As mulheres ganham menos do que os homens, estão mais sujeitas à informalidade e ao desemprego, além de cumprirem jornada dupla de trabalho por assumirem boa parte das tarefas domésticas. Logo, é justificável elas se aposentarem antes deles, certo? Depende. Essa pergunta aceita mais de uma resposta e está sujeita a diferentes interpretações a respeito da funcionalidade do sistema previdenciário.
A proposta original da reforma da Previdência, ainda em tramitação no Congresso, prevê equiparar em 65 anos a idade mínima de homens e mulheres para receber o benefício. Entre os prós estão indicadores sociodemográficos incontestáveis. As mulheres são maioria na população (51,6%) e vivem em média 7,2 anos mais do que os homens, mas contribuem menos para o sistema previdenciário. Na ponta contrária, o argumento é que esses indicadores refletem exatamente a desigualdade de gênero no mercado de trabalho.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) diz que o Brasil se beneficiaria caso fizesse melhor uso da mão de obra feminina. Pelas contas da OIT, se a taxa de ocupação feminina aumentasse em um quarto, a economia doméstica teria um incremento de R$ 382 bilhões ao longo de oito anos. Entretanto, os avanços têm sido pequenos. A Síntese de Indicadores Sociais de 2015, do IBGE, mostra que apenas 56% das mulheres em idade ativa estão empregadas, em comparação com 78,2% dos homens. Além disso, elas representam 69,5% da população não economicamente ativa - aquela apta a trabalhar, mas que não está no mercado.
Para o professor Luís Eduardo Afonso, da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP), corrigir essa falha por meio da previdência seria transformar uma distorção do mercado de trabalho em uma deficiência adicional no sistema previdenciário. “O que interessa para a Previdência é a sobrevida. E as mulheres que chegam aos 65 anos têm, em média, três anos a mais de sobrevida do que os homens. Então, mesmo que a idade para aposentadoria fosse igual, elas receberiam o benefício por três anos a mais.” A situação cria o chamado subsídio cruzado, quando um grupo acaba financiando o auxílio do outro.
Afonso acredita que políticas públicas de primeira infância, como oferta de creches e extensão da licença maternidade, são mais eficientes porque reparam a deficiência ainda durante a idade produtiva das trabalhadoras. Mas a advogada e professora de Direito Trabalhista da PUC-SP Fabíola Marques alerta que essa alternativa não incentiva a divisão equitativa das responsabilidades com os filhos e continua penalizando a mulher, que tende a ser menos atrativa para as empresas. A licença parental, uma garantia à família, e não à mulher ou ao homem, seria uma ferramenta melhor, já que permite ao casal decidir em conjunto o período de afastamento de cada um.
Defensor da diferença entre as idades mínimas como alternativa provisória, o professor de economia do Insper Renan De Pierre adverte que a previdência não pode ser utilizada indefinidamente como um mecanismo de compensação. “A opção é válida do ponto de vista social, desde que levemos em consideração o déficit que o governo tem hoje e que precisa ser combatido.” Desse modo, ainda que as mulheres continuem se aposentando antes dos homens, as demandas fiscais do governo são respeitadas, opina.
O uso da Previdência para fins que não estejam relacionados exclusivamente ao financiamento da população idosa é uma atitude política, afirma Kaizô Beltrão, professor de economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Estamos falando de um seguro contra a incapacidade de gerar renda. Não é economicamente viável utilizar o sistema para distribuir renda.” O Brasil, diz ele, está contra a tendência mundial, que é igualar as idades mínimas.
O Estado verificou argumentos favoráveis e contrários à equiparação das idades mínimas para a aposentadoria. Confira:
Se levarmos em conta os afazeres domésticos, a jornada de trabalho da mulher é maior do que a do homem.
Mais de 90% das mulheres ocupadas também são responsáveis pelas tarefas do lar, enquanto entre os homens o percentual é de 28,6%. Para Regina Madalozzo, professora de economia do Insper, a sobrecarga é prejudicial às mulheres tanto física quanto profissionalmente. “Há consequência no mercado de trabalho, porque o empregador vai considerar que o cansaço mental pode prejudicar o desempenho dela.” A economista afirma, ainda, que as responsabilidades com a família são um empecilho para promoções, já que assumir mais horas de trabalho ou um cargo no exterior, por exemplo, muda a dinâmica de funcionamento do lar.
