Quando Joaquina Leccese, hoje com 88 anos, não reconheceu o neto depois de um almoço em sua casa, a filha Nívia percebeu que algo estava errado. Ela foi levada para uma tomografia e veio o diagnóstico de Alzheimer. Desde quando começou a ser atendida por uma equipe de especialistas do Sistema Único de Saúde (SUS), Joaquina não gosta das consultas. “Insistem em perguntar onde estou. É óbvio que estou na clínica”, conta. A doença ainda permite momentos de lucidez, apesar do avanço que já causa perdas cognitivas do lado esquerdo do corpo, que prejudicam a audição e a mobilidade.
Joaquina, que sobreviveu à tuberculose que enfrentou quando era jovem, representa um grupo da população que acompanhou a transição no perfil de doenças no País. Antes, as infectocontagiosas eram as causas de morte mais comuns. Hoje, doenças crônico-degenerativas são os principais desafios. O cenário pode ser explicado pelo aumento da população idosa no Brasil, que dobrou na última década.
O número de casos de demência, que correspondem a 55 mil novos diagnósticos por ano, deve alcançar 1,6 milhão de pessoas com mais de 65 anos em 2020. E vão afetar cerca de um quarto da população brasileira com mais de 80 anos daqui a três anos, segundo previsão de pesquisadores da Universidade do Porto (Portugal) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Quanto mais tempo vivemos, maior a probabilidade de apresentarmos um estado de demência”, explica o diretor da Unidade de Cardiogeriatria do Instituto do Coração (Incor) e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Wilson Jacob Filho. A chance de ter Alzheimer, por exemplo, que aos 60 anos é de 1%, chega a ultrapassar os 20% após os 90.
Quem apresenta a doença em uma idade avançada começa a ter os neurônios alterados anos antes, mesmo sem saber. O doutor Jacob Filho explica que a velhice em si não provoca demência, mas facilita seu desenvolvimento no organismo.
De acordo com a pesquisa da Universidade do Porto e Ipea, o Alzheimer é responsável por 60% a 70% dos casos de demência, seguido por demência vascular (entupimento dos vasos sanguíneos cerebrais) e mal de Parkinson. “Na verdade, não é o Alzheimer que causa mais demência, e sim os outros fatores, como os vasculares, que originam menos casos”, diz o médico do Incor.
Além das doenças degenerativas, as patologias crônicas, como o câncer, também podem ser consideradas doenças do futuro. Como costumam se manifestar numa idade intermediária, a pessoa envelhece com ela, o que pode gerar complicações. É o caso de um infarto, por exemplo, que pode estar relacionado à hipertensão.
Em um exame recente, Joaquina foi identificada com uma bactéria no pulmão e encaminhada a um pneumologista. “Os médicos me disseram que as complicações são o grande risco para o portador de demência, não a doença em si”, afirma Nívia. Pelo mesmo motivo, a idosa também faz tratamento com um fonoaudiólogo para prevenir problemas para comer, que afetam esses pacientes.
Países em desenvolvimento. O estudo feito pelos especialistas da Universidade do Porto e do Ipea aponta que países emergentes têm maior prevalência de demências em relação aos desenvolvidos. As principais razões são os níveis de escolaridade mais baixos e hábitos relacionados à obesidade e sedentarismo. Joaquina Leccese, por exemplo, é analfabeta. Criada em São Roque, cidade do interior de São Paulo, ela ajudava o pai na plantação de amendoim quando criança. Na capital, começou a trabalhar em fábricas, mas nunca frequentou a escola.
A pesquisa revela que o Brasil apresenta uma média maior que a mundial em número de demências e especialistas alertam para a necessidade de ações com foco em melhorar a alimentação, estimular exercícios físicos e combater o fumo e o consumo de álcool. “Isso modificaria drasticamente o cenário no País”, afirma Jacob Filho. Para o chefe do setor de Neurologia de Comportamento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Paulo Bertolucci, dar destaque à atenção básica no SUS também é um ponto importante para diminuir a incidência desses males.
Mas não é apenas o estilo de vida que pode aumentar as chances de desenvolver algum tipo de demência. “A incidência depende também da genética”, alerta Bertolucci. Nívia, que acompanha o cotidiano da mãe com Alzheimer, diz que tem medo de passar pelo mesmo processo. “Sei que não vou ter quem cuide mim”, confessa. O medo de ficar sozinha a fez procurar repúblicas para pessoas com mais de 50 anos, onde pretende morar quando a mãe morrer. “Na falta dela, vou tomar meu rumo.”