A vida de empregos temporários, freelancers e “bicos” não é um traço passageiro das economias, tampouco uma expressão particular de suas crises. As ocupações instáveis e flexíveis, segundo estudiosos, já formam o novo rosto do mercado de trabalho. Se novas maneiras de ganhar a vida estão se sobrepondo, algo está, obrigatoriamente, morrendo. Para o economista britânico Guy Standing, o colapso acontece com a forma de emprego clássica. “As pessoas estão sendo forçadas a aceitar uma vida de empregos instáveis, sem uma identidade ocupacional”.
Standing é Ph.D pela Universidade de Cambrigde e pesquisa há décadas como as mudanças estruturais no mercado de trabalho, atreladas à globalização e à revolução tecnológica, constróem um novo grupo social e econômico, o qual ele chama de precariado. O termo, surgido na década de 1980 entre as mudanças do modelo de produção em massa, foi ressignificado em 2011, quando Standing lançou “O Precariado - A nova classe perigosa” - que ganhou edição brasileira pela editora Grupo Autêntica, em 2013. Leia mais sobre na entrevista completa com o economista britânico.
O precariado do século 20
O conceito sociológico de precariado surgiu na década de 80, na Itália, a partir do movimento social autonomista, explica o sociólogo Ruy Braga. O grupo estava preocupado em fazer uma análise do trabalho e entender porque as novas gerações, quando entram no mercado, não experimentam as mesmas políticas de bem-estar que as gerações anteriores.
No livro, o professor da Universidade de Londres afirma que a população mundial experimenta cada vez menos o emprego, no sentido formal, para ocupar vários trabalhos durante a vida. Afinal, construir a carreira dentro de um único tipo de profissão ou passar anos na mesma empresa, exercendo as mesmas atividades, estão se mostrando opções gradativamente inviáveis na economia, seja no Brasil ou no resto do mundo.
Se o envelhecimento da população está afetando o mercado de trabalho, o contrário também acontece: as novas tecnologias,economia disruptiva e a Quarta Revolução Industrial estão conferindo uma cara velha ao emprego tradicional. O economista Octavio de Barros, uma das vozes brasileiras do debate, explica que esta extinção da ocupação “clássica” cria espaços para o aumento do precariado. “O trabalho se torna cada vez mais ‘on demand’ [sob demanda] porque essa é a flexibilidade que o mundo digital impõe”, explica Barros, que foi economista-chefe do Banco Bradesco por 15 anos e hoje dirige o Instituto República, a que se refere como um “think tank” de onde estuda e acompanha temas econômicos e políticos.
A Quarta Revolução Industrial deve implicar na perda de mais de 5 milhões de empregos em até cinco anos, diz o Fórum Econômico Mundial no relatório “Futuro do Trabalho”, publicado em 2016. As mudanças, segundo o documento, vão chegar na corrente da robótica avançada, transporte autônomo, inteligência artificial, aprendizagem automática, além do desenvolvimento acelerado da biotecnologia, de 2015 a 2020. Por outro lado, o cenário tecnológico dá força para áreas como computação, matemática, arquitetura e engenharia, onde haverá um ganho de 2 milhões de empregos.
Standing traça o mesmo desenho. “Mais e mais empregos vão ser eletrônicos, ultrapassando qualquer relação trabalhista envolvendo empregador-empregado”. Sem vínculos duradouros com o empregador, as ocupações flexíveis mudam a maneira que o trabalhador recebe seu pagamento, sem férias remuneradas e outros benefícios. É a lógica da gratificação instantânea. “O precariado precisa confiar inteiramente nos salários nominais”, pontua Standing. Sem horários e espaços de trabalho fixos e pouca previsibilidade sobre os rendimentos financeiros, essa classe corre sempre o risco de estar endividada. “Eles normalmente estão com dívidas e com medo de perder suas rendas subitamente”, acrescenta o economista britânico.
Autor do livro “A Política do Precariado: do populismo à hegemonia” (2013, editoria Boitempo) o sociólogo brasileiro Ruy Braga diz que a característica de trabalho intermitente deste grupo converte-se em um gerador de dívidas. “Porque as necessidades são mais ou menos constantes ao longo do ano, você precisa comer, beber, se vestir e se alimentar”, afirma.
Standing ressalta o forte papel da globalização no nascimento do precariado. Na visão dele, a progressiva revolução tecnológica e a facilidade de empresas alocarem empregos e produção onde a mão de obra é mais barata estão agravando a distribuição de renda. Ele diz que há um grupo, o dos “rentistas”, que lucraria com o endividamento da população. “Eu não acredito que os robôs vão tornar quase todos os trabalhadores redundantes. Mas, sem dúvidas, a progressiva revolução tecnológica está agravando a distribuição de renda”, diz o especialista.
A perda de direitos, não só trabalhistas, mas civis, culturais, sociais, econômicos e políticos é uma das características definidoras do precariado, segundo Standing. Quem faz uma leitura parecida é Ruy Braga. O chefe de departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) entende que as mudanças da estrutura do mercado global aliadas ao aprofundamento da flexibilização estimulam a extinção de direitos clássicos do mundo do trabalho, intensificando a insegurança e instabilidade das atividades. “É uma maneira muito dura de trabalhar, muito crua, sem nenhum tipo de direito ou baixíssima intensidade de direitos, proteção social, previdenciária e trabalhista”.
Octavio de Barros pontua que estas grandes mudanças nas formas de produção e consumo criam a necessidade de sociedades e governos encontrarem uma nova fórmula de assegurar proteção social ao trabalhador precariado. “Emprego no sentido clássico, que pressupõe alguma proteção social subjacente, seria uma espécie em extinção.” E completa: “Entendo que os impactos estão sendo subestimados”. O economista frisa que não enxerga o precariado como uma subclasse ou como um fenômeno anticapitalista. “Muito pelo contrário, é um fenômeno inerente ao próprio capitalismo”.
Quem é o precariado
Não é só um perfil de trabalhador que vem acumulando as transformações. Para Standing, o precariado está dividido em três grupos: a geração que saiu da classe trabalhadora típica do capitalismo industrial; etnias minoritárias e imigrantes que se sentem desligados da sociedade convencional; e, por último, jovens qualificados que não estão satisfeitos com o mercado de trabalho.
Barros fala da qualificação ao contextualizar que o precariado é composto por cidadãos que não têm senso de ocupação clássico e aceitam que a vida seja naturalmente instável. “São trabalhadores com muita insegurança existencial, mesmo com nível de educação bastante razoável”.
Então, qual seria o sentido da população jovem se preocupar com especializações e formações de alto nível, se o precariado ganha a vida através de diferentes ocupações ao longo da vida? Para o economista, a resposta está na educação unida à criatividade. “Só sobreviverão, no médio e longo prazos, os empregos que dependam de criatividade, inteligência emocional e habilidades sociais”. “Em outras palavras, a educação de todas as gerações deverá se basear no incentivo à inventividade”, Octavio de Barros. (Leia aqui a entrevista na íntegra com o economista)
Na visão de Braga, a formação qualificada e sofisticada deve continuar como incentivo para a população procurar o ensino, mas ele reconhece que o cenário tem atritos com essas buscas individuais. “O problema não é do indivíduo, mas da estrutura, tanto a do sócio ocupacional como a estrutura econômica do país”, observa. Nesta mesma linha, Standing expõe a contradição entre o grande futuro prometido ao jovem que entra na universidade e o que ele realmente encontra no mercado de trabalho. “Eles perceberam que, na verdade, (a entrada no ensino superior) foi uma aposta na loteria”.
Ter idade mais avançada torna a situação ainda mais difícil, na visão do professor da USP. Mesmo qualificada, a pessoa mais velha que fica desempregada por um tempo não consegue voltar ao trabalho exercendo as mesmas funções de antes, com os antigos benefícios. “Você só volta para o mercado como consultor, que tem um contrato ali outro aqui”, explica Braga.
Mesmo que Standing entenda as novas exigências de flexibilidade como não tão justas, se elas significam que “milhões de pessoas devem aceitar uma vida contínua de insegurança social e econômica”, o britânico consegue enxergar uma compatibilidade entre o que o precariado e os empregadores querem. “Se formos sensatos, como a maioria das pessoas na parte educada do precariado entende, não queremos uma vida inteira com um único emprego”, diz o britânico, que define a maioria dos trabalhos como chata, estressante ou limitada. “Isso não vai mudar para a maioria dos trabalhadores. Precisamos ser honestos sobre isso”, pondera, acrescentando que o desafio é garantir que mais pessoas tenham segurança básica de renda. “Então todos podem suportar um emprego instável”.
Por enquanto, Standing guarda críticas mais duras sobre as respostas que a instabilidade do precariado recebe. “Para o antigo proletariado, o principal antagonista era o empregador, o capital e o ‘chefe’. Para o precariado, o principal inimigo é o estado”. Segundo o economista britânico, isto acontece porque a instituição estatal dá forma a políticas sociais que forçam o precariado a se comportar de certas maneiras, bloqueando determinadas atividades. “É o governo que aplica as ‘condicionalidades’ nos benefícios, ou dá prioridade para certos subsídios para os ricos ou para as corporações, e não para o precariado”.
Diante do desaparecimento gradual dos trabalhos clássicos, Barros declara que a estrutura social em torno do emprego está “perdendo importância relativa, de forma inequívoca”. Para ele, o fato de o trabalhador ficar responsável por uma atividade específica do sistema produtivo está deixando de ser uma realidade, e níveis hierárquicos cairão ainda mais.
Apesar dessas mudanças nas narrativas trabalhistas, há pesquisadores que acreditam que o trabalho deve permanecer no centro da vida social. Para Ruy Braga, mesmo que na perspectiva da economia informal o trabalho assalariado possa perder o foco, a narrativa se mantém porque “ainda assim as pessoas continuam trabalhando, pode ser trabalhando em casa, pode ser trabalhando na informalidade, no pequeno negócio”. (Leia aqui entrevista completa com o sociólogo)
Outro tópico que divide os pesquisadores é sobre se o precariado realmente constitui uma nova classe social. Diferente do que acredita Standing, que vê o precariado como uma classe em formação, Braga defende que, na realidade, eles são parte da classe trabalhadora e vêm crescendo.
Enquanto na Europa o regime de produção em massa predominava, com acesso amplo aos regimes de bem-estar, direitos trabalhistas e aposentadoria, os trabalhadores brasileiros viviam uma realidade diferente, aponta Ruy Braga. “O que na Europa, por conta da institucionalização de direitos, de garantias, conquistas, lutas sociais, era regra, ou foi grande durante muito tempo e se enfraqueceu, no caso brasileiro sempre foi a exceção”.
Ainda segundo o sociólogo, na realidade do país o que marca o surgimento desse novo tipo de trabalhador precário é a transição de uma economia industrializada para um modelo econômico apoiado no setor de serviços. Nesse novo contexto, as características dos trabalhadores são diferentes das encontradas na economia industrial. “É um tipo de emprego com características muito diferentes, mais feminizadas, subalternas, com uma flagrante dificuldade de organização sindical”.
(Clique aqui para ouvir trechos da entrevista com Ruy Braga)
Como responder ao precariado?
As mudanças nas relações trabalhistas que levam ao surgimento de um trabalhador precarizado demandam adaptações por parte das instituições, afirmam os estudiosos. Elas podem ser de iniciativa do governo, através de políticas públicas, e também das empresas, que podem influenciar na reorganização do mercado de trabalho.
Mas as respostas e soluções para essa realidade não são consenso entre estes pesquisadores. Guy Standing defende a renda universal básica como uma reação viável a precarização do trabalho. “A renda básica poderia dar para aqueles se cansaram ou demandam empregos a oportunidade de flexibilizar em seus próprios termos ou de aproveitar um descanso”.
Ruy Braga apresenta ressalvas quanto à eficácia da política de renda básica. Ele acredita que um aumento em gastos sociais desse tipo pode, na realidade brasileira, diminuir investimentos em políticas públicas relacionadas à saúde, habitação, transporte e educação. A renda básica só seria uma solução, na visão do sociólogo, se a política estiver acompanhada pela redução da conta da taxa de juros. “Você vai colocar mais renda na base da pirâmide e eliminar aquilo que é a regra hoje em dia. A taxa de juros do governo é uma maneira de você tirar dinheiro do pobre e dar para o rico”.
Para Octavio de Barros, entre as instituições sociais que precisam de uma atualização está a organização sindical dos trabalhadores. “Os próprios sindicatos, em países como a Alemanha, já se deram conta de que precisam se envolver mais nessas transformações que eliminam as fronteiras entre indústria e serviços.”
A crítica sobre o modelo de sindicato também é ecoada por Braga. Segundo o sociólogo, eles são muitas vezes hostis ao trabalhador e não tem capacidade de representar o empregado precarizado. “A forma sindical não tem condições de negociar com as empresas em nome deles, ou os que negociam são sindicatos muito frágeis, por exemplo terceirizados.”
Na visão de Braga, as reformas que estão em tramitação no Congresso Nacional brasileiro formam uma agenda oposta às proteções ideais ao precariado. “Você tem que apostar em uma previdência social mais inclusiva, tem de cortar a taxa de juros, baratear a dívida pública, apostar na proteção do trabalhador porque isso diminui a desigualdade e consequentemente gera emprego”, lista o pesquisador, que também defende uma redução da jornada de trabalho, para obrigar empresas a contratarem mais gente.