“A mulher deve encontrar, na sociedade, a profissão adequada que não a impeça de cumprir a sua vocação primária, de ser o coração da família e a alma da casa”
A frase é do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Ives Gandra, durante defesa, em 2008, do artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O texto assegura à mulher 15 minutos de descanso antes do início das horas extras, como forma de compensar sua dupla jornada. A professora Fabíola Marques, da PUC-SP, avalia que o parecer de Gandra é fundamentado em aspectos religiosos e vincula à figura feminina responsabilidades domésticas. O dispositivo, na sua opinião, tem resultado contrário à finalidade: em vez de corrigir as assimetrias do mercado, acaba por dificultar a contratação de mão de obra feminina.
A ideia da mulher como “coração” da família se fortaleceu no Brasil como um dos ideais republicanos do século 19, diz Mirtes de Moraes, professora de História da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “A República imprime a ideia da criança como o futuro do País. E aí estava a função social da mulher: cuidar do filho e do lar é assegurar a ordem e o progresso da construção de uma nação positivista.”
Além de trabalharem mais, elas ganham menos
No início do século passado, poucas universidades aceitavam alunas. O cenário se inverteu a partir dos anos 1990, quando pela primeira vez elas se tornaram maioria no ensino superior. Contraditoriamente, nota-se que maior nível de escolaridade faz aumentar a diferença salarial de homens e mulheres.
Estudo feito pela professora do Insper mostra que, mesmo quando os rendimentos se equiparam, outro fator discriminatório aparece, a maior exigência de formação. “Não adianta elas estarem na mesma posição e receberam o mesmo salário dos colegas homens, se para isso precisam estudar mais”, diz.
Elas estão mais sujeitas à informalidade
Em números absolutos, os homens representam a maioria no mercado informal. Mas quando se analisa a razão entre população ocupada e indivíduos na informalidade, as mulheres são, de fato, mais afetadas. Elas compõem 92% dos trabalhadores domésticos, a categoria de menor adesão ao Regime Geral de Previdência Social, com um contingente de 4,3 milhões de pessoas sem carteira de Trabalho.
Mulheres sofrem mais com o desemprego
As mulheres ainda enfrentam maior resistência para entrar no mercado de trabalho, embora exista uma tendência de inclusão justamente por meio do desemprego. Dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) mostram que no período de 2012 a 2017 houve contração na ocupação masculina (-0,9%) e expansão de 3,7% da taxa feminina. O cenário acompanha o movimento dos países da América Latina, a região que nos últimos dez anos mais conseguiu reduzir a desigualdade de gênero no acesso ao emprego formal.
Elas são menos produtivas
O período de licença maternidade, as responsabilidades domésticas e a falta de disponibilidade para viagens ou horas extras são, em geral, os maiores argumentos sobre a diferença de produtividade entre os sexos. Pesquisa feita pela consultoria KPMG no Brasil, porém, diz o contrário. Uma análise das ausências de funcionários e funcionárias da instituição mostrou que eles têm, em média, a mesma frequência. O equilíbrio mostra, na opinião de Patrícia Molino, sócia da KPMG, que as mulheres faltam menos ao trabalho por motivos banais. “Elas não deixam de ir porque estão resfriadas, por exemplo.”
Além das atribuições familiares, a autocrítica é uma barreira para a ascensão profissional da mulher. Segundo Patrícia, executivas só se apresentam a uma vaga superior quando acreditam ter, no mínimo, 80% dos pré-requisitos que o cargo exige. Entre os homens, esse percentual cai para 30%. “Com isso, elas têm o dobro de promoção lateral dos colegas e demoram mais para assumir postos de liderança.”
A CLT do jeito que está dificulta a entrada da mulher no mercado de trabalho
Mesmo quando a legislação tenta consertar as falhas do mercado, acaba incentivando a discriminação da mulher, afirma Fabíola. Para ela, o artigo 384 da CLT e a licença maternidade são os maiores exemplos de políticas ineficientes. As convenções coletivas, que negociam com os empregadores, têm comportamento parecido, diz. “Elas exigem o direito da mulher faltar ao trabalho para cuidar do filho doente, quando deveriam estimular a divisão da responsabilidade entre o casal.” Parte do problema poderia ser solucionado com a maior participação política das mulheres, argumenta De Pierre. As leis ainda são feitas por parlamentares homens. São eles que avaliam as necessidades específicas da mão de obra feminina.
O mundo todo está equiparando as idades mínimas de aposentadoria
Levantamento do Banco Mundial com 189 países aponta que sim. Da amostra, 70,3% não diferencia a idade mínima de homens e mulheres para o recebimento da aposentadoria integral.