porque tem oferecido serviço médico adequado para esse público.
Mas o tamanho da nossa população é um dificultador?
Também não. O Brasil é mais populoso, mas tem muito mais recursos. O Chile, com 17 milhões de habitantes, praticamente só tem cobre, enquanto nós detemos uma quantidade significativa de recursos naturais. Acontece que esses países têm se organizado e investido em infraestrutura, além de apostarem no turismo.
Diante desse cenário, devemos reformar nosso sistema previdenciário?
Não se trata de ideologia, é uma questão econômica, você coloca no papel e vê que não é possível manter uma política de seguridade social pensada nos anos 30 e 40, quando o número de beneficiários era muito pequeno se comparado à quantidade de pessoas economicamente ativas. A reforma está sendo empurrada há décadas porque representa perda de capital político, mas sua necessidade é óbvia. Em 2060, teremos 33% de idosos e uma taxa de fecundidade ainda menor do que a atual, ou seja, a conta não fecha. Se não repensarmos o modelo já, as consequências serão catastróficas para as futuras gerações.
Há 10 anos, o senhor encabeçou um projeto na OMS que propõe repensar a estrutura física das cidades a fim de atender às necessidades da população idosa. Na época, Copacabana foi seu laboratório. As ideias desenvolvidas estão sendo utilizadas no País?
Infelizmente, a “Cidade Amiga do Idoso” é desenvolvida em cerca de 2 mil cidades no mundo, só não dá certo no Brasil. É que nosso serviço público não responde a um desafio demográfico eminente. A gente precisa pensar políticas de moradia, transportes, saúde, direito e educação. Quando um ônibus é mais acessível para um idoso, ele também favorece uma grávida, um cara que quebrou a perna jogando futebol no final de semana ou um estudante com mochila nas costas. É bom para todos.
O setor privado também ainda não enxergou essa demanda?
Vou responder com um exemplo: nas pesquisas focais que fizemos para o projeto, descobrimos que os porteiros são, digamos, os melhores amigos dos idosos de Copacabana. Agora, o Bradesco Seguros está treinando os porteiros. Por que ele é um banco bonzinho? Não, porque percebeu que o único grupo que cresce no Brasil é o de 60 anos ou mais, que é a faixa com mais poder aquisitivo - os idosos movimentam cerca de R$ 1,5 trilhão na nossa economia; esse valor sobe para US$ 4 trilhões nos Estados Unidos, o movimento é global. Quer vender um lançamento imobiliário, um cruzeiro, um carro de luxo? Cultive esse cliente potencial.