Presidente do Instituto República e sócio-diretor da B3A Inovação, o economista Octavio de Barros, de 61 anos, é um dos nomes brasileiros quanto à realidade do precariado, ou precariato, como ele prefere chamar. O grupo, popularizado pela pesquisa do britânico Guy Standing, é o primeiro a experimentar o desaparecimento dos empregos, fazendo com que as pessoas tenham vários tipos de ocupação durante a vida. “Emprego no sentido clássico, que pressupõe alguma proteção social subjacente, seria uma espécie em extinção”, descreve Barros, que foi economista chefe do Bradesco por mais de dez anos.

Segundo ele, a constante inovação tecnológica e a Quarta Revolução Industrial, que elimina as fronteiras entre o mundo físico, o digital e o biológico, geram trabalhadores com muita insegurança existencial. “[A ideia de precariato] refere-se a trabalhadores independentes para serviços pontuais. Ou seja, o trabalho on demand: trabalhou, ganhou remuneração imediata”. Investir em educação interdisciplinar, permeada pela criatividade, é uma das maneiras de o precariado se preparar para o futuro de ocupações instáveis, reflete Barros. Ele ainda descreve o perfil dessa nova classe e aponta caminhos para melhorar a segurança dos trabalhadores. Leia mais na entrevista a seguir:

Alguns debates sobre as transformações no mundo do trabalho mencionam o conceito de precariato. O que significa concretamente esse conceito?

Se eu não estiver equivocado, esse termo foi cunhado pelo professor Guy Standing, da Universidade de Londres, há alguns anos. Imagino que o termo “precariato” tenha sido construído em contraste com o clássico conceito de “salariato”, que foi a forma que prevaleceu no século 20 referente às relações de trabalho no formato de contratos por tempo indeterminado e com proteção social. Na verdade, essa categoria social conhecida como “precariato” tem a ver com as profundas transformações recentes no mundo do trabalho. O prof. Guy Standing sugere uma clara distinção entre trabalho e emprego. Emprego no sentido clássico - que pressupõe alguma proteção social subjacente - seria uma espécie em extinção. Já o trabalho, esse vai continuar existindo em relativa abundância, apesar da tendência de crescente desemprego tecnológico.

O mundo do trabalho ganha contornos e condições bem diferentes do que estamos habituados a definir. A ideia de “precariato” tem a ver com a proliferação de atividades com gratificação instantânea, como as de motoristas de Uber ou freelancers em geral. Refere-se a trabalhadores independentes para serviços pontuais. Ou seja, o trabalho on demand (sob demanda): trabalhou, ganhou remuneração imediata. Ele acredita que exista o risco deste ser o formato que vá prevalecer em todo o mundo, sobretudo em um ambiente onde a revolução digital impõe uma inevitável flexibilidade no mundo do trabalho. Importante chamar a atenção para que a noção de “precariato” não tem nada a ver com uma subclasse e tampouco como algo anticapitalista. Muito pelo contrário, é um fenômeno inerente ao próprio capitalismo. Do “precariato” participam cidadãos que, segundo estudiosos do tema, aceitam que a vida seja naturalmente instável e não têm senso de ocupação clássico. São trabalhadores com muita insegurança existencial, mesmo com nível de educação bastante razoável. Na visão de alguns autores, são pessoas que, na prática, perdem o direito à cidadania e se tornam suplicantes: só obtêm as coisas apelando e, em alguma medida, se humilhando em busca de atividades que lhes permita tocar a vida.

A nova revolução industrial e as tecnologias disruptivas, com o crescimento expansivo da automação, têm grande responsabilidade na aceleração do “precariato”?

Em grande medida, sim. A quarta revolução industrial (eliminação de fronteiras entre o mundo físico, o digital e o biológico) tem dimensões disruptivas que dialogam com a revolução digital. O trabalho se torna cada vez mais on demand porque essa é a flexibilidade que o mundo digital impõe. Não estamos falando do fim do emprego industrial ou nos serviços, mas de uma profunda mudança na sua natureza. Estão em curso gigantescas mudanças na forma de se produzir e de se consumir. Vai ser necessário que as sociedades e os governos encontrem uma fórmula que assegure proteção social ao trabalhador nesse ambiente incontornável de flexibilidade crescente. Entendo que os impactos estão sendo subestimados.

O “precariato” é uma massa homogênea, com origens similares, ou é formada por diferentes grupos econômicos, com diferentes níveis educacionais?

Como eu mencionei, o “precariato” não significa necessariamente que o trabalhador não seja qualificado. Às vezes, o termo é equivocadamente confundido com o trabalho altamente desqualificado. Mas não é essa a ideia. Dentro do conceito do prof. Guy Standing, o “precariato” não é incompatível com níveis educacionais até mesmo elevados. Ele não pode ser confundido com o velho conhecido conceito de “lumpem proletariado” ou do trabalhador sem nenhuma ou muito pouca qualificação. São coisas diferentes. É bem verdade que tende a crescer o descompasso entre o trabalho menos qualificado e o trabalho qualificado. Mas isso é outra coisa. É plausível imaginar que também tende a se ampliar a discrepância de remunerações entre o trabalho qualificado e o não qualificado. Haverá polarização de qualificações e só será valorizado o emprego altamente qualificado. É importante ficar claro que toda essa mudança no mundo do trabalho se dá em um contexto onde a destruição de empregos será muito maior do que a criação de novas atividades ligadas à tecnologia. Esse gap será bem maior do que muitos imaginam, porque todos os modelos de negócios (e não apenas alguns) estão literalmente de pernas para o ar, e as mudanças tecnológicas são muito mais espraiadas setorialmente do que nos ciclos tecnológicos anteriores. Além disso, a velocidade das transformações é muito maior.

As mudanças no mundo do trabalho devem transformar as instituições brasileiras, tanto privadas como públicas?

Isso será inevitável, não só no Brasil como em praticamente todos os países. Importante ficar claro que isso não é uma capitulação a favor da flexibilidade que precariza em alguma medida o trabalho. A flexibilidade do trabalho é algo incontornável e inerente à própria transformação produtiva, com as inovações tecnológicas em curso. Os empregos vão gradualmente se tornando fragmentados e as carreiras se tornam cada vez mais voláteis, com ocupações temporárias vinculadas a projetos específicos por prazo determinado. Com os novos sistemas de produção cada vez mais flexíveis, os trabalhadores deveriam poder mudar de trabalho com mais frequência, sem o risco de perder a cobertura social. Isso já está sendo um grande desafio na revisão das legislações trabalhistas em todo mundo e também no Brasil. Um mercado de trabalho mais flexível exige mais proteção; e não menos. Em outras palavras, será necessário um novo “contrato social”, no sentido sociológico do termo. Esse será um desafio fundamental para que não se caminhe para uma deterioração social crescente. Mas não fará mais sentido a preservação da legislação do trabalho do século 20, porque isso é o que poderia levar à marginalização de imensas massas de trabalhadores sem proteção e na informalidade. Ou seja, as formas de proteção social é que deverão ser modificadas.

No Brasil, durante as últimas décadas, a necessidade da educação especializada foi frisada para o alcance do sucesso no mundo adulto e do trabalho. Como fica o tema das qualificações educacionais requeridas nesse contexto de brutais mudanças no mundo do trabalho?

De fato, a educação especializada está sofrendo profundos abalos com as mudanças no mundo do trabalho. A revolução digital exige novas habilidades da mão de obra considerando o redesenho total das relações de trabalho. Só sobreviverão, no médio e longo prazos, os empregos que dependam de criatividade, inteligência emocional e habilidades sociais (incluindo mentoring, ensino e cuidados com pessoas). Toda atividade que é meramente manual, cognitiva ou transacional sofrerá profundos abalos. Mesmo na área educacional aumentará muito a educação continuada para todas as gerações e isso se dará sem necessariamente a presença física do professor. Em um futuro não muito distante, os hologramas permitirão ao professor estar presente simultaneamente em diferentes locais de aula. Isso não é ficção e pode ser conveniente em alguma medida. Ou seja, a educação do futuro prescindirá da presença física, materializada do professor. Por outro lado, alguns estudiosos têm insistido que a educação do futuro, compatível com a revolução digital, deverá se parecer conceitualmente com a do Renascimento: astronomia, matemática, artes, filosofia e o prazer de aprender de forma inventiva e criativa. O Renascimento é considerado um dos poucos momentos na história onde houve mudanças disruptivas tão brutais quanto as que ocorrem hoje. Em outras palavras, a educação de todas as gerações deverá se basear no incentivo à inventividade. As formações educacionais serão cada vez mais interdisciplinares, porque as atividades profissionais serão cada vez mais interdependentes.

O surgimento do “precariato” está relacionado com o empobrecimento da geração jovem e com a teoria que afirma que a geração dos millennials será mais pobre que a de seus pais?

Há perdedores e ganhadores na economia digital. A sociedade como consumidora ganha porque o poder de negociação dos consumidores aumenta muito. Quem perde são os trabalhadores com menores salários e proteção social frágil. Será necessário atualizar as instituições de proteção social do século 20, que hoje estão arcaicas e obsoletas. Os próprios sindicatos em países como a Alemanha já se deram conta de que precisam se envolver mais nessas transformações que eliminam as fronteiras entre indústria e serviços. Há, de fato, gerações que serão mais sacrificadas, mas a sociedade precisa dar instrumentos vigorosos para que os jovens consigam enfrentar os desafios da vida. Os jovens tendem a ser mais sacrificados e isso vai requerer um novo contrato social entre gerações. Os jovens, na últimas décadas, vêm tendo condições de vida inferiores às que tiveram os seus pais. A tensão entre gerações se expressa nas finanças públicas. A reforma dos sistemas de Previdência é um imperativo e, muito possivelmente, os regimes de repartição perderão gradualmente espaço para os regimes de capitalização.

O que conhecemos como emprego vai mudar? O que vai reger a narrativa de trabalho da população?

É impossível prever em que mundo viveremos em 10 ou 15 anos. Mas a intuição que tenho é a de que a socialização no trabalho, que marcou o século 20, tende a desaparecer gradualmente. Trabalho é socialização e historicamente as sociedades se estruturaram em torno do emprego. Isso está perdendo importância relativa de forma inequívoca. As implicações políticas disso são imprevisíveis. Empregos que duram toda uma vida desaparecerão e algumas atividades estão sendo literalmente extintas. Isso não é necessariamente ruim. Pode ser bom em vários casos. Há uma irreversível “destaylorização” do trabalho e níveis hierárquicos cairão ainda mais. Muitas crianças hoje trabalharão em profissões que sequer existem. Minha geração, ao longo de toda uma vida, teve em média sete empregos no total. A geração atual chega a ter sete atividades simultaneamente. São tremendamente complexas as implicações dessas transformações.

O aumento significativo da população idosa é uma realidade brasileira e mundial.Quais são as respostas possíveis ao desafio da longevidade nesse contexto de revolução digital e flexibilidade? Qual será o papel do Estado? Renda básica universal poderia ser uma saída?

O aumento da longevidade é um desafio planetário. Como sabemos, o envelhecimento das populações conspira contra o crescimento da produtividade e coloca desafios imensos do ponto de vista do financiamento da própria longevidade e também em diversos planos como o da vida nas cidades, na mobilidade urbana, no lazer, no tema da previdência e dos cuidados com a saúde. A esperança de vida aumenta muito velozmente com os avanços da medicina - o conhecimento médico duplica a cada 73 dias. Por outro lado, a produtividade tende a se ampliar com as novas tecnologias digitais, com a automação e a robotização. Pode ser que uma coisa compense a outra.

A flexibilidade do mercado laboral, em grande medida, convém às pessoas mais idosas que poderão eventualmente trabalhar somente alguns dias por semana e por poucas horas, claro, com a devida proteção social. Países que envelhecem muito rápido precisam mais da robotização e da automação. Vide Japão e Alemanha, que são os países mais avançados nesse plano. Mas não há dúvidas de que o desemprego tecnológico afeta todas as faixas etárias indistintamente, mas com intensidade maior entre os jovens.

A discussão de renda mínima universal está forte em vários países maduros que se deram conta de que vão ter que criar redes de proteção eficientes. Alguns analistas defendem que a taxação dos robôs e da inteligência artificial irá se tornar algo inevitável no futuro para financiar os impactos da revolução digital na sociedade. No curto prazo, acho que isso não seria bom, porque poderia inibir os avanços científicos. No médio e longo prazos, talvez venha a ser inevitável. Ninguém sabe como se comportarão as finanças públicas no futuro, sobretudo porque é ainda difícil saber os contornos do sistema tributário na economia digital avançada. A revolução digital impõe obrigações urgentes aos gestores públicos no desenho de soluções eficientes para diferentes desafios sociais. A desigualdade tende a aumentar ainda mais. Ela já vem aumentando freneticamente nos últimos anos, a despeito da clara redução da pobreza absoluta, graças à globalização. Em resumo, é difícil responder qual vai ser o papel do Estado com o avanço da revolução digital. Mas uma coisa é certa, deverá ser bem diferente do atual, sobretudo na divisão dos ganhos de produtividade.