Considerado o pai da internet no Brasil, Demi Getschko, de 63 anos, PhD em engenharia eletrônica pela USP, foi o primeiro brasileiro a entrar, em 2014, no Hall da Fama da Internet, honraria concedida pela Internet Society, organização não governamental formada por representantes de todo o mundo. O colunista do Estadão, diretor presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR e conselheiro do Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br) fala nesta entrevista sobre a falsa oposição entre liberdade e segurança, o futuro da tecnologia e o “fim” da rede. “Se a internet de fato for um sucesso, vamos parar de falar sobre ela e começar a falar apenas sobre o que há nela.” Leia, a seguir, os principais trechos:

Como se proteger na internet sem abrir mão de direitos?
Não há nenhum motivo específico para pensar que ao passar os seus dados ou, digamos, a chave da sua casa para alguém, tornará tudo mais seguro. Não há por que pensar que sua segurança aumenta se você for monitorado o tempo todo. Isso porque você não será monitorado apenas pelos homens do bem, mas por todos. Alguém colocar no Twitter: “Não tenho nada a esconder. Por isso, não tenho nada contra verem meus dados” é equivalente a afirmar: “Não tenho de me preocupar com liberdade de expressão porque eu não tenho nada a dizer especificamente”.

O Marco Civil da Internet foi uma peça fundamental para garantir a neutralidade da rede no Brasil. No entanto, há países que não dispõem de dispositivos semelhantes. É possível que tenhamos um retrocesso nesse campo?
A grande jogada do Marco Civil é que a lei foi uma abordagem no estilo holístico da internet. Tentamos, de alguma forma, proteger conceitos da internet como um todo. Outros países têm leis mais pontuais. O Marco Civil é uma lei que regula para que não haja regulação pesada. É uma lei anti-regulação. Certamente, falta uma lei sobre proteção de dados. Há um projeto (o PL 5276/2016) sendo discutido no Congresso, que eu espero que um dia passe, que deve melhorar um pouco a nossa proteção. O uso de dados é hoje parte do modelo econômico de muitos negócios, mas seria bom que isso fosse uma decisão consciente do usuário. Esse é um conflito de direito importante, que temos de manter equilibrado: o direito à privacidade versus as ferramentas de segurança geral que devem existir. A internet possibilita uma investigação bastante ampla, mas isso não quer dizer que você deva expandir isso aos limites do que a tecnologia permite. Senão, nós teríamos de fato o “grande irmão” nos vigiando dia e noite.

A neutralidade da rede pode ser comprometida por grandes corporações?
Como a internet é uma tecnologia de ruptura, alguns querem perpetuar as ideias antigas no mercado novo. Na internet não há um menu, um cardápio pré-selecionado, como corre na TV a cabo. Se você transformar o serviço em um cardápio, vai estar engessando as opções do usuário. Um dos conceitos básicos de neutralidade é permitir que o usuário consiga acessar tudo o que existe na rede. Se isso não for possível de ser encontrado pelo usuário, ele terá algo que parece a internet, mas não é. Você é o juiz do que quer ver ou não.

A presença de grandes empresas cria bolhas na internet?
Algumas empresas têm um domínio de mercado tão grande que se confundem com a própria rede, na visão de um usuário menos acostumado. Tem gente que está em uma rede social específica e aquilo, para ele, é a internet. Do ponto de vista de iniciativa, nada impede que um brasileiro tenha uma bela ideia e faça uma startup espetacular. Se isso não fizer parte do cardápio do seu provedor, você nunca vai saber que aquilo existe. A “iniciativa sem limites” deve ser preservada, para que coisas novas surjam e depois cresçam. E, se não forem um sucesso, desapareçam. Vai ser um processo darwiniano de seleção dos mais aptos.

A Internet das Coisas vai permitir uma alta personalização de equipamentos e serviços, o que está sendo chamado de “Internet do Eu”. Isso não vai exacerbar o individualismo?
Eu não vejo a Internet das Coisas como algo que aumente a bolha. Ao contrário, acho que aumenta a nossa exposição à rede. A internet em si gera um efeito de bolha, em que você se cerca de algumas coisas que são usuais e acaba vivendo naquele mundo. Mas ninguém fica fechado em um grupo eternamente. A Internet das Coisas é algo diferente. No momento em que o que você controla passa a ter voz e a falar, você deixa esse mundo antropocêntrico e passa a um mundo ontocêntrico, no qual as coisas são o centro. É capaz que as suas coisas resolvam tomar decisões por si, sem nem sequer consultar ou sem que você consiga controlar. O fato é que podem existir brechas de segurança.

Como isso poderia ocorrer?
Imagine uma notícia de alguém que descobriu um hack para controlar um marcapasso eletrônico, alguém descobriu um jeito de controlar a bomba de insulina de um diabético. Agora, pense em um ransomware (vírus que “sequestra” dados) nesse contexto. Se você tiver uma crise de glicemia, vai precisar pagar alguns bitcoins, senão o atacante pode detonar o nível de açúcar no seu sangue. São coisas realmente assustadoras, que a gente espera que não aconteça, pois confia no bom senso das empresas, que vão lançar produtos com segurança.

O senhor concorda com Leonard Kleinrock, um dos pais da internet, que disse que “a internet ainda tem que evoluir para chegar ao ponto de ser invisível”?
Não nos preocupamos se a luz é de 60 hertz, 40 hertz ou 50 hertz, hoje se coloca o equipamento na tomada e ele funciona. Essa é uma abordagem sobre o futuro da internet há quase 20 anos, e eu concordo. Se a internet de fato for um sucesso, vamos parar de falar sobre ela e começar a falar sobre o que há na rede. Já discutimos, por exemplo, redes sociais, não através da tecnologia, mas pelo tipo de conteúdo que apresentam, se as notícias são fake news ou não. Estamos nos descolando da rede em si e discutindo os aplicativos em cima dela. Isso indica que ela está sendo completamente absorvida no tecido social.

Estamos perto de atingir esse ponto?
Em alguns aspectos. Na fronteira, você ainda enxerga o tecido de baixo, que é a tecnologia. Qualquer sujeito, mesmo iletrado no interior do País, usa celular com bastante conforto, porque, estranhamente, ou paradoxalmente, quanto mais sofisticada é a tecnologia, provavelmente é mais fácil de ser usada. Você raspa o dedo, a tela vira para o outro lado, normal. É um pequeno grupo de sábios fazendo aquilo acontecer. Usuários normais apenas usam, com conforto, sem saber exatamente o que estão usando.

Especialistas dizem que vivemos uma 4ª Revolução Industrial, caracterizada por tecnologias com potencial disruptivo e de impacto no trabalho, que poderia levar a extinção de muitos empregos. O que vai ser diferente dessa vez?
Não sou muito fã dessas coisas de terceira, quarta, quinta onda. São coisas aleatórias. Mas uma coisa é verdade: a internet é uma ruptura séria. Ainda não conseguimos ter uma ideia do tamanho dessa ruptura, que acontece em diversos níveis da sociedade. Por exemplo, não sabemos bem como é interagir com a legislação local, considerando o fato que a internet não tem fronteiras. É estranho como uma lei nacional possa afetar o funcionamento de um serviço fora do país. Não sei se isso é bom ou ruim, mas eu sei que isso é difícil de tratar. Antigamente, quando você queria buscar indício de crimes, fazia busca e apreensão no computador do sujeito. Agora, com os dados na nuvem, você faz busca e apreensão onde? Não sou especialista em economia, mas certamente haverá uma destruição de vários negócios. Todos os negócios que podem ser razoavelmente automatizados, como a pesquisa de jurisprudência e análise diagnóstica. O que for automatizável certamente pode ser melhor feito por máquinas do que pelo ser humano. Alguns dizem que, na verdade, não haverá uma destruição, mas sim uma mudança de foco nos empregos e isso só quem viver verá